A América Latina, como periferia do mundo, possui seus fatores econômicos, políticos, sociais e culturais respaldados em um contexto histórico de exploração. A partir disso, para refletir acerca da região, é interessante resgatar a conjuntura de sua constituição colonial para compreender os reflexos na contemporaneidade. Assim, este ensaio pretende discutir as dinâmicas exploratórias focadas no capital, enfatizando a esfera do meio ambiente – essencialmente a Amazônia -, na qual essa questão se associou ao desinteresse do governo de Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) com a pauta ambiental e perspectivas de integração para proteção do bioma amazônico. Por fim, cabe destacar algumas iniciativas tomadas no novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011/2023-atualmente) – no que tange a essas temáticas. 

Nesse viés, o ano de 1492, com o “descobrimento” da América, marca o momento de reconhecimento da Europa como centro do mundo e, consequentemente, a posição periférica latino-americana (DUSSEL, 1993). Desse modo, origina-se o “mito da modernidade”, que está intrinsecamente ligado à colonialidade, em que se estabeleceu a simplificação da realidade e proliferação de dinâmicas hierárquicas sustentadas por estruturas de dominação econômica, cultural e epistemológica, que encobriram o outro e ressaltaram a supremacia dos valores europeus em diversos domínios da sociedade (QUIJANO, 2005). Dessa forma, os Estados da região foram construídos a partir da ambição daqueles que pertenciam às classes dominantes – indivíduos brancos e de origem europeia, que reprimiam povos nativos e negros, – em prol do fortalecimento econômico (IANNI, 1988). 

Logo, o processo de colonização na América foi um dos pilares para a estruturação da economia mundial e, portanto, do sistema capitalista (COCATO, 2021). Enquanto colônia e mesmo após o fim do período colonial, os países da América Latina dispõem até hoje de uma posição de dependência guiada por uma racionalidade mercantilista e extrativista. A exploração de recursos naturais passou a ser justificável para o alcance do – suposto – desenvolvimento, através de um processo que contribui ainda mais para a degradação ambiental e, consequentemente, atinge comunidades vulneráveis – como povos originários e outras minorias vinculadas à terra, que foram marginalizados por um processo civilizatório homogeneizador que reverbera até hoje (COSTA; LOUREIRO, 2019). 

Nesse contexto, o ideal de maximização de capital e interesses em todas as esferas da vida, característica da lógica neoliberal, acaba interferindo diretamente na questão ambiental. Direcionando o olhar ao Brasil, observa-se que durante o governo de Bolsonaro, e em comparação ao período de 2015 a 2018, o desmatamento da Amazônia chegou a aumentar em 59,5% e, em contrapartida, o número de multas aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em crimes contra a flora tiveram uma queda de 38% (SALIM et al., 2023). Essas estatísticas evidenciam, como foi prometido por Bolsonaro, o afrouxamento da vigilância ambiental (SALIM et al., 2023) – a favor de políticas empreendedoras voltadas apenas para o interesse de quem as sustenta, na medida que:

 

[…] a  exportação  de commodities foi  convertida  em carro chefe da economia, visto que, além da exportação de produtos brutos, primários, muito dos produtos semimanufaturados e  manufaturados são intensivos em recursos naturais e foram manufaturados por meio de tecnologias intermediárias […] as conseqüências socioambientais são evidentes, pois esse  verdadeiro saqueio de recursos naturais é indissociável das expropriações que, por sua vez, adensam os conflitos socioambientais no Brasil, América latina, África e em grande parte da Ásia. Em outros termos: as frações burguesas locais, seus sócios majoritários e os governos que manejam o Estado (como se depreende do BNDS, do novo Código florestal, do desmembramento  do Ibama) aprofundam o capitalismo dependente, as expropriações e a exploração (LEHER, 2015, p. 15 apud COSTA; LOUREIRO, 2019, p. 680).

Seguindo essa linha de raciocínio, o sentido do “mito da modernidade” e da colonialidade se mantém vivos na atualidade a partir do aperfeiçoamento de um ideal exploratório e do encobrimento do outro. O enraizamento de hierarquias fundamentadas na supremacia branca/europeia e na lógica do capital, presentes na razão colonial, além de serem responsáveis por fomentar a exploração predatória da natureza, interferem diretamente no dia a dia e bem-estar de povos que foram subjugados desde o início da modernidade. O último governo brasileiro contribuiu para a perpetuação dessa dinâmica, pois, para além de números alarmantes de desmatamento, estabeleceu a paralisação de demarcação de terras indígenas e promoção de políticas anti-indigenistas, através de falas excludentes como: “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós” (G1, 2020, s/p). 

