Em 1986, o português vencedor do Nobel de Literatura, José Saramago, publicou o livro A Jangada de Pedra. Nesta obra do realismo mágico, eventos naturais inexplicáveis levaram à separação física da Península Ibérica – onde se localizam Portugal e Espanha – do continente europeu. A imensa massa de terra começa então a se deslocar pelo Oceano Atlântico, sem rumo, uma espécie de grande jangada de pedra à deriva, como o título anuncia. O contexto social, político, econômico e filosófico de Saramago ao escrever esta obra eram muito particulares. No entanto, a alegoria da jangada de pedra não poderia ser a mais perfeita para o momento atual que o Reino Unido vive em meio às negociações para sua saída da União Europeia.

Como já apresentado em outros textos do Observatório, em 23 de junho de 2016, a opção pela saída venceu um referendo questionando se o Reino Unido deveria permanecer como membro do bloco europeu ou deixar o processo de integração. O processo ficou popularmente denominado Brexit, contração do termo Britain’s Exit. A votação foi extremamente apertada, 51,9% dos votos foram favoráveis à saída do Reino Unido da União Europeia (Leave), enquanto que 48,1% votaram pela permanência (Remain), sendo o comparecimento nas urnas de 72,2% – recordando que a votação no país não é obrigatória (ELECTORAL COMMISSION, 2016).

A atual Primeira-ministra Theresa May seria favorável ao processo de separação, não desejando um Brexit suave como muitos políticos, empresários e analistas consideram ser o melhor resultado, mas, sim uma saída da UE de forma integral – um Brexit ‘duro’ (hard Brexit) – sem que o país permaneça, por exemplo, como parte do mercado único, ainda que se busque um acordo de livre-comércio com o bloco (BERCITO, 2017; THERESA MAY, 2017). No entanto, desde que assumiu a liderança do governo britânico, May vem acumulando dificuldades em conduzir as negociações. Diversas crises políticas foram desencadeadas e, aos poucos, a Ministra vem cedendo seu posicionamento assertivo, abrindo espaço para o Brexit suave.

O divórcio definitivo e completo entre Reino Unido e União Europeia significaria uma desassociação de soberania entre o país britânico e suas contrapartes europeias. Se por um lado, deixar o processo de integração regional europeu, aparentemente, significa maior autonomia na condução das políticas comerciais e sociais do país britânico, por outro lado, significa também diminuir a interlocução direta com o bloco nos temas de cooperação, segurança e comércio. Para a maior parte dos analistas, manter-se na UE seria o mais racional e menos arriscado para a ilha britânica.

Ao mesmo tempo, as articulações do governo sob a liderança de Theresa May têm se demonstrado ligeiramente desordenadas. Apesar do aparente sinal de consenso em torno de uma proposta de saída do Reino Unido, dois dos principais ministros do governo que lidavam diretamente com o processo de negociação do Brexit renunciaram ao cargo. Primeiro, a saída do negociador chefe para o Brexit, David Davis, acompanhada da renúncia do ministro de Relações Exteriores, Boris Johnson.

Ambos os líderes eram partidários do “hard Brexit”, que busca um divórcio definitivo entre Reino Unido e União Europeia. A saída destes foi uma demonstração evidente de descontentamento com a intenção que o governo de May vem assumindo na condução das tratativas, uma posição mais próxima do chamado “soft Brexit”, aquele em que o divórcio ocorre, mas os laços entre o país britânico e o bloco europeu se mantêm relativamente estreitos (THERESA…, 2018; BORIS…,2018; BEGG, 2018). Johnson teria criticado a intenção de se formar uma Área de Livre Comércio, o que ainda tornaria o Reino Unido atrelado ao cumprimento das normas europeias, mesmo estando fora do bloco (THERESA…, 2018; BORIS…, 2018). No lugar de Davis e Johnson, entraram Dominic Raab e Jeremy Hunt, respectivamente.

Assim, a proposta de May não agrada nem a ala mais conservadora do seu partido, que busca o denominado “hard Brexit”, e nem a UE, que considera a atual proposta britânica desalinhada. A crise política instalada na ilha após as renúncias buscou ser rapidamente controlada, tanto pela Primeira-Ministra, como pelos europeus. Isso porque, primeiramente, Theresa May, de forma evidente, busca se manter no poder. Além disso, apesar da condução quase errática de May nas negociações, incitar uma crise mais profunda em seu governo, por parte dos europeus, poderia abrir espaço para a ascensão da ala que busca o “hard Brexit” a qualquer custo, o que seria ruim para a UE. Ao mesmo tempo, para a ala britânica mais conservadora, fomentar uma crise no atual estágio poderia abrir espaço para o crescimento de alguma liderança da oposição contrária ao Brexit, como o trabalhista Jeremy Corbyn (BEGG, 2018).

