Fonte da Imagem: Delegación de la Unión Europea en Argentina (2022) 

No final do último ano, foi realizada a III Reunião de Ministros e Ministras de Relações Exteriores da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e da União Europeia (UE). Mais de quatro anos após seu último encontro, representantes de 60 países[i] se reuniram em Buenos Aires, Argentina, sob o tema “Renovar a parceria birregional para fortalecer a paz e o desenvolvimento sustentável”. O Alto Representante da UE para Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, declarou em coletiva de imprensa que 2023 deve ser o ano da América Latina na Europa, e da Europa na América Latina. O cenário atual de crise na Europa, deflagrado com a pandemia da COVID-19 e com a invasão russa à Ucrânia, aumenta a importância, política e econômica, da parceria estratégica com a América Latina e o Caribe (ALC), estabelecida formalmente em 1999. Segundo Nolte (2023), no contexto da guerra na Ucrânia, os países da América Latina e do Caribe se apresentam como importantes (possíveis) aliados à UE quanto se trata de votar resoluções sobre a Rússia na Assembleia Geral das Nações Unidas. No âmbito econômico, a ALC possui matérias-primas essenciais para a estabilidade energética na Europa, como o gás natural e o petróleo, além de ser um dos maiores fornecedores de nióbio (85% importados do Brasil) e lítio (78% importados do Chile), cruciais para a transformação verde das economicas europeias (Nolte, 2023).

O século XXI reserva desafios transnacionais que só poderão ser enfrentados a partir da cooperação e colaboração internacional, quais sejam: as mudanças climáticas, a revolução tecnológica, e a garantia de coesão social e do Estado democrático de direito. Nesse sentido, a América Latina desponta para a UE como muito mais do que um parceiro econômico e um mercado em crescimento, mas como um importante parceiro político, considerando, principalmente, a defesa do multilateralismo para o enfrentamento dos desafios do século XXI.

Na reunião ministerial, foi acordado um Roteiro Birregional 2022-2023, que inclui a realização da Cúpula Birregional UE-CELAC em julho de 2023, em Bruxelas, retomando, após oito anos de paralisia, os diálogos políticos de alto nível entre os blocos regionais. As atividades previstas nesse roteiro de trabalho abordam temáticas como o fornecimento de matérias-primas e integração de cadeias de produção, a cooperação energética, a promoção de diálogos com a juventude e com a sociedade civil, o combate à criminalidade organizada, e a cooperação em matéria de drogas. Considerando o momento de revitalização da cooperação entre a ALC e a UE, o objetivo deste artigo é discutir as principais iniciativas e projetos de cooperação no âmbito da segurança, tendo em vista a crescente importância de temática na agenda dos dois blocos nos últimos anos.

Dentre os múltiplos tópicos presentes na parceria estratégica, desponta timidamente a cooperação no âmbito da segurança, que aparece em associação com a garantia da paz e da democracia. A instabilidade socioeconômica e dos regimes democráticos nos países latino-americanos e caribenhos é por vezes considerada como ameaça para a boa associação estratégica com a UE e com os objetivos de longo-prazo dessa relação. Nesse sentido, a cooperação no âmbito da segurança, embora não seja uma prioridade bem consolidada, tem adquirido importância desde a adoção da Estratégia da UE para a Segurança Cidadã na América Central e no Caribe, em 2014, e a inclusão do conceito de segurança cidadã no plano de ação UE-CELAC de 2015. Apesar do período de estagnação que as relações políticas UE-CELAC sofreram nos últimos anos, alguns projetos de cooperação técnica no âmbito da segurança continuaram as suas atividades e atingiram resultados satisfatórios. O conceito de “segurança cidadã” permite um entendimento abrangente da segurança, considerando os direitos fundamentais dos indivíduos, e vincula a segurança à construção da cidadania democrática. Esse conceito é relevante para a cooperação entre países latino-americanos e europeus visto a presença e a ascensão de regimes autoritários em ambas as regiões, com maior predominância na América Latina e no Caribe.