O Brasil sempre possuiu uma grande vocação para o protagonismo regional, no que se refere, principalmente, à questão ambiental. A Amazônia ocupa 7,8 milhões de quilômetros quadrados e é composta por doze macrobacias e 168 sub-bacias, se dividindo no território de oito países, estando 60,3% presente no Brasil, 11,3% no Peru, 6,87% na Bolívia, 6,95% na Colômbia, 6,73% na Venezuela, 3,02% na Guiana, 2,1% no Suriname e 1,48% no Equador – com 1,15% na Guiana Francesa, território ultramarino da França (COSTA, 2020). Ainda assim, durante o governo Bolsonaro, percebeu-se a instauração de políticas ambientais controversas e o rompimento com iniciativas progressistas latino e sul-americanas (HIRST; MACIEL, 2022). 

Segundo Junqueira e Milani (2019), a América do Sul possui como característica uma frágil institucionalização dos blocos, além de alterações nos organismos regionais encaminhadas pelas mudanças de governo, na medida que seguem novas posições políticas e ideológicas. Dessa maneira, iniciativas como a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), que carregavam propostas para além de um viés econômico, abrangendo, por exemplo, áreas sociais, políticas e ambientais, acabam entrando em processo de desmonte, já que a nova onda conservadora que emergiu na região recorreu a retomar a pauta neoliberal (JAEGER, 2019 apud ANTUNES, 2020). Portanto, a UNASUL, que o Brasil saiu em 2019, apresentava um grande potencial para a autonomia regional, principalmente no que se refere à região amazônica que – sem nenhum esforço regional significativo para a sua proteção – fica à mercê dos países hegemônicos (ANTUNES, 2020). 

Por outro lado, no governo atual, o presidente Lula, desde sua campanha, ressaltou diversas vezes o seu compromisso com o meio ambiente e a sustentabilidade, reforçando, também, a necessidade de uma integração entre os países amazônicos para a proteção do bioma (RODRIGUES; BORGES, 2023). A pauta ambiental é um dos pilares do novo governo Lula, que tem buscado tomar medidas para reverter a degradação ambiental. No primeiro dia de governo, alguns decretos voltados à questão ambiental foram assinados, como a retomada do Plano de Ação para a Preservação e Controle do Desmatamento da Amazônia Legal (PPCDAm) – que havia sido extinto por Bolsonaro (SALIM et al., 2023).

Ademais, no dia 30 de maio de 2023, foi realizado um encontro que contou com a presença de 11 países da América do Sul, sendo eles: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Suriname, Uruguai, Venezuela e Peru. Durante a sessão, Lula fez questão de destacar as raízes históricas comuns entre os países, a necessidade de união para a superação das ameaças sistêmicas da atualidade e a importância de definir ações concretas de cooperação para o combate à mudança climática e proteção do meio ambiente e povos indígenas (STUCKERT, 2023). Além disso, foi proposta a reorganização da UNASUL sem que as diferenças ideológicas sejam um impedimento (RODRIGUES; BORGES, 2023). 

Entretanto, nem tudo é feito de bons momentos. Recentemente, como uma possível forma de represália após o IBAMA barrar o projeto que visava explorar o petróleo na foz do Amazonas, foi aprovada a Medida Provisória 1154/23, portanto, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática perdeu a pasta do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), já o Ministério dos Povos Indígenas não será mais responsável por reconhecer e demarcar as terras indígenas (ICL, 2023). Desse modo, como observado por Magagna e Campelli (2023), tais medidas podem contribuir, mais uma vez, para o afastamento do Brasil da questão ambiental e prejudicar a imagem que vem tentando recuperar, de uma postura ambientalista e de combate ao desmatamento da Amazônia. 

Destarte, em virtude de um contexto histórico essencialmente exploratório e vinculado à uma estrutura de maximização de capital, o Brasil ainda se encontra em uma posição de significativa apropriação e degradação ambiental. Nessa perspectiva, a colonialidade está enraizada na sociedade atual e é, também, projetada para comunidades originárias que ainda passam por um processo de invisibilização de sua cultura. Então, ao passo que o Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática e o Ministério dos Povos Indígenas perdem pastas tão importantes, pode haver um prejuízo na efetivação de políticas socioambientais e indigenistas, perpetuando um cenário de devastação ambiental e marginalização dos povos tradicionais, bem como detendo possíveis projetos de cooperação voltados para essas questões e, em especial, a proteção da região amazônica. 

