O Mercosul está com um novo programa de trabalho para a agenda de integração fronteiriça. Esse documento orienta as atividades para os anos de 2021 e 2022 conduzidas pelo Subgrupo de Trabalho n. 18 “Integração Fronteiriça” (SGT-18) — órgão do Mercosul com capacidades de coordenação interna, recomendação e proposição de normativas aos órgãos decisórios. Trata-se do segundo programa de trabalho do SGT-18, mas o primeiro elaborado após o início da pandemia de COVID-19 e a introdução do novo modelo de programas de trabalho para órgãos do Mercosul.

Nove objetivos específicos compõem o programa de trabalho 2021-2022 do SGT-18. Dentre tais objetivos, alguns foram identificados com alta prioridade no programa. A Figura 1 resume os temas de cada um desses objetivos, sinalizando os prioritários com contorno vermelho. Um dos objetivos de alta prioridade atentou diretamente à pandemia. A partir disso, podemos refletir sobre a agenda de integração fronteiriça na convergência específica com a saúde, perpassando pela coordenação interna no Mercosul. Da mesma forma, podemos avançar o balanço feito sobre o SGT-18 (PESSOA, SOUZA, 2021) com as atividades mais recentes do órgão.

Figura 1 — Temas dos objetivos específicos do programa de trabalho do SGT-18 para o biênio 2021-2022


Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Programa de Trabalho 2021-2022 do SGT-18 aprovado pelo Grupo do Mercado Comum (GMC).

A criação do SGT-18 vem do reconhecimento da necessidade de políticas específicas para as zonas de fronteira e comunidades fronteiriças. E isso foi reafirmado em 18 de março de 2020 na Declaração dos presidentes do Mercosul sobre coordenação regional para a contenção e mitigação do coronavírus e seu impacto. No segundo parágrafo de tal declaração, registraram suas vontades de:

Levar em consideração as especificidades próprias das comunidades residentes em áreas fronteiriças, no processo de desenho e de execução de medidas aplicáveis à circulação de bens, serviços e pessoas, de maneira a reduzir seu impacto nas referidas comunidades.

Os termos no plural significam o reconhecimento de que a realidade das fronteiras internas do Mercosul é bastante díspar, estando alguns espaços das fronteiras internas identificados na Figura 2. No Arco Sul das fronteiras brasileiras, ao mesmo tempo, “os pujantes estados da região sul do Brasil [Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina]” são vizinhos de “duas das províncias mais pobres da Argentina [Missões e Correntes] e [d]o Paraguai, o país mais pobre do Mercosul” (RÜCKERT, DIETZ, 2013, n.p.).

Figura 2 — Mapas das fronteiras de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai no contexto das fronteiras internas do Mercosul

Fonte: elaboração própria, derivada de File:Dakar Rally 2010 map-es.svg, por Sémhur/Wikimedia Commons. Licença: CC-BY-SA-4.0.

Da mesma forma, a Tríplice Fronteira do Iguaçu contrasta estímulos (apelos ao turismo internacional com atrações de três países) e limitações à mobilidade pela fronteira (movimentos em torná-la uma questão para a segurança internacional). Por sua vez, Assunção, com todas as implicações de ser capital do Paraguai, está localizada na fronteira com a Argentina. Por outro lado, há a “fronteira viva” entre Brasil e Uruguai com cidades gêmeas dispondo de “infraestrutura urbana e de serviços que costumam servir aos dois países (no caso mais notável dos serviços de saúde)” (RÜCKERT et al., 2015, p. 25).

De modo mais notável ou não, esse caráter díspar mais amplo se reproduz em aspectos administrativo-burocráticos das políticas de saúde entre países e no atendimento ao direito fundamental à saúde entre os lados de uma mesma zona fronteiriça. Nesse sentido, na reunião do SGT-18 em que foi apresentado o novo programa de trabalho, em maio de 2021, a adoção de medidas distintas por cada país ficou evidente. Embora as fronteiras terrestres argentinas, brasileiras e uruguaias estivessem fechadas, exceto ao transporte internacional de cargas, exclusivamente nas fronteiras Brasil-Uruguai e Brasil-Paraguai estava permitido o trânsito vicinal fronteiriço em cidades gêmeas.