Além disso, na reunião ministerial, destacou-se a cooperação para a promoção da paz e a defesa da democracia e dos direitos humanos. De particular relevância para a evolução da cooperação em segurança é a crescente importância atribuída pela UE ao nexo segurança-desenvolvimento. O entendimento da segurança como intimamente vinculada ao desenvolvimento favorece uma abordagem mais abrangente aos conflitos e as crises na América Latina e no Caribe, vislumbrando o desenvolvimento socioeconômico da região.

Nesse sentido, o Programa Indicativo Regional Plurianual (2021-2027) da UE para as Américas e o Caribe elenca como área prioritária a “Governança Democrática, Segurança e Migração”, e destaca como principais desafios à estabilidade e à resiliência dos países latino-americanos e caribenhos as pressões sob a democracia, a insegurança generalizada e o aumento dos fluxos migratórios. A pandemia da COVID-19 é apontada como um dos fatores que agravaram a instabilidade e a insegurança da região, visto o impacto negativo em indicadores socioeconômicos e no acesso à direitos básicos pelos cidadãos. Ainda, o crime organizado é identificado como um desafio compartilhado pelas sociedades na ALC e na UE, sendo um dos principais catalisadores da violência e da insegurança, aprofundando desigualdades sociais e minando a confiança nas instituições públicas. O Programa Plurianual aponta também a fraca governança do meio ambiente e dos recursos naturais, a falta de transparência e a corrupção como questões fundamentais para a cooperação entre as regiões, buscando garantir a segurança dos cidadãos e, principalmente, a proteção dos povos indígenas e de comunidades locais. Por fim, destaca o aumento dos deslocamentos forçados nas Américas, impulsionados pela instabilidade política, violência urbana, pobreza, desastres ambientais e climáticos, entre outros motivos.

Tendo essas prioridades em mente, o Programa Plurianual elenca os principais objetivos para a cooperação entre América Latina e o Caribe e a UE nessa área prioritária, quais sejam:

  1. Fortalecer a governança democrática e aprimorar a transparência, integridade, responsabilidade e capacidade das instituições na América Latina e no Caribe;
  2. Reforçar o Estado de direito e combater o crime organizado transnacional, com total respeito aos princípios internacionais de direitos humanos;
  3. Melhorar as políticas e capacidades de gestão da migração, incluindo nas áreas de deslocamento forçado, proteção dos migrantes, e combate ao tráfico de seres humanos e ao contrabando de migrantes.

Para esses objetivos, existem alguns projetos de cooperação técnica que já foram implementados em anos anteriores e devem ser reforçados ou aprimorados nos próximos anos. Para o fortalecimento de instituições públicas, destaca-se a cooperação entre os organismos responsáveis pela aplicação da lei em ambas as regiões, como a EUROPOL, a Agência da União Europeia para a Formação Policial (CEPOL), a Comunidade de Polícia das Américas (AMERIPOL) e a Agência de Execução para a Criminalidade e a Segurança da CARICOM (IMPACS).

No que tange ao combate da criminalidade organizada e, especificamente, do narcotráfico, destaca-se o Programa de Cooperação em Políticas de Drogas (COPOLAD)[ii]. O COPOLAD está em sua terceira edição, lançada em fevereiro de 2021, e tem um prazo de execução de 4 anos. Trata-se de um programa de cooperação financiado pela União Europeia, com um orçamento de 15 milhões de euros para a sua terceira edição, e liderado pela Fundação Internacional e Ibero-americana de Administração e Políticas Públicas (FIIAPP)[iii], em consórcio com o Instituto Ítalo-Latino Americano (IILA)[iv], e em coordenação com a GIZ[v] e o Observatório Europeu das Drogas e das Toxicodependências (EMCDDA). O objetivo principal do COPOLAD é promover a cooperação técnica, bem como o diálogo político entre a América Latina, o Caribe e a UE, visando a implementação de políticas de drogas mais eficazes e que tenham como foco a melhoria da qualidade de vida das pessoas. O programa faz parte da Estratégia de Drogas da União Europeia (2021-2025).