 

REFERÊNCIAS 

ANTUNES, D. O processo de declínio da Unasul: causas e consequências para o regionalismo sul-americano. Estudos Internacionais: Revista De relações Internacionais Da PUC Minas, v. 9, n. 1, p. 131-149, 2021. 

COCATO, Guilherme Pereira. Pós-extrativismo e decrescimento: formas de superação do capitalismo. Revista Geografia em Atos (Online), v. 6, p. 1-7, 2022. 

COSTA, Camila. Amazônia: O que ameaça a floresta em cada um de seus 9 países? BBC, [S. l.], s/p, 18 fev. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51377232. Acesso em: 31 maio 2023. 

COSTA, César Augusto; LOUREIRO, Carlos Frederico. Os “sem-direitos” e as lutas sociais: contribuições a partir de Enrique Dussel. Rev. Trabajo y Sociedad, n. 33, p. 103-117, 2019.

DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro – A origem do mito da modernidade. Petrópolis: Ed. Vozes, 1993.

G1. ‘Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós‘, diz Bolsonaro em transmissão nas redes sociais. G1, [S.l.], s/p, 24 jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/24/cada-vez-mais-o-indio-e-um-ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro-em-transmissao-nas-redes-sociais.ghtml. Acesso em: 31 maio 2023.

HIRST, M.; MACIEL, T. BRAZIL’S FOREIGN POLICY IN THE TIME OF THE BOLSONARO GOVERNMENT. SciELO Preprints, 2022. Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/4771. Acesso em: 10 jun. 2023. 

IANNI, Octavio. A questão nacional na América Latina. Estudos Avançados, v. 2, n. 1, p. 5-40, 1988.

ICL. Câmara aprova MP dos ministérios com pastas do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas desidratadas e recriação da Funasa. ICL Economia, [S.l.], s/p, 01 jun. 2023. Disponível em: https://icleconomia.com.br/camara-aprova-mp-dos-ministerios/. Acesso em: 31 maio 2023.

JUNQUEIRA, Cairo; MILANI, Lívia. “Regionalismo Governamental” Sul-Americano: deficiências institucionais e dependência internacional. Mundo e Desenvolvimento, v. 2, n. 3, p. 65-88, 2019.

MAGAGNA , Deborah; CAMPEDELLI, André. Uma quarta-feira a ser esquecida. ICL Economia , [S.l.], 01 jun. 2023. Disponível em: https://icleconomia.com.br/artigo-uma-quarta-feira-a-ser-esquecida/. Acesso em: 1 jun. 2023.

RODRIGUES, Paloma; BORGES, Beatriz. Lula diz ter ‘firme convicção’ de que é preciso ‘reavivar compromisso com a integração sul-americana’. G1, [S.l.], s/p, 30 maio 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/30/lula-abre-cupula-de-presidentes-da-america-do-sul-com-discurso-por-integracao-regional.ghtml. Acesso em: 31 maio 2023.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

SALIM, Leila et al. Nunca Mais Outra Vez: 4 anos de desmonte ambiental sob Jair Bolsonaro. Observatório do Clima, [S.l.], s/p, 30 maio 2023. Disponível em: https://www.oc.eco.br/nunca-mais-outra-vez-4-anos-de-desmonte-ambiental-sob-jair-bolsonaro/. Acesso em: 31 maio 2023.

STUCKERT, Ricardo. Consenso de Brasília – 30 de maio de 2023; veja a íntegra das resoluções. PT, [S.l.], s/p, 30 maio 2023. Disponível em: https://pt.org.br/consenso-de-brasilia-30-de-maio-de-2023-veja-a-integra-das-resolucoes/. Acesso em: 31 maio 2023.



Escrito por

Layssa Fernanda Lins dos Santos

Bacharelanda em Relações Internacionais na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Integra o Centro de Estudos sobre a União Europeia (CEURO/UFS), e também é parte do Grupo de Pesquisa sobre Política Internacional e Sul-americana (GP-SUL/UFS) e Observatório de Regionalismo (ODR). Possui interesse em Regionalismo e Integração Regional, Europa e América Latina.
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