Imagem do Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Prata (CIC).
Artigo por Henrique Castro Barbosa
Graduando em geografia pela Universidade de São Paulo. Bolsista CNPq de Iniciação Científica, estudando cooperação internacional hídrica na Bacia do Prata. Pesquisador membro do Laboratório de Geografia Política do Departamento de Geografia da USP (GEOPO-USP), onde participa do projeto “Expandindo a cooperação internacional e a capacitação em matéria de recursos hídricos (CIRCH)”. Email:henrique.castro.barbosa@usp.br.
As águas não obedecem a fronteiras. Entre todas as bacias hidrográficas do planeta, quase metade delas não se limita a apenas um país. Como este é um recurso essencial para a manutenção da vida e da sociedade global em diversos usos, como na produção de alimentos, produtos industriais, bem como garantir o equilíbrio de diversos sistemas ambientais, sua gestão adequada é essencial. Essa necessidade se acentua em um contexto de mudanças climáticas, que alteram, muitas vezes de maneira drástica, o ciclo da água por todo o planeta, demandando um esforço conjunto de nações que dividem bacias e aquíferos. Por ser um importante bem econômico, ambiental e social, a água não raramente é objeto de ambições políticas, o que pode gerar desafios para um projeto de cooperação hídrica entre os seus participantes. Para que tais acordos sejam bem-sucedidos e garantam o cumprimento de metas de bem comum, é essencial que possíveis divergências políticas sejam superadas, o que se trata de um importante desafio dentro dos contextos de cooperação hídrica.
O artigo tem como objetivo central fazer uma análise da cooperação hídrica na Bacia do Prata, dada sua importância social, econômica e política, o que a configura como região de interesses estratégicos para os países que dela fazem parte. O texto dará especial ênfase ao papel da construção institucional na formação dos arranjos cooperativos para as águas do Prata.
A cooperação internacional hídrica é caracterizada como heterogênea devido às particularidades de cada bacia, as quais possuem aspectos geográficos, sociais e econômicos distintos. Contudo, nota-se que um ponto em comum entre os acordos é a importância em haver institucionalidade sólida para que os objetivos pretendidos sejam alcançados. Os processos de integração regional podem afetar positivamente a construção institucional de determinados arranjos para a temática hídrica (TELAROLLI, 2021).
A Bacia do Prata, localizada em uma área que compreende territórios de Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai, conta com um programa de cooperação intergovenamental organizado pelo Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Rio da Prata (CIC), fundado no final da década de 1960. É através dessa instituição que “os cinco países coadministram a bacia através de uma rede de tratados internacionais, regionais e de agências domésticas, e de numerosos projetos cooperativos” (ALACANIZ e BERNARBO, 2016. p. 1121).
Antes de elencar os pontos que podem ameaçar o bom cumprimento de um acordo multilateral de cooperação hídrica intergovernamental, é importante apresentar um panorama do que se configura como elementos facilitadores para que eles sejam bem executados. Petersen-Perlman, Veilleux e Wolf (2017), apontam que o conteúdo que acordos tocam está em evolução. Os autores argumentam que uma causa para isso é o próprio cenário de mudanças climáticas, que faz com que acordos que se baseiam em segurança hídrica sejam cada vez mais prevalecentes. Esse conceito, segundo a Organização das Nações Unidas ([2021]), se trata da capacidade de garantir o acesso sustentável das populações humanas para que suas necessidades básicas, econômicas e o equilíbrio ambiental de onde vivem sejam garantidos. Levar esse aspecto em consideração é estar cada vez mais importante nos acordos de cooperação hídrica, que podem se complexificar, criando novos conflitos. Essa tendência é observada na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, que lista entre seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), aspectos que se relacionam com essa problemática, como o acesso à água potável e ao saneamento (ODS-6), a ação contra a mudança global do clima (ODS-13) e a vida na água (ods-14), por exemplo.
