Luísa Locatelli Santos

Graduanda em Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – UNESP – Campus de Franca. Membro do Grupo de Pesquisa e Estudos em Ásia, um grupo de extensão desta mesma instituição. Seus principais temas de interesse são: Política Externa da China, relações bilaterais Brasil-China e Estudos do Leste Asiático. E-mail locatellisluisa@gmail.com.

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Após anos à margem das principais discussões da seara internacional, a Ásia Central voltou a ocupar espaço de relevância, muito graças a suas abundantes reservas energéticas e seu papel estratégico na ambiciosa iniciativa chinesa da Belt and Road. Em situação tão singular, mas ainda assim sem receber devida atenção da Academia – ao menos a ocidental -, o presente artigo busca apresentar o histórico dessa região a partir de processos e mecanismos de integração e, ao final, apontar os efeitos da ingerência de atores externos, notadamente Rússia e China, sobre as tentativas de integração na Ásia Central. Desta forma, espera-se suscitar o interesse por esta região pouco compreendida, mas que em breve demandará profissionais qualificados capazes de analisar sua nova posição no cenário global.

Desde a independência das repúblicas centro-asiáticas em 1991, o tema da integração regional vem sendo debatido, em especial o seu viés econômico. Conhecidos como os ‘-stãos’, Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão compartilham além de laços históricos, culturais, religiosos e linguísticos, uma miríade de desafios – a transição para uma economia de mercado logo após o colapso da União Soviética, questões relacionadas à gestão das águas, a influência de atores externos, questões geopolíticas e securitárias diversas, entre outros.

Pobres, periféricos e despreparados com a repentina independência, os países da Ásia Central reconheceram que, dada a conjuntura, o crescimento econômico e a estabilidade política seriam mais facilmente obtidos por meio de esforços cooperativos e integrativos. Nas palavras de Nurzhan Zambekov1:

De 1990 a 1993, após a independência em relação à União Soviética, havia uma consciência comum da necessidade de um processo de integração – para formar uma união que garantisse a sobrevivência como estados independentes. Havia um entendimento mútuo de que não era possível se desenvolver com sucesso individualmente e que havia maior segurança em grupo (2015, n.p.)2

Sendo assim, havia um entendimento mútuo quanto à necessidade de maior engajamento intrarregional para a sobrevivência na condição de jovens Estados independentes. Em ressonância com o pensamento de Farkhod Tolipov3 (2018), o ganho da independência apresentou para esses países tanto uma condição como um incentivo para uma efetiva integração.

Em 1994, a União Centro-Asiática foi criada, marcando o início do processo de integração da Ásia Central. Formada por Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão, visava ao desenvolvimento e à implementação de projetos que promovessem a integração econômica. Um conselho intergovernamental foi estabelecido, assim como um banco de desenvolvimento, o Central Asian Bank of Cooperation and Development. O Tadjiquistão se juntou à iniciativa em 1998, que passou então a ser chamada de Comunidade Econômica Centro-Asiática, e posteriormente, em 2001, mudou para Organização de Cooperação Centro-Asiática (CACO4). Em 2004, a Rússia se juntou à Organização, que, no ano seguinte, foi incorporada à Comunidade Econômica Eurasiática (EEC5).

Contudo, a CACO e a EEC possuíam agendas diversas e tinham como foco diferentes regiões. O cerne da incompatibilidade entre as duas organizações estava estampado em seus nomes. A Organização de Cooperação Centro-Asiática era exclusiva e intrinsecamente centro-asiática, formada – durante a maior parte de sua existência – apenas por países da região e pensada para atender aos interesses comuns dos seus quatro membros. A Comunidade Econômica Eurasiática, por sua vez, por se tratar de uma iniciativa para a Eurásia, incluía como membros a Bielorrússia e a Rússia, sendo por esta última chefiada. Em essência, o fato de Ásia Central e Eurásia não constituírem a mesma região e de a Rússia exercer influência desproporcional na EEC representaram um duro golpe ao projeto de integração centro-asiático, que foi então interrompido em 2005.

Em retrospecto, ao longo de toda a década de 1990 e início do século XXI, os países da região ambicionaram a criação de um mercado comum que, posteriormente, transformaria-se em uma união aduaneira e monetária, mas o tempo mostrou que apesar dos muitos discursos, declarações e boas intenções dos governos envolvidos, o processo de integração foi mais moroso e conturbado do que se previa.

