Nas últimas décadas, foi possível constatar a paulatina ascensão de diversos grupos de influência no debate sobre política exterior, rompendo com o tradicional domínio do Executivo Federal. Dentre estes novos atores está o Poder Legislativo que, para além de seu papel na aprovação de tratados e acordos internacionais, vem promovendo intensos debates sobre a política externa levada a cabo pelo Poder Executivo dos Estados. Exemplo disso foi a recente queda do ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, por pressão do Congresso. Ademais, o Poder Legislativo vem sendo evocado como uma ferramenta ao impulso da cooperação regional, vide o alastramento de parlamentos regionais desde meados do século passado. Nesse sentido, este breve artigo se debruça sobre o contexto e as vias da ascensão do Poder Legislativo na política externa e, em seguida, disserta brevemente sobre os seis parlamentos regionais latino-americanos existentes na atualidade.

Segundo o Dicionário de Política, “parlamento” pode ser definido como

uma assembleia ou um sistema de assembleias baseadas num “princípio representativo”, que é diversamente especificado, mas determina os critérios da sua composição. Estas assembleias gozam de atribuições funcionais variadas, mas todas elas se caracterizam por um denominador comum: a participação direta ou indireta, muito ou pouco relevante, na elaboração e execução das opções políticas, a fim de que elas correspondam à “vontade popular” (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1983, p. 880)

Fica evidente, portanto, a relevância do Poder Legislativo ao impulsionar diferentes vozes e interesses dentro da política nacional. No entanto, ao se aproveitar deste mesmo ambiente plural em debates mais amplos, como da política externa, sua relevância se expande. E é esse fenômeno que vem sendo observado nas últimas décadas, tendo o Poder Legislativo tomado novas formas e espaços.

De acordo com Beetham (2006) e Malamud e Stravrids (2011), três seriam os elementos contemporâneos que impulsionaram a participação do Poder Legislativo nas relações internacionais: i) a expansão dos sistemas democráticos, ii) a globalização e iii) o espraiamento de organismos multilaterais e de blocos regionais. Concentrando a análise na América Latina, esses elementos ficam evidentes. Primeiramente, a transição de regimes ditatoriais a regimes democráticos a partir da década de 1980 permitiu a multiplicação de atores, estatais ou não, na formulação da agenda política nacional e internacional dos Estados. Em seguida, o ritmo acelerado da globalização na região, em especial com a liberalização dos mercados na década de 1990, aumentou vertiginosamente a relação de interdependência com o mercado global. E, por fim, como resposta aos desafios e oportunidades da globalização, foram criadas, ao longo das últimas décadas, diversas iniciativas de cooperação e de integração entre os países.

De acordo com Malamud e Stavridis (2011), haveria três principais formas de interação entre os parlamentares e as relações internacionais. A primeira seria pela clássica pressão dentro dos próprios parlamentos nacionais. Como bem resumido por Scott (1997 apud SCOTT; CARTER, 2012, p. 39), os parlamentos nacionais poderiam atingir as relações internacionais a partir de quatro tipos de influência: a direta-legislativa (legislação, verba e tratados), a indireta-legislativa (legislação não vinculativa, legislação processual e nomeações), a direta-não legislativa (cartas e ligações, consultas e aconselhamento, audiências, atividades de supervisão e pleito) e a indireta-não legislativa (definição de agenda, enquadramento do debate e contatos estrangeiros).

A segunda forma de interação se daria pela promoção da diplomacia parlamentar via condução de relações diplomáticas paralelas ao Poder Executivo. De acordo com Beetham (2006, p. 173), diferentemente dos diplomatas, que representam o posicionamento dos Estados, os parlamentares deteriam maior flexibilidade na defesa de suas crenças políticas, sem necessariamente estarem vinculados ao posicionamento estatal. Parte dessa flexibilidade fica explícita nas diversas formas pelas quais a diplomacia parlamentar pode ser realizada, seja por meio de uma atuação direta ou indireta, formal ou informal, em grupo (i.e. partidos políticos) ou individual, de forma secreta ou pública, com ou sem o consentimento do Poder Executivo. Além disso, a diplomacia parlamentar não se limitaria a interações interparlamentares, podendo haver, inclusive, interação entre parlamentares e outras autoridades ou poderes.

Já a terceira forma de interação parlamentar com as relações exteriores se fundaria no empoderamento dos parlamentos como membros de organizações internacionais ou regionais, objeto deste breve artigo. Como afirma Bajtay ( 2015, p. 4), seu papel não seria duplicar, tomar o lugar ou disputar o poder com os governos, mas sim os complementar, enriquecer e estimular. A União Interparlamentar foi a primeira instituição parlamentar internacional, criada em 1889, com o objetivo de estimular a resolução pacífica de conflito entre os Estados. No entanto, foi só a partir de meados do século XX que tais instituições passaram a ganhar mais peso, particularmente pela disseminação de blocos regionais no pós-Guerra Fria (COFELICE, 2012; ŠABIČ, 2008; STAVRIDIS, 2013).

