Artigo por Mayara Pecora de Araujo Vieira
Graduanda em Geografia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de Pesquisa em Geografia Política e Meio Ambiente do Laboratório de Geografia Política da USP (GEOPO – USP) e integrante do projeto de pesquisa “Expandindo a cooperação internacional e a capacitação em matéria de recursos hídricos” (Projeto CICRH). Possui interesse em pesquisas acerca dos Recursos Hídricos, meio ambiente, sustentabilidade e biodiversidade. E-mail: mayarapecora@usp.br
A demanda por água é crescente na atualidade e interliga a todos pela sua inserção no desenvolvimento humano, ambiental e econômico. Estima-se que “o uso global de água doce aumentou seis vezes nos últimos cem anos e, desde a década de 1980, continua a crescer a uma taxa de cerca de 1% ao ano” (AQUASTAT, s.d. apud UNESCO, 2021, p. 2). Portanto, o seu mau uso pode ser um dos principais fatores para a limitação do desenvolvimento em diversas regiões do planeta. A disponibilidade hídrica ainda pode ser afetada por uma série de aspectos, tais como as disputas territoriais, a poluição hídrica transfronteiriça, a escassez, e os conflitos pelo abastecimento e saneamento da água. Esses fatores sensibilizam e influenciam diretamente a desigualdade social e a vulnerabilidade hídrica das populações. Essas variáveis aplicam ainda mais pressão à gestão de recursos hídricos, comprometendo drasticamente a segurança hídrica dos países, principalmente aqueles mais vulneráveis e que tendem a possuir mais dificuldades para enfrentar tais problemas.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO), a segurança hídrica é definida como a capacidade de uma população de preservar o acesso à água de maneira adequada e qualitativamente aceitável para a sobrevivência dos seres humanos e dos ecossistemas (MAKARIGAKIS; JIMENEZ-CISNEROS, 2019, tradução nossa). A necessidade de compartilhamento de água devido a escassez hídrica em regiões transfronteiriças, tal como em países árabes onde “quase 86% da população […] vive em condições de escassez ou escassez absoluta de água” (UNESCO, 2019a apud UNESCO, 2021, p. 10), muitas vezes converte-se em problemas de gestão e governança hídrica, afetando rigorosamente a população local. Garantir a disponibilidade hídrica de maneira adequada torna-se um desafio em meio a escassez da água, já que ultrapassa fronteiras.
Inserido neste cenário, o Processo de Berlim, iniciado em 2008, é uma proposta da Alemanha e da União Europeia (UE) a fim de apoiar repúblicas em conflito na Ásia Central – Cazaquistão, Turcomenistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Quirguistão – mediando e tornando a água um assunto de cooperação transfronteiriça no uso de recursos hídricos. O objetivo principal é a reaproximação política, tendo em vista o histórico de conflito na região, contribuindo para a estabilidade, segurança e desenvolvimento econômico sustentável e para criar, a longo prazo, estruturas para uma gestão conjunta de água e energia na Ásia Central (ABDOLVAND et al., 2014, tradução nossa).
A primeira fase deste processo (2008-2011) consistiu no aconselhamento político e no fortalecimento de instituições para a gestão de rios transfronteiriços. A fase II (2012-2014) apoiou principalmente o desenvolvimento de soluções para combater o crescente impacto das mudanças climáticas nos recursos hídricos na região. Por fim, a fase III (2015-2017), teve como finalidade institucionalizar a cooperação hídrica gerenciada de forma independente entre os estados envolvidos (Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, 2015, tradução nossa).
Segundo Pinto (2017), cerca de 40% das bacias hidrográficas e aquíferos são compartilhadas por mais de um país, dentre elas 19 bacias são compartilhadas por cinco ou mais países. É o caso das bacias dos rios Syr Darya e Amu Darya que atravessam os países da Ásia Central e desaguam no Mar de Aral. Buscando uma gestão integrada dos recursos hídricos, o Processo de Berlim apoia as instituições da região com atividades de capacitação e diversos projetos-piloto que foram implementados com finalidade de reabilitar a infraestrutura hídrica, introduzir a irrigação eficiente e a criação de bancos de dados e mapas usando Sistemas de Informação Geográfica (SIG), com a finalidade de monitoramento do programa.