No documento oficial publicado pelo governo britânico, intitulado White Paper (Documento ou Papel Branco, em tradução livre para o português), busca-se delinear as propostas britânicas à UE para um acordo pós-divórcio. O documento afirma que o Reino Unido deixará o bloco europeu em 29 de março de 2019, e que, a partir desta data, irá começar a traçar um novo curso pelo mundo (“begin to chart a new course in the world”). No texto de May, o referendo é considerado  pela Primeira-Ministra como o maior exercício democrático da história do país (no entanto, cabe recordar a possibilidade do referendo do Brexit ter sido contaminado pela manipulação da empresa Cambridge Analytica) (HM GOVERNMENT, 2018).

No texto de abertura de May no documento, o Brexit significaria deixar o Mercado único europeu, a união aduaneira, a Política Agrícola Comum, encerrar a livre-circulação, a jurisdição do Tribunal Europeu no país e parar o envio de vastas somas de dinheiro a UE todos os anos. Nas palavras de May: “We will take back control of our Money, laws, and borders, and begin a new exciting chapter in our nation’s history” (HM GOVERNMENT, 2018). Ainda segundo o texto da Ministra, preservaria o acesso aos mercados europeus e britânicos através da criação de uma área de livre comércio entre Reino Unido e UE, mas permitiria que a ilha impulsionasse uma política comercial independente para fechar acordos comerciais com novos e antigos aliados (HM GOVERNMENT, 2018).

No campo da cooperação política e da segurança, o documento afirma que o país e o bloco buscariam a formação de acordos institucionais, provavelmente a partir de acordos de associação, proporcionando diálogo regular entre as partes. Estes acordos delimitariam meios de resolver os possíveis litígios entre as partes, criando um comitê misto para estabelecer uma arbitragem independente e vinculativa, mas a partir do princípio de que o Tribunal Europeu não mais teria jurisdição no Reino Unido.

De acordo com a análise de Horten (2018), o objetivo do documento é dar segurança jurídica aos setores comerciais e industrialistas do Reino Unido, sinalizando a manutenção das cadeias de produção entre o país e o bloco europeu. Este é um sinal importante, uma vez que diversas empresas de transporte, alimentos e farmacêuticas vêm criticando a possibilidade de um “hard Brexit”, o que daria origem a controles rígidos nas fronteiras, aumentando os custos de transportes, sendo economicamente prejudicial (HORTEN, 2018).

Além disso, devido ao peso do mercado europeu, quaisquer regras estabelecidas pelo bloco obrigam todos os outros países do mundo a reverem seus produtos, normas e procedimentos. Sendo assim, será inevitável para os britânicos se manterem minimamente alinhados aos europeus. A grande perda do Reino Unido, neste caso, será a menor influência que terá nas decisões de regras por parte do bloco, algo que o país podia fazer quando membro ativo da UE, ao participar das negociações e reuniões com voz e poder de veto. Desta maneira, o Reino Unido deixará de ser um criador de regras, para ser um mero aplicador (HORTEN, 2018).

Neste contexto, o negociador chefe europeu, Michael Bernier, à frente das tratativas do Brexit, foi bastante direto ao demonstrar seu desagrado pela proposta britânica. Em sua visão, a proposta poderia, inclusive, representar uma ameaça para a manutenção do mercado único europeu tal como existe atualmente. Bernier publicou um artigo em diversos jornais europeus pontuando que o Reino Unido quer manter o livre movimento de bens com os europeus, mas não de pessoas e serviços, propondo aplicar as regras aduaneiras com a UE sem estar sob a jurisdição do Tribunal Europeu. Na visão de Bernier, o Reino Unido quer retomar sua soberania à custa das leis europeias (“Thus, the UK wants to take back sovereignty and control of its laws, which we respect, but it cannot ask the EU to lose control of its borders and laws”).

Ainda segundo Bernier, o bloco europeu ofereceu um acordo de comércio livre com tarifas zero e sem restrições quantitativas para mercadorias e propôs uma estreita cooperação alfandegária e regulatória, acesso aos mercados de compras públicas, mas cuja a jurisdição europeia estivesse mais próxima destes termos do que pretende a ilha britânica. Por isso, no domínio da segurança, a UE deseja uma cooperação muito mais estreita do que o proposto pelo Reino Unido, para proteger os cidadãos europeus.

Theresa May e seu governo precisam articular os interesses no nível doméstico e no nível regional. No doméstico, Theresa May precisa evitar que a crise política instalada desde o momento em que o resultado do referendo foi conhecido, em 2016, se aprofunde. Além disso, precisa convencer a ala mais conservadora de seu governo, os parlamentares, empresários e a sociedade, como um todo, de que a proposta encaminhada permitirá o retorno de estabilidade e segurança à ilha britânica.

No nível europeu, Theresa May também precisa convencer os países e a comissão europeia de que a proposta desenhada será a mais viável para ser consumada após a saída definitiva do país, em 2019. A Primeira-Ministra britânica foca seus esforços em convencer os governos francês e alemão. Ao que tudo indica, a chanceler alemã, Angela Merkel, já teria um diálogo construtivo com May. Por sua vez, a França seria o país que, atualmente, mais traz problemas aos britânicos, opondo-se à proposta britânica nas reuniões europeias. A estratégia de May, então, seria convencer o Presidente francês, Emmanuel Macron, a aceitar a proposta. Uma vez aberta a ponte de entendimento entre May e Macron, o presidente francês teria força o suficiente no interior da UE para auxiliar a atual proposta britânica a ser aceita pelo bloco (CRERAR, 2018).