Ainda em relação ao combate da criminalidade organizada, mas incorporando a cooperação para a melhoria das instituições públicas de segurança, sobressai o EL PAcCTO[vi], o programa de assistência técnica entre UE e América Latina contra o crime organizado transnacional. Diferentemente do COPOLAD, o EL PAcCTO aborda toda a cadeia criminal a partir de uma perspectiva integral, dividindo sua frente de trabalho em três componentes: polícia, justiça e penitenciária. Assim como o COPOLAD, o programa é financiado pela UE, mas tem sua liderança e atividades delegadas para organizações de fora do sistema da UE, quais sejam, a FIIAPP, a Expertise France[vii], o IILA e o Camões – Instituto da Cooperação da Língua[viii]. O EL PAcCTO iniciou as atividades em 2017, encerrando-as em 2022, contando com um orçamento de aproximadamente 30 milhões de euros (FIIAPP, [2023a]). Vale destacar que  está previsto o lançamento do EL PAcCTO 2.0 para o 2° semestre de 2023, conforme o Roteiro Birregional acordado na reunião ministerial UE-CELAC. O foco do programa será o fortalecimento de instituições públicas para o combate da criminalidade organizada, e terá como temas prioritários o tráfico de drogas, armas e pessoas, crimes ambientais e a proteção das comunidades indígenas, cibercrime, lavagem de dinheiro, dentre outras questões.

Por fim, no que tange à gestão migratória, destaca-se o EUROFRONT, outro programa de cooperação delegada entre a UE e a América Latina, cujas ações objetivam o reforço da eficácia na gestão de fronteiras e o apoio ao combate do tráfico de seres humanos para fins de exploração e o tráfico ilícito (ou contrabando) de migrantes. Assim como o COPOLAD e o EL PAcCTO, o EUROFRONT é financiado pela UE, especificamente pela Comissão Europeia, e é formado por um consórcio de entidades ligadas à cooperação internacional, quais sejam, a FIIAPP, a IILA e a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Além dessas instituições, colaboram com o programa agentes públicos de gestão de fronteiras da Espanha, Itália, Portugal, Polônia e Lituânia[ix], além da Frontex, a Agência Europeia de Guarda de Fronteiras e Costeira. O programa iniciou-se em 2020 e deve encerrar as atividades em 2024, contando com um orçamento de 15 milhões de euros (FIIAPP, [2023b]).

Atualmente, o EUROFRONT desenvolve suas atividades em quatro projetos-piloto em zonas fronteiriças que envolvem sete países da América Latina: (i) fronteira de Rumichaca (Colômbia e Equador), (ii) fronteira de Desaguadero (Peru e Bolívia), (iii) Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai) e (iv) fronteira Aguas Blancas-Bermejo (Argentina e Bolívia). O que essas quatro zonas fronteiriças têm em comum é que se tratam das principais passagens entre esses países, tanto de pessoas como de mercadorias. Os projetos-piloto visam quatro objetivos estratégicos: a harmonização dos quadros jurídicos e institucionais, a definição de procedimentos e práticas organizacionais, o desenvolvimento de capacidades de recursos humanos, e melhoria da infraestrutura e interconectividade.

Esses três programas, COPOLAD, EL PAcCTO e EUROFRONT, não esgotam, em absoluto, as iniciativas de cooperação no âmbito da segurança entre União Europeia e a América Latina e o Caribe. No entanto, é interessante observar as similaridades entre esses três programas, que podem indicar tendências para a cooperação nesse âmbito. Especificamente, destaca-se o caráter de “programa de cooperação delegada”, o que significa que a Comissão Europeia pode delegar para entidades de um Estado-membro da UE a gestão e execução técnica e financeira de suas iniciativas de cooperação. Essa modalidade visa a aumentar a eficácia da cooperação, reduzir custos de transação e obter maior impacto junto aos países terceiros envolvidos – nesse caso, os países latino-americanos e caribenhos. A implementação da cooperação delegada no âmbito da segurança faz parte de um processo mais amplo denominado de “agencificação” do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça (ELSJ) da UE, ou seja, a delegação de autoridade à agências técnicas descentralizadas para o condução dos objetivos vinculados ao ELSJ. Essa agencificação faz parte do projeto tecnocrático para a gestão da segurança interna e das fronteiras europeias e que, agora, é também externalizado para países terceiros por meio dos programas de cooperação delegada.