Para Santos (2020), vários fatores contribuíram para uma falta de integração na Ásia Central, tais como a assimetria entre os países, o conflito de interesses e a ausência de consenso entre eles, ou seja, a inexistência de qualquer esforço integrativo. Santos (2020) destaca ainda sobre a resistência dos países em ceder parte de sua soberania nacional, já que havia forte influência da Rússia e da China. Entretanto, com a implementação da capacitação, é possível responder de forma eficaz aos desafios de uma gestão cooperada, minimizando os aspectos conflitantes da região por meio da aprendizagem e da aquisição de conhecimentos. Embora a capacitação seja uma fase de pré-requisito para uma ação, ela conduz à implementação de ações e de estruturas organizacionais funcionais (ABDOLVAND et al., 2014, p. 899, tradução nossa), desenvolvidas pelos próprios países, o que segundo Santos (2020), resultaria em uma integração regional efetiva e exitosa.
Em âmbito global, é importante ressaltar que pela primeira vez o tema da água potável e saneamento básico equitativo e universal foi adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), proposta da Agenda 2030, incluem o ODS 6 “Água Potável e Saneamento”, demonstrando a importância da segurança da água na agenda internacional, com a finalidade de uma melhor gestão desse recurso. Esse processo deve contar com mecanismos de disseminação de conhecimento sobre os objetivos e as metas do programa, levando em consideração o contexto da região em que serão aplicados, visando capacitar lideranças nacionais e locais, com a disponibilização das ferramentas necessárias e o fomento de parcerias. A meta 6.5 é dedicada à implementação da Gestão Integrada de Recursos Hídricos (GIRH) em todos os níveis, incluindo a cooperação transfronteiriça (ONU, 2015).
A título de exemplo de uma cooperação regional considerando a integração desenvolvida pelos próprios membros, temos o Comitê Intergovernamental de Coordenação dos Países da Bacia da Prata (CIC) – Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai -, em que os governos decidiram incorporar a capacitação como mecanismo para enfrentar desafios da gestão dos recursos hídricos a partir de um Programa de Ação, incluindo as relações entre as águas superficiais e subterrâneas e suas ligações com o uso da terra e o clima. A partir de uma abordagem integrada, diversos atores da sociedade puderam identificar e priorizar problemas comuns e suas principais causas, a fim de enfrentá-los de forma adequada, conjunta e coordenada (CIC, 2016, tradução nossa). Em determinadas situações, novas estruturas jurídicas e acadêmicas foram criadas, em função das necessidades de cada projeto e das solicitações regionais.
O programa possibilitou a sensibilização da comunidade para a importância de trabalhar em conjunto, a nível de cada região da bacia, para resolver os problemas socioambientais locais. Embora as atividades realizadas variem devido às demandas particulares, em geral, os resultados alcançados estão associados à melhoria da qualidade de vida de seus habitantes a partir das propostas surgidas. A capacitação ocupou um papel significativo na liderança da identificação, promoção e execução de ações corretivas e sustentáveis (CIC, 2016, tradução nossa).
A cooperação transfronteiriça em prol de uma gestão eficaz e sustentável pode auxiliar e apoiar a estabilidade e a segurança hídrica de determinadas regiões. Destaca-se que 2 bilhões de pessoas vivem em países com estresse hídrico e 1,6 bilhão de pessoas enfrentam escassez ‘econômica’, isso demonstra que apesar da água estar fisicamente presente em determinadas regiões, não existem infraestruturas adequadas para seu acesso (UNESCO, 2019), o que acarreta em um crescente impacto sobre a governança hídrica e um forte envolvimento em conflitos entre seus usuários. Telarolli (2020) destaca Wolf et al. (2003) em referência a importância da cooperação na resolução de problemas de águas transfronteiriças, ainda que não exista um acordo universal que trate dos recursos hídricos. Telarolli (2020) aponta ainda para a sensibilização em âmbito local ou regional tendo em vista os problemas que envolvam a água e como esta questão vem sendo abordada no contexto da integração regional.