Como reflexo da elevação do Poder Legislativo no debate sobre política externa, há hoje na América Latina seis parlamentos regionais ativos, os quais são descritos brevemente abaixo, com especial atenção a seus objetivos, capacidades e limitações.

Na América Latina, a mais antiga organização interparlamentar é o Parlamento Latino-Americano (Parlatino), concebido em 1964, mas institucionalizado só em 1987. Sua criação teve como inspiração o Parlamento Europeu, mas, na prática, se estabeleceu como uma instituição simbólica da promoção da integração latino-americana, sem quaisquer capacidades decisórias (MALAMUD; SOUZA, 2005, p. 390). Segundo Mariano, Bressan e Luciano (2017), parte da falta de concretude da instituição se daria por seu caráter autônomo, ou seja, não vinculado a qualquer bloco, somado à ausência de frações partidárias e à desconexão aos debates a nível nacional.

A segunda organização interparlamentar latino-americana mais longeva é o Parlamento Andino (Parlandino), que apesar de ter sido criado em 1979, só entrou em vigência em 1984. Seu objetivo fundador é apoiar a promoção da integração entre os países membros da Comunidade Andina de Nações (CAN). Em 1996, o Parlandino passou por uma reforma que ampliou suas capacidades, outorgando-lhe atribuições supranacionais, mais especificamente ao tornar-se o então responsável pelo controle político do Sistema Andino de Integração (SAI). No entanto, nas últimas décadas, como analisado por Matheus Felipe Silva e Antonio Ramon em artigo publicado no ODR em 2017, “o Parlandino não é uma prioridade da CAN, ainda mais considerando que suas funções ficaram cada vez mais afastadas das esferas decisórias, que crescentemente recaíram nas mãos dos Executivos nacionais”.

Em 1989, foi criado entre Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela o Parlamento Amazônico, com o objetivo de estabelecer políticas integradas sobre as questões amazônicas (Agência Câmara Notícias). No entanto, de acordo com Santacreu Soler (2005), a inconsistência na presença das delegações nas Assembleias, chegando a prejudicar o quórum, e a própria inadimplência dos parlamentos nacionais frente ao pagamento de quotas ao Parlamento Amazônico tornaram cada vez mais insustentável suas atividades. O resultado foi sua suspensão entre 2012 e dezembro de 2020, quando foi relançado, como resposta às cada vez maiores ameaças à mata amazônica (ver mais na análise de Araújo para o ODR em março deste ano).

Vinculado ao Sistema de Integração Centro-Americano (SICA), foi criado, em 1991, o Parlamento Centro-Americano (Parlacen) com grandes diferenciais como a capacidade de propor legislação e iniciativas em matéria de integração regional e a eleição direta. Ainda assim, como destaca Telarolli em análise realizada para o ODR, “apesar de o Parlacen ser um dos poucos parlamentos a designar seus membros por eleições diretas, isso não lhes atribui quaisquer poderes legislativos”, por suas capacidades se limitarem ao campo propositivo e fiscalizatório.

O Fórum dos Presidentes dos Poderes Legislativos da América Central e Cuenca do Caribe (FOPREL), lançado em 1994 é outro parlamento regional autônomo, ou seja, sem vínculo a um bloco regional. Composto por Belize, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, República Dominicana e México, o FOPREL tem como objetivo adotar iniciativas conjuntas em prol da democracia e da evolução política, econômica e social de seus membros. No entanto, sua desvinculação a uma iniciativa de integração e a ausência de capacidades deliberativas faz com que sua efetividade dependa da transferência de seus debates e acordos ao âmbito das legislaturas nacionais pelos parlamentares.

Por fim, o Parlamento do Mercado Comum do Sul (Parlasul) é o mais novo parlamento regional latino-americano, criado em 2006, sob o âmbito do Mercosul, com a função de legislar sobre as demandas da integração do bloco. O impulso para sua criação foi dado pelo contexto de grande sinergia entre os presidentes mercosulinos progressistas no início da década de 2000, que ficou conhecido como a onda rosa[i]. No entanto, como identificado por Dri e Paiva (2016), o Parlasul estaria sendo limitado pela desconsideração sistemática das iniciativas parlamentares apresentadas ao Conselho Mercado do Sul, marcando a supremacia do Executivo sobre o Legislativo.