Além disso, só o Uruguai abriu as fronteiras para casos de reunificação familiar ou de trabalho. Outra diferença estava na “fronteira viva”, pois Brasil e Uruguai haviam firmado protocolos sanitários no âmbito dos comitês de fronteira de Santana do Livramento-Rivera e de Quaraí/Barra do Quaraí-Artigas/Bella Unión em junho e agosto de 2020. Por solicitação argentina para conhecer tal experiência, os protocolos foram anexados à ata daquela reunião. Esse caso reforça as possibilidades de o SGT-18 ser “um espaço propício à difusão de ideias, instituições e políticas” (PESSOA, SOUZA, 2021, p. 242).

Ainda nessa reunião, propostas levantadas pela delegação paraguaia sobre “protocolo procedimental consensual para o transporte internacional de cargas” e “plano de contingências para as zonas de fronteiras” não se transformaram em objetivos do programa de trabalho. Similarmente, sugestões paraguaias anteriores de “harmonizar medidas e ações conjuntas com autoridades sanitárias nacionais” também não resultaram em recomendação de medidas mais específicas e efetivas (PESSOA, SOUZA, 2021, p. 238).

Diferentemente, realizar estudos acerca dos impactos nas zonas de fronteira das medidas de enfrentamento à COVID-19 foi um objetivo listado no programa de trabalho do SGT-18, elaborado pela delegação brasileira. Ao SGT-18 conferir alta prioridade ao objetivo, podemos encará-lo como a principal ação do SGT-18 referente à pandemia. Essa atividade tem previsão de ser concluída em dezembro de 2022, incluindo a disponibilização digital desses estudos.

Sendo assim, chama a atenção o foco dos estudos — e, portanto, desta prioridade do SGT-18 — os impactos das medidas. Ou seja, impactos do fechamento de fronteiras, já que os exemplos dados de áreas impactadas são “trânsito vicinal fronteiriço, transporte de cargas por rodovias, comércio de subsistência, atenção à saúde” no referido programa de trabalho. Similarmente, durante o “Fórum de Políticas Sociais do Mercosul” — promovido pela Presidência Pro Tempore (PPT) do Mercosul conduzida pelo governo argentino — o chanceler daquele país, Felipe Solá, destacou que as fronteiras abertas são o espírito do Mercosul.

Embora nomeadamente voltado à integração fronteiriça, o fórum não envolveu o SGT-18 e nos leva a olhar para a coordenação interna. Quando foi informado da realização do mesmo, a delegação paraguaia no órgão sugeriu incluir alusão às atividades do SGT-18 na apresentação do evento. Porém, o informe de finalização da PPT argentina sequer mencionou o órgão permanente especificamente dedicado à integração fronteiriça — isto é, o SGT-18. Também não o fizeram a ata n. 2 de 2021 do Foro de Consulta e Concertação Política (FCCP), o comunicado de imprensa da chancelaria argentina ou notícias da Agência EFE, Agência IP, Forbes Colômbia, Mercosur ABC e Sputinik.

Ao mesmo tempo, a divisão do fórum em três painéis temáticos indicou outras ênfases, alheias aos trabalhos do SGT-18. Cada painel coincidiu com projetos desenvolvidos pelo Instituto Social do Mercosul (ISM), que deu apoio na realização do fórum. Podemos ver no Quadro 1 correlações entre os painéis e atividades desenvolvidas pelo ISM, a partir do que relatou o informe de finalização da PPT argentina e das pessoas convidadas a serem painelistas no fórum.