Para além dos contratempos na institucionalização dos esforços integrativos mencionados nos parágrafos anteriores, outros aspectos de ordens variadas contribuíram para a inviabilização das iniciativas de integração regional, como por exemplo: a disputa por recursos, especialmente água e energia, entre Tadjiquistão e Uzbequistão; a neutralidade e quase isolamento do Turcomenistão, que não participou de nenhum dos mecanismos de integração; a rivalidade entre o Cazaquistão, o país mais rico, e o Uzbequistão, o país mais populoso, pela liderança regional; a insatisfação de países menores que sentiam que suas vozes não estavam sendo ouvidas; e o total desinteresse das elites uzbeques na cooperação intrarregional e na integração. (Zhambekov, 2015)

Para alguns estudiosos, a não superação destes aspectos, a extinção da CACO e a inexistência de qualquer esforço integrativo autêntico pelos países da região na última década respaldam o argumento de que o processo integrativo na Ásia Central falhou. Segundo Zhambekov (2015), o único exemplo exitoso das tentativas de cooperação e integração na região teria sido o Tratado de Semei de 2006, conhecido também como Tratado de Semipalatinsk, por oficializar o consenso e o compromisso de todos os países centro-asiáticos em tornar a região uma Zona Livre de Armas Nucleares. 

De forma geral, constata-se que os fatores que dificultaram os esforços integrativos estão relacionados à assimetria existente entre os países da região (em termos de área geográfica, capacidade produtiva e força econômica), o conflito de interesses e a ausência de um consenso entre eles. A baixa diversificação das pautas exportadoras desses países, que são baseadas, majoritariamente, em recursos minerais e energéticos e são concorrentes entre si, e a relativa falta de infraestrutura intrarregional (realidade que pode se transformar no médio-longo prazo, devido aos investimentos chineses na região) também devem ser consideradas.

Não obstante, uma das principais razões para a ineficiência dos esforços de integração na Ásia Central tem íntima relação com a forma como o princípio da soberania é vista por esses países. Como bem sintetiza Selda Atik6:

No entanto, o problema comum nas integrações econômicas vividas até o momento na região é o fato de que, com medo de perder a soberania nacional, os membros de tais formações sempre agiram de acordo com seus próprios interesses nacionais, em vez de servir a propósitos supranacionais (2014, p. 1333)7

Considerando que os países centro-asiáticos gozam de independência há pouco menos de 30 anos, não surpreende o fato de eles se identificarem com o intergovernamentalismo, ou seja, com a ideia de que, mesmo no âmbito regional, os Estados nacionais permanecem como principal centro tomador de decisões e as instituições nacionais conservam mais poder do que qualquer organismo supranacional. Além de priorizarem a soberania decisória de seus governos, os países da região ainda reconhecem a relevância dos temas econômicos na formação de preferências, como pode ser observado pela importância dada à integração econômica desde a criação da União Centro-Asiática em 1994.

Nesse sentido, também é possível pensar como a criação de instituições supranacionais de decisão, premissas do funcionalismo e do neofuncionalismo, é algo distante da realidade centro-asiática, ainda mais atualmente com a inexistência de um mecanismo de integração exclusivo dos cinco países da região. Há, todavia, o reconhecimento da importância de instituições intergovernamentais efetivas e permanentes para garantir que as boas intenções e a retórica dos governos sejam convertidas em ações práticas de impacto, como afirmam Cornell e Starr8:

A coerência e o rigor das futuras estruturas institucionais da Ásia Central determinarão sua eficácia. Isso, em vez de uma retórica de alto nível sobre cooperação regional ou reuniões e conferências isoladas e altamente divulgadas, moldará o futuro da Ásia Central (2018, n.p.)9

Por fim, não seria possível tratar da integração na Ásia Central sem abordar a influência de Rússia e China. É fato que a manutenção de boas relações com ambos os países é de crucial importância para a estabilidade política e o desenvolvimento econômico da região, considerando o quão dependente a região é, de formas distintas, dessas duas potências. Todavia, infere-se que um dos maiores desafios que esses países já enfrentam é o de manter a cooperação e a integração regional “100% centro-asiática”, ou seja, evitar que Rússia e/ou China estejam presentes no seio de instituições centro-asiáticas ou que instituições e projetos por elas comandadas (a exemplo da União Econômica Eurasiática, da Organização de Cooperação de Shanghai e da Belt and Road Initiative) afetem de forma desproporcional as dinâmicas regionais.

Especificamente no contexto da Belt and Road, porém, é possível observar que a chegada de grandes investimentos chineses e a aproximação do gigante asiático com alguns governos locais já expuseram a fragilidade da “união” centro-asiática e a dificuldade desses países em manter uma fronte unida quando fissuras intrarregionais e pressões externas estão em jogo.

Mas como Cornell e Starr (2018) argumentam, uma lição deve ser aprendida com o fim da CACO logo após a entrada da Rússia e de sua incorporação à EEC, e essa é a de que “a cooperação centro-asiática deve permanecer centro-asiática de modo a evitar que perca seu propósito novamente”10. Movidas por seus próprios interesses políticos e econômicos, essas potências possuem o potencial de ferir e até mesmo ceifar os esforços de integração centro-asiáticos. Desse modo, cabe aos países da região saber usufruir de forma inteligente de dois vizinhos tão poderosos e interessados na região.