Em um contexto global onde objetivos coletivos, como os abordados no parágrafo anterior, são prementes, a atuação de partes pautadas em ações de interesse próprio cria uma problemática. Mesmo acordos altamente cooperativos podem estar sujeitos a esse tipo de situação. Espíndola e Ribeiro (2020), destacam que a água por sua importância vital para todos os humanos envolve relações econômicas e comerciais importantes entre países, o que pode reproduzir assimetrias de poder pré-existentes entre as sociedades. Os autores ainda apontam que há uma particularidade interessante na água: apesar de estar geograficamente dentro de certos territórios onde há uma hegemonia estatal, ela é considerada um bem universal, o que não a exime de estar inserida em um contexto altamente competitivo e assimétrico em determinadas situações. Esse cenário faz com que os países busquem salvaguardar a sua soberania frente aos recursos naturais como forma de manutenção de poder, buscando uma gestão das águas que os beneficie e os fortaleça do ponto de vista político.
Espíndola e Ribeiro (2020), ainda resgatam Zeitoun e Warner (2006), que afirmam que esse controle sobre as águas por vezes se dá via estratégias de poder e não por meio de ação militar, o que pode se influenciar nos acordos de cooperação. Petersen-Perlman, Veilleux e Wolf (2017) também abordam o tema ao destacar que nem toda cooperação é benéfica para todos os envolvidos, exatamente por conta de possíveis assimetrias de poder que podem fazer com que um acordo seja pautado em benefício de um ator específico, que coage outro a participar mesmo contra seus interesses. Furlong (2006), ainda vai além, ao argumentar que uma cooperação entre países que dividem corpos de água só acontece quando o ator cujo poder é dominante, aceita o acordo– ou é coagido a isso por um ator externo que tenha mais poder. Essa grande relevância que um poder hegemônico coloca na equação de acordos de cooperação hídrica pode ser uma ameaça ao funcionamento dos mesmos.
Assimetrias de poder em um acordo, portanto, são uns dos grandes desafios atuais da área. Autores como Jägerskog e Zeitoun (2009) e Warner e Zawahari (2012) (apud ESPÍNDOLA e RIBEIRO, 2020), acreditam que para que uma cooperação forte pautada em equidade, são necessárias instituições com estruturas sólidas que engajem uma participação nos níveis da comunidade, bem como nos níveis nacionais e regionais.
Petersen-Perlman, Veilleux e Wolf (2017) apontam, porém, que não basta que as instituições existam para que o conflito seja minimizado e a cooperação ocorra de maneira benéfica. Os três autores listam características importantes que devem estar presentes para que tais capacidades institucionais, de fato, confiram uma garantia de equidade para a resolução de conflitos. Entre as características estão: uma estrutura que seja flexível de acordo com a mudança das demandas; tenha critérios claros de distribuição de benefícios de maneira equitativa entre os participantes e mecanismos de resolução de conflito muito bem detalhados; e a formação de um fórum onde as negociações possam ocorrer de maneira a dar voz a todas as partes do processo de tomada de decisão.
Um caso bem-sucedido de cooperação hídrica internacional é a Convenção do Rio Danúbio, na Europa, assinada em 1994. Espíndola e Ribeiro (2020) destacam que seu sucesso, mesmo em uma área com alto potencial de conflito, se deu por conta de uma sólida estrutura legal, que integrou o gerenciamento dos recursos hídricos e a proposta colaborativa do acordo, que dava importância para participação pública da sociedade civil bem como organizações não governamentais.
Outros acordos, porém, não possuem estruturas tão sólidas e organizadas, o que faz com que mesmo com uma cooperação – muitas vezes em curso há décadas – não consiga ser efetiva em diversos pontos. É o caso da Bacia do Rio da Prata, onde o CIC ainda não é totalmente eficaz em resolver conflitos na região por conta de sua fragilidade institucional. Espíndola e Ribeiro (2020), concluem em seu estudo que as instituições, devido a esse fator, não possuem os meios necessários para prevenir que conflitos ocorram na bacia. Isso se dá exatamente por conta de sua fragilidade institucional, evidenciada em um documento produzido pelo próprio CIC (Tucci, 2006), que aponta, por exemplo, a falta de unificação de estruturas legais, de sistemas de informação e projetos de gestão entre os cinco países da bacia, o que evidencia essa fragilidade.