Quadro 1 — O Fórum de Políticas Sociais do Mercosul e os projetos do Instituto Social do Mercosul

Painel do Fórum de Políticas Sociais do Mercosul Atividade do Instituto Social do Mercosul
Países mais integrados, mais pessoas protegidas Estudo “Cidadania em Zonas de Fronteira
Integração cidadã e proteção social no MERCOSUL (Crianças/Adolescentes e Jovens) Projeto “Juventudes e Fronteiras no Mercosul”, com o Fundo de População das Nações Unidas
Sistemas de saúde nas fronteiras e intercâmbio de informação epidemiológica do MERCOSUL Projeto “Cooperação transfronteiriça em matéria de saúde com ênfase na facilitação da mobilidade do paciente”, com o Programa da União Europeia para a Coesão Social na América Latina (EUROsociAL+)

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do portal do Instituto Social do Mercosul.

Consultando o portal do ISM, chama também a atenção que esse instituto já produziu estudos intitulados “Impacto da COVID-19 nas cidades fronteiriças do Mercosul: comércio e turismo afetados” e “Impacto COVID-19 em fronteiras”. E também dedicou o quarto volume da revista científica que publica ao tema “Fronteiras e políticas de saúde: uma aproximação em tempos de pandemia” (REVISTA MERCOSUL DE POLÍTICAS SOCIAIS, 2020). Em função disso, cabe sabermos que houve um objetivo de elaboração de estudo no programa de trabalho anterior do SGT-18 e o informe de cumprimento de tal programa apontou o objetivo como parcialmente cumprido, valendo-se de uma publicação precedente relacionada ao Brasil (PESSOA, SOUZA, 2021, p. 240).

O ISM não é um dos órgãos do Mercosul listados como prioritários na resolução constitutiva do SGT-18 para o cumprimento das funções de coordenação interna. A Secretaria do Mercosul (SM) também não é um desses órgãos e isso não impediu a aproximação criada entre ambos para a produção dos mapeamentos temáticos e normativos e outras atividades (PESSOA, SOUZA, 2021). Tampouco impediu a participação do então diretor do ISM na quarta reunião ordinária do SGT-18 apresentando a experiência do instituto em desenvolver projetos, incluindo alguns relativos às fronteiras (PESSOA, SOUZA, 2021, p. 245).

Se pensarmos em direcionamentos mais amplos do SGT-18, vemos uma conjuntura no Mercosul marcada pela tendência à institucionalidade mínima (CLEMENTE, 2017, p. 4). Desde meados da década de 2010, a reforma institucional e a eficiência da gestão são pautas importantes. Nessa tendência, o Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul (FCCR) deixou de ser órgão permanente, passando a funcionar sob a eventual convocação de conferências. A sobreposição temática com o SGT-18 foi alegada, mas não só, para efetuar tal transformação (PESSOA, SOUZA, 2021, p. 246), o que acaba por colocar o SGT-18 como instância substituta ao órgão que reunia governos subnacionais do Mercosul — sendo de áreas da fronteira ou não.

O novo modelo para programas de trabalho também se insere nessa pauta da eficiência, para avaliar a atuação dos órgãos do Mercosul, se há cumprimento de seus objetivos e se podem ser reduzidos, fundidos ou mesmo eliminados. Com tal tendência no horizonte, aumenta a necessidade de melhorar a coordenação de esforços e as interlocuções do SGT-18, evitando sobreposição. Em setembro de 2021, o SGT-18 conseguiu fazer uma reunião conjunta com o Subgrupo de Trabalho n. 11 “Saúde” (SGT-11). Embora registros dessa reunião não estejam disponíveis, o histórico do SGT-18 (PESSOA, SOUZA, 2021) sugere o tema do translado de restos mortais como pauta dessa reunião.