A cooperação internacional na escala das bacias hidrográficas compartilhadas permite que a instrumentalização da governança global se insira como forma de aplicar uma política e estratégia tida como neutra e racional, mesmo que seja, intrinsecamente, formada pela racionalidade econômica (SANT’ANNA, 2011). No entanto, a inclusão participativa da população nos programas públicos é um processo em que a comunidade pode influenciar as questões relativas aos recursos hídricos, e mesmo que o impacto seja mínimo, o processo de inclusão submeteu as agências e entidades públicas a responder e justificar com mais detalhes o conteúdo do plano, e ao fazê-lo, consequentemente, o plano final foi melhorado (BALLESTER; LACROIX, 2016, tradução nossa).
Dessa forma, as bacias poderiam ser melhor coordenadas sob um sistema de governança global da água, que leve em conta as interações relativas nas diversas escalas (local, regional e nacional), o que requer o amplo envolvimento de instituições multilaterais e políticas internacionais para que a gestão da água seja implementada (SANT’ANNA, 2011).
Diante disso, os estudos comparativos de casos sobre o papel da governança participativa permitem obter uma base de conhecimento sobre como determinados problemas hídricos podem ser resolvidos. É o caso do estudo realizado por Jacobs et al. (2010) em quatro bacias hidrográficas: na bacia do Ceará no Brasil, no Vale Yaqui no México, na bacia do rio Upper Ping na Tailândia e nos Estados Unidos, na bacia superior de San Pedro. Os casos comparativos mostraram que a capacitação é necessária para desenvolver conhecimentos bem estruturados, o que gera um engajamento das partes interessadas nas atividades de planejamento, implementação e adaptação de uma gestão mais sustentável (JACOBS et al., 2010, tradução nossa).
Esse conhecimento de base significa obter as análises dos processos de governança sobre os recursos hídricos transfronteiriços apoiado em uma abordagem multi-escalar, tal como Sant’Anna (2011) propõe ao considerar as diferentes perspectivas em todos os níveis de governança. Na esfera local, por exemplo, a capacitação pode “fornecer a base de conhecimento científico para aconselhamento político sólido, a fim de gerenciar e lidar com os desafios aos recursos hídricos na prática e aumentar a resiliência dos sistemas naturais e humanos com ênfase nas comunidades vulneráveis” (MAKARIGAKIS; JIMENEZ-CISNEROS, 2019, p. 4, tradução nossa).
A falta de financiamento constante limita uma gestão eficiente. Todavia, ainda que os recursos financeiros estejam orientados para a solução de problemas hídricos, a falta de capacitação dos agentes envolvidos, desde tomadores de decisão até os grupos-alvos, costuma resultar na ineficácia da ação. Entretanto, mesmo incluindo a população em tais processos colaborativos de gestão e capacitação, as relações intergovernamentais devem demonstrar-se articuladas, já que os problemas hídricos são, muitas vezes, transfronteiriços. Nesse sentido, a busca pela implementação dos ODS da ONU, especialmente o ODS 6 “Água potável e saneamento”, difunde, através da capacitação, uma confiança e conhecimento sobre o território possibilitando uma identidade coletiva, de forma que os conflitos históricos possam ser superados e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável possam gerar benefícios diários na disponibilidade de água potável para todos através de uma gestão integrada dos recursos hídricos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Comitê de Coordenação Intergovernamental dos Países da Bacia do Prata (CIC). Participación pública, comúnicacion y educación. Dezembro de 2016. Disponível em: <https://issuu.com/comunicacioncicplata/docs/participacion_publica_comunicacion_>
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Muito interessante!!