O CIC, apesar de ainda falhar em promover uma unificação completa, como apontado, foi o precursor de uma integração no contexto da Bacia do Prata. Essa integração, entretanto, é assimétrica entre os próprios países participantes. Rückert e Dietz (2013), apontam que as fronteiras sul-americanas possuem diferenças notáveis. Enquanto no chamado Arco Sul – onde Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai se encontram – há grande articulação transfronteiriça, com cidades ligadas entre si nos âmbitos culturais e econômicos, o mesmo não acontece mais ao norte (RÜCKERT; DIETZ, 2013). Assinado em 1991, o Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercosul, não tem entre seus fundadores a Bolívia, país membro do CIC. Seu núcleo geoeconômico coincide com a região da Bacia do Prata no seu centro-sul (RÜCKERT; DIETZ, 2013), sendo um acordo entre os países do continente que já possuíam uma maior integração fronteiriça. Contudo, a ausência da Bolívia entre os membros fundadores do Mercosul pode ser um elemento desafiador na construção de uma maior intersecção entre os temas abordados no CIC e no Mercosul.
O Mercosul, importante destacar, já trazia desde o começo uma preocupação ambiental no seu texto fundacional, embora muito atrelada com a questão comercial (daí talvez a exclusão boliviana). A questão ambiental é pauta relevante no bloco, já tendo contado com a criação de instâncias especializadas para o tema, o que é de grande importância para contextualizar a questão em um projeto de integração internacional (LEITE, 2017). Apesar disso, um desafio nesse aspecto que o Mercosul ainda não equacionou é a assimetria legislativa no que se refere ao meio ambiente, que carece de maior harmonização. Alguns temas hídricos necessitam de articulações internacionais, para além da questão de harmonização legislativa, sendo uma instância regional prévia, um elemento que pode facilitar essas articulações necessárias.
O maior desafio do Mercosul em conseguir promover uma integração efetiva em relação à questão ambiental, portanto, se dá em vencer a falta de harmonização legislativa e fortalecer a institucionalidade como forma de prover uma atuação mais assertiva do bloco na área e, inclusive, trabalhar de forma mais articulada com o CIC. Isso tem como impedimento uma falta de entendimento político, segundo Ferreira (2017). A autora argumenta que tal processo deve ocorrer num sentido holístico e vertical politicamente, junto da sociedade civil, o que geraria entendimentos que construiriam normas específicas para o meio ambiente (FERREIRA, 2017). Ainda, Souza (2003) traz afirmação que complementa a questão ao apontar a “falta de transparência e de relação com a sociedade, de maneira geral, no que se refere à atuação dos subgrupos do Mercosul” (SOUZA, 2003. p. 20). Esse contexto representa uma fragilidade importante na integração transfronteiriça que também acontece na Bacia do Prata em aspectos mais amplos.
A estruturação de bases sólidas, ainda é um desafio a ser pensado e trabalhado por acordos de gestão de recursos hídricos, caso eles pretendam trabalhar em direção a uma cooperação que se paute em valores de equidade e que produza resultados pensando nas principais problemáticas atuais da área, como, por exemplo, uma política que pense em ações que visem a mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
Referências
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FERREIRA, L. O Mercosul e a proteção jurídica da água doce. Repositório Institucional da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. 2017.
FURLONG, K. Hidden theories, troubled waters: International relations, the ‘territorial trap’, and the Southern African Development Community’s transboundary waters. Political Geography v. 25, p. 438-458. 2006.
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RÜCKERT, A. A.; DIETZ, C. I. Integração Regional, a região transfronteiriça da bacia do Rio da Prata e os projetos de infraestruturas de conexão. Revista Franco-Brasileira de Geografia, N° 17, 2013.
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LEITE, M. L. T. A. Retrato do Meio Ambiente no Mercosul: o caso do acordo do aquífero Guarani. 6° Encontro ABRI: Perspectivas sobre o poder em um mundo em redefinição. Belo Horizonte, 2017.
TELAROLLI, M. L. As águas subterrâneas nos blocos regionais: os casos do Mercosul e da União Europeia. Observatório de Regionalismo, 2021. Disponível em: observatorio.repri.org/2021/04/06/as-aguas-subterraneas-nos-blocos-regionais-os-casos-do-mercosul-e-da-uniao-europeia/. Acesso em: 26 de abril de 2021.
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