Embora haja outras ações em curso no tema da saúde, antes mesmo do início da pandemia de COVID-19, o SGT-18 priorizou uma especificamente e tem até o fim do próximo ano para cumpri-la. Essa escolha mostra alguma preocupação com a avaliação de políticas e compromisso com as vontades presidenciais declaradas de impactos reduzidos, como também talvez reforce a ideia do espírito do Mercosul. Diante das outras ações, porém, suscita que não houve vontade ou consenso mínimo de partida para negociações a fim de recomendar medidas ou propor normativas. Seja com relação a planos e protocolos sanitários abrangentes, seja a aqueles específicos ao transporte de cargas.

Além do mais, as possibilidades de trabalho coordenado entre SGT-18 e ISM não estão sendo concretizadas. Logo, restam dúvidas se o SGT-18 tomará conhecimento das produções do ISM e, com isso, direcionará seus estudos para algo diferente do já produzido ou se valerá de algum(ns) deles para apresentar um cumprimento parcial mais uma vez. E, ao lado de outras motivações, a tendência já mencionada, uma vez perdurando, pode atentar-se ao SGT-18 e afetá-lo, impactando o órgão permanente e coordenador para a temática fronteiriça e substituto do FCCR. Por fim, independentemente das possibilidades de coordenação, uma vez anunciada a consecução do objetivo, há a seguinte questão: além de disponibilizá-los, o SGT-18 pretende fazer mais alguma coisa quando estiver com os estudos em mãos?

REFERÊNCIAS

CLEMENTE, Isabel. Cooperación descentralizada en Mercosur: el caso de las unidades sub-nacionales en la frontera Uruguay-Brasil. In: Congresso Internacional FoMerco, 16., 2017, Salvador. Anais eletrônicos… [Salvador]: FoMerco, UFBA, UNEB, 2017. p. 1-17. Disponível em: http://www.congresso2017.fomerco.com.br/resources/anais/8/1508105025_ARQUIVO_TrabalhoIClemente2017.pdf. Acesso em: 31 jan. 2020.

PESSOA, Luan Olliveira; SOUZA, Lucas Eduardo Silveira de. A integração fronteiriça no Mercosul: histórico, balanço e perspectivas nos 30 anos do bloco. Brazilian Journal of International Relations, Marília, v. 10, n. 1, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.36311/2237-7743.2021.v10n1.p222-252. Acesso em: 30 nov. 2021.

REVISTA MERCOSUL DE POLÍTICAS SOCIAIS. Assunção: Instituto Social do Mercosul, v. 4, dez. 2020. Disponível em: https://revista.ismercosur.org/index.php/revista/issue/view/5. Acesso em: 3 dez. 2021.

RÜCKERT, Aldomar Arnaldo; DIETZ, Circe I. Integração regional, a região transfronteiriça da bacia do Rio da Prata e os projetos de infraestruturas de conexão. Confins, Paris/São Paulo, n. 17, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.4000/confins.8216. Acesso em: 30 dez. 2020.

RÜCKERT, Aldomar Arnaldo; SUPERTI, Eliane; PORTO, Jadson L. R.; CAMPOS, Heleniza A. Transfronteirizações na América do Sul: uma agenda de pesquisa sobre dinâmicas territoriais nas fronteiras meridional e setentrional do Brasil. In: PONTES, Beatriz Maria Soares; ALBUQUERQUE, Edu Silvestre de. (org.). Os desafios geopolíticos da América do Sul. 1. ed. Natal: RB, 2015.

Escrito por

Luan O. Pessoa

• Doutorando e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Bolsista pela CAPES. Pesquisador-membro do Observatório de Regionalismo (ODR). Docente do bacharelado de Relações Internacionais do Centro Universitário Jorge Amado (UniJorge). Interessado em integração regional, economia política internacional, paradiplomacia, política externa brasileira, desenvolvimento regional, América Latina e Caribe, Mercosul, Nordeste Brasileiro. • Lattes · ResearchGate · Instagram · ORCID ·