Como visto, as seis organizações interparlamentares em atuação na América Latina compartem como ideal a intensificação da cooperação e a promoção da integração regional. No entanto, todas elas enfrentam um conjunto de limitações que poderiam ser resumidas na ausência de capacidades decisórias, na desvinculação das atividades sob o âmbito parlamentar regional e nacional e na supremacia do Poder Executivo.

Mas então, tais limitações invalidariam suas atividades ou até mesmo da participação do Poder Legislativo como um todo nos debates sobre política externa? Absolutamente não; por três motivos centrais. Primeiro, o aumento da influência de outros atores, como o Poder Legislativo, deve ser compreendido como gradual, visto que o Poder Executivo tem o domínio sobre a política exterior desde a história moderna. Segundo, como afirma Lindsay (1993), a influência do Poder Legislativo na política exterior não se limitaria a aspectos diretos, mas também a vias indiretas, que ultrapassam a capacidade decisória dos parlamentos, como por meio do intercâmbio de experiências entre os parlamentares de diferentes países e o próprio estímulo ao debate. E terceiro, considerando o Poder Legislativo como uma instância mais ampla de representatividade da população, sua participação nas iniciativas de integração regional tem o potencial de impulsionar o senso de legitimidade de tais iniciativas perante a sociedade.

Enfim, o envolvimento do Poder Legislativo na política externa e, particularmente, na integração regional apresenta seus desafios, mas parece ser um caminho positivamente sem volta.

Referência bibliográficas

BAJTAY, Péter. Democratic and efficient foreign policy? : Parliamentary diplomacy and oversight in the 21st century and the post-Lisbon role of the European Parliament in shaping and controlling EU foreign policy. EUI Working Paper RSCAS, [s. l.], n. 11, 2015. Disponível em: http://cadmus.eui.eu/bitstream/handle/1814/34618/RSCAS2015_11.pdf?sequence=1

BEETHAM, David. Parliament and Democracy in the Twenty-First Century: a guide to good practice. [S. l.]: União Interparlamentar, 2006. E-book.

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DRI, Clarissa Franzoi; PAIVA, Maria Eduarda. Parlasul, um novo ator no processo decisório do Mercosul?. Rev. Sociol. Polit.,  Curitiba ,  v. 24, n. 57, p. 31-48,  Mar.  2016 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782016000100031&lng=en&nrm=iso>. access on  26  Apr.  2021.

LINDSAY, James M. Congress and Foreign Policy: Why the Hill Matters. Political Science Quarterly, [s. l.], v. 107, n. 4, p. 607–628, 1993. Disponível em: https://doi.org/10.2307/2152287

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MARIANO, Karina Pasquariello; BRESSAN, Regiane Nitsch; LUCIANO, Bruno Theodoro. A comparative reassessment of regional parliaments in Latin America: Parlasur, Parlandino and Parlatino. Rev. bras. polít. int.,  Brasília ,  v. 60, n. 1,  e007,    2017 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292017000100207&lng=en&nrm=iso>. access on  26  Apr.  2021.

ŠABIČ, Zlatko. Building democratic and responsible global governance: The role of international parliamentary institutions. Parliamentary Affairs, [s. l.], v. 61, n. 2, p. 255–271, 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1093/pa/gsm062

SANTACREU SOLER, José Miguel. Historia del Parlamento Amazônico (1989-2002). Revista de Historia Actual, v. 3, n. 3, p. 27-40, 2005. Disponível em: < https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwiO3-ncpJzwAhVhIbkGHQUIAacQFjABegQIAxAD&url=https%3A%2F%2Fhistoria-actual.org%2FPublicaciones%2Findex.php%2Frha%2Farticle%2Fview%2F356%2F750&usg=AOvVaw01NuFZ_h_lEVppKEiluRBe >. Acesso em: 26 abr. 2021.

SCOTT, James M.; CARTER, Ralph G. Striking a balance: Congress and U.S. Foreign policy. In: HOOK, James M.; SCOTT, Steven W. (org.). American renewal? Washington: CQ Press, 2012. p. 36–53.

STAVRIDIS, Stelios. Responsibility to Protect: what role for parliamentary diplomacy? ReShape Online Papers Series, [s. l.], n. 2, p. 1–23, 2013. Disponível em: https://araid.es/en/content/responsibility-protect-what-role-parliamentary-diplomacy

[i] Para ver mais sobre a ascensão e o declínio da onda rosa, veja este artigo publicado no ODR.

Escrito por

Beatriz Naddi

Doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam-USP). Membro do Observatório de Regionalismo vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa (2014). Realizou intercâmbio acadêmico na Universidad de Guadalajara (México) por meio do Programa de Bolsas Ibero-Americanas Santander Universidades (2012/2). Realiza pesquisas na área de Relações Internacionais, com ênfase em Integração Latino-Americana e História do México.