A revitalização das relações entre União Europeia e América Latina e o Caribe, de maneira geral, irá depender do cumprimento do Roteiro Birregional e da realização da próxima Cúpula Birregional em julho de 2023. Esses passos serão importantes para definir uma agenda de cooperação birregional entre as partes, e poderão determinar o grau de importância conferido por ambas as iniciativas de cooperação. No âmbito da segurança, especificamente, é importante ir além dos programas e dos projetos técnicos de cooperação. Ao conferir caráter puramente técnico a essas iniciativas corre-se o risco de despir a segurança interna de seu componente político. A instabilidade e a insegurança presentes em alguns países latino-americanos e caribenhos está profundamente associada às sociedades e aos regimes democráticos ali presentes, e qualquer iniciativa de cooperação que não se disponha a ir à fundo nesses temas, está fadada a ter resultados ínfimos.


[i] Dentre os 60 países, 33 são Estados-membros da CELAC e 27 são Estados-membros da UE. Os Estados-membros da CELAC são: Antígua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominica, El Salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. Os Estados-membros da UE são: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chéquia, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia, Portugal, Romênia e Suécia.

[ii] COPOLAD, acrônimo em inglês: Cooperation Programme on Drugs Policies between Latin America, the Caribbean and the European Union.

[iii] A FIIAPP (Fundación Internacional y para Iberoamérica de Administración y Políticas Públicas) é uma fundação do setor público espanhol, e trabalha ao serviço das administrações públicas, gerindo projetos de cooperação técnica nacionais e internacionais.

[iv] O IILA é uma organização internacional com sede em Roma, na Itália, e cujo principal objetivo é o desenvolvimento e coordenação de iniciativas de cooperação entre seus países membros.

[v] Die Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH.

[vi] Europe Latin America Programme of Assistance against Transnational Organized Crime.

[vii] A Expertise France é a agência francesa de cooperação técnica internacional, e implementa projetos que visam contribuir para o desenvolvimento de parcerias, de acordo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e as prioridades da política externa francesa.

[viii] O Camões é um instituto público português, dotado de autonomia administrativa e financeira. É orientado para a coordenação da política exterior portuguesa nos âmbitos da cooperação internacional e da promoção da língua e cultura portuguesas.

[ix] Especificamente, da Espanha: Polícia Nacional e Guarda Civil, da Itália: Política do Estado, Arma de Carabineiros e Guarda de Finanças, de Portugal: Forças e serviços de segurança, da Polônia: Guarda de Fronteiras, e da Lituânia: Serviço Estatal de Controle Fronteiriço.

Escrito por

Vitória Totti Salgado

Research Fellow e Assistente de Projetos na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV RI). Doutoranda e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) na área de concentração Instituições, Processos e Atores, com projeto de pesquisa de mestrado parcialmente financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Bacharela em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Câmpus Franca. Realizou intercâmbio acadêmico na Bishops University, Québec, em 2017, financiada pelo programa Emerging Leaders in the Americas Program que está sob a administração do Canadian Bureau for International Education. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), ao Observatório de Regionalismo (ODR), à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e à Rede de Pesquisa Internacional DIPP - Development, Internacional Policy and Peace. Desenvolve pesquisa sobre o regionalismo europeu e sul-americano, especificamente sobre a cooperação e integração regional no âmbito da defesa e segurança, gestão fronteiriça e políticas migratórias. Outros interesses de pesquisa são: regime internacional de meio ambiente e mudanças climáticas, psicologia política, e política nuclear.