Há, porém, uma perspectiva mais pessimista. Neste cenário, em março de 2019, Reino Unido e União Europeia não teriam definido um acordo e o divórcio ocorreria sem uma muleta jurídica e sem a estabilidade econômica e política que um consenso entre as partes traria. Tanto os negociadores europeus, como os próprios governistas britânicos veiculam com certa frequência esta possibilidade na mídia (COMISSÃO…, 2018; MINISTRO…, 2018). Por um lado, pode ser uma estratégia de cada um dos negociadores pressionarem a concordância com as propostas colocadas na mesa, à medida que o tempo avança e se encurta. Por outro, pode ser também uma inconveniente verdade.

Tal como Saramago imaginou a península ibérica separada do continente europeu, como uma imensa jangada de pedra, assim é o Reino Unido se distanciando do bloco europeu no atual momento político. A possibilidade de deixar a União Europeia sem um consenso em torno do futuro relacionamento entre britânicos e europeus é uma possível tempestade que se aproxima da jangada de pedra britânica, à deriva no oceano.

Referências Bibliográficas
BEGG, Iain. A paler shade of grey? It is hard to see how any in-between version of Brexit can prevail. London School of Economics and Political Science, 2 ago. 2018. Disponível em: <http://blogs.lse.ac.uk/brexit/2018/08/02/a-paler-shade-of-grey-it-is-hard-to-see-how-any-in-between-version-of-brexit-can-prevail/>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
BERCITO, Diogo. May indica Brexit ‘duro’ e Reino Unido deve deixar mercado comum europeu. Mundo. Folha de São Paulo. 17 de janeiro de 2017. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/01/1850505-may-indica-brexit-duro-e-reino-unido-deve-deixar-mercado-comum-europeu.shtml>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
BERNIER, Michael. An ambitious Partnership with the UK after Brexit. European Comission, 02 ago. 2018. Disponível em: <https://ec.europa.eu/commission/news/ambitious-partnership-uk-after-brexit-2018-aug-02_en>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
BORIS Johnson renuncia ao cargo de ministro britânico de Relações Exteriores. G1, 09 jul. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/boris-johnson-renuncia-ao-cargo-de-secretario-britanico-de-relacoes-exteriores.ghtml>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
COMISSÃO Europeia quer acelerar preparativos para um Brexit sem acordo. Agência Brasil, 19 set. 2018. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-07/comissao-europeia-quer-acelerar-preparativos-para-um-brexit-sem-acordo>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
CRERAR, Pippa. May prepares for talks with Macron that could make or break Brexit plan. The Guardian, 2 ago, 2018. Disponível em: <https://www.theguardian.com/politics/2018/aug/02/may-prepares-for-talks-with-macron-that-could-make-or-break-brexit-plan>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
ELECTORAL COMMISSION. EU referendum results. 2016. Disponível em: <https://www.electoralcommission.org.uk/find-information-by-subject/elections-and-referendums/past-elections-and-referendums/eu-referendum/electorate-and-count-information>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
HM Government. The Future Relationship Between the United Kingdom and the European Union. Jul. 2018. Disponível em: <https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/725288/The_future_relationship_between_the_United_Kingdom_and_the_European_Union.pdf>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
HORTEN, Monica. Trade will not be frictionless: will a common rulebook help?. London School of Economics and Political Science, 25 jul. 2018. Disponível em: <http://blogs.lse.ac.uk/brexit/2018/07/25/trade-will-not-be-frictionless-will-a-common-rulebook-help/>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
MINISTRO Britânico: um Brexit “sem acordo” é mais provável. Valor Econômico, 05 de ago. 2018. Disponível em: <https://www.valor.com.br/internacional/5712705/ministro-britanico-um-brexit-sem-acordo-e-mais-provavel>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
THERESA May detalha plano para o Brexit com ênfase em área de livre comércio. G1, 12 de jul. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/theresa-may-detalha-plano-para-o-brexit-com-enfase-em-area-de-livre-comercio.ghtml>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.
THERESA MAY assina carta que pede a saída do Reino Unido da UE. Brexit. El País. 28 de março de 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/28/internacional/1490724964_088203.html>. Acesso em: 06 de ago. de 2018.

Escrito por

Lucas Bispo dos Santos

Mestrando no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e integrante da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI), pesquisando os temas relativos ao Regionalismo, Integração Regional, Mercosul e União Europeia. Bacharel em Relações Internacionais, pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Política, Economia e Negócios, em 2014. Realização de intercâmbio, com bolsa parcial cedida pelo Santander Universidades, para Universidade de Coimbra, em 2013. Bolsista da FAP-Unifesp pelo Projeto Univercine, em parceria com a Cinemateca Brasileira, entre 2011 e 2012.