Conclui-se que a década de 1990 e os primeiros anos do século XXI foram marcados por contínuas tentativas dos países da Ásia Central de promover a cooperação e a integração econômica. Foi nesse período também que as jovens repúblicas ex-soviéticas passaram a compreender as inúmeras dificuldades que as separavam de um regionalismo sustentável. O conflito de interesses, a assimetria e ausência de uma visão comum, e resistência dos países em ceder parte de sua soberania nacional constituíram alguns dos obstáculos ao processo de integração. Contudo, o aspecto mais singular das tentativas de integração na Ásia Central está na presença e forte influência de duas potências mundiais: Rússia e China. Ao fim e ao cabo, a chave da questão parece estar em saber dosar essas interações e entender que uma integração regional somente será efetiva e exitosa quando realizada pelos próprios países da Ásia Central, como a história recente da região ensinou.

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NOTAS

1 Nurzhan Zhambekov é um analista econômico e político independente. Ele possui mestrado pela Edmund Walsh School of Foreign Service, da Universidade de Georgetown.
2 No original: “From 1990 to 1993, following independence from the Soviet Union, there was a common awareness of the need for a process of integration – to form a union to survive as independent states. There was a mutual understanding that it was not possible to develop successfully as individual countries and that there was safety in numbers”.
3 Farkhod Tolipov é um analista político uzbeque e diretor do Instituto de Pesquisa “Bilim qarvoni” (“Caravan of knowledge”).
4 A sigla CACO provém de Central Asian Cooperation Organization, o nome em inglês da organização.
5 A sigla EEC provém de Eurasian Economic Community, o nome em inglês da organização.
6 Selda Atik é uma professora do Departamento de Economia da Baskent University, em Ankara, na Turquia.
7 No original: “However, the common problem in the economic integrations experienced until now in the region is the fact that, through fear of losing national sovereignty, members of such formations have always acted in line with their own national interests, instead of serving for supra-national purposes”.
8 Svante E. Cornell é o diretor e S. Frederick Starr é o presidente do Central Asia-Caucasus Institute & Silk Road Studies Program. Eles são os autores do paper “Modernization and Regional Cooperation in Central Asia: A New Spring?”.
9 No original: “The coherence and rigor of Central Asia’s future institutional structures will determine their effectiveness. This, rather than high-flown rhetoric about regional cooperation or highly publicized one-time meetings and conferences, will shape the future of Central Asia”.
10 No original: “Central Asian cooperation must remain Central Asian in order to avoid again losing its purpose”.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATIK, Selda. Regional Economic Integrations in the post-Soviet Eurasia: An analysis on cause of inefficiency. 2nd World Conference On Business, Economics And Management -WCBEM 2013. Ancara: Elsevier. 2014.

CORNELL, S.E.; STARR, S.F..Regional Cooperation in Central Asia: Relevance of World Models. The Central Asia-Caucasus Analyst. Disponível em: <https://www.cacianalyst.org/publications/analytical-articles/item/13547-regional-cooperation-in-central-asia-relevance-of-world-models.html>. Acesso em: 08 out. 2019.

Eurasec and Central-Asian Cooperation Organization Amalgamate. Belarusian Diplomatic Service. Disponível em: <http://mfa.gov.by/en/press/news_mfa/c42701fa1770f018.html>. Acesso em: 07 out. 2019.

LINN, Johannes F. Central Asian Regional Integration and Cooperation: Reality or Mirage? EDB Eurasian Integration Yearbook 2012. Eurasian Development Bank. 2012.

STRONSKI, Paul. Integration Without Liberation in Central Asia. Carnegie Endowment for International Peace. Disponível em: <https://carnegieendowment.org/2018/12/29/integration-without-liberation-in-central-asia-pub-78160>. Acesso em: 07 out. 2019.

TOLIPOV, Farkhod. Central Asia: Delayed Consultations, Suspended Integration. The Central Asia-Caucasus Analyst. Disponível em: <https://www.cacianalyst.org/publications/analytical-articles/item/13578-central-asia-delayed-consultations-suspended-integration.html>. Acesso em: 07 out. 2019.

________________. New Central Asia But Old Great Game? Ramifications of the Consultative Meeting in Astana.The Central Asia-Caucasus Analyst. Disponível em: <http://cacianalyst.org/publications/analytical-articles/item/13506-new-central-asia-but-old-great-game?-ramifications-of-the-consultative-meeting-in-astana.html>. Acesso em: 07 out. 2019.

ZHAMBEKOV, Nurzhan. Central Asian Union and the Obstacles to Integration in Central Asia. The Central Asia-Caucasus Analyst. Disponível em: <https://www.cacianalyst.org/publications/analytical-articles/item/13116-central-asian-union-and-the-obstacles-to-integration-in-central-asia.html>. Acesso em: 08 out. 2019.