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Hoje em dia, escrever sobre política (em seu sentido amplo) em qualquer nível é um convite à reflexão sobre temas controversos e/ou instigantes. Na semana passada, o texto de André A. Leite para o ODR, por exemplo, questionou a distância imposta, de cima para baixo, entre a formulação/condução de políticas e a representatividade cidadã nos processos de integração regional, em especial no Mercosul. Antes dele, Ana María Suárez Romero comentara a crise da Unasul, marcada pela suspensão temporária de participação no bloco de Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru. Um olhar para o nível nacional e nota-se que no Brasil o avanço de políticas neoliberais nos convidam, cada vez mais, a uma subjetivação calcada no deslocamento da racionalidade que perpassa a vida cotidiana individual e institucional. Parece que fomos abandonados e, também, abandonamos as instituições. Em uma analogia imperfeita, a antecipada eleição presidencial na Venezuela pode ser vista sob esse último prisma. Ao invés de constrangimentos à capacidade de agência individual e institucional oriundos de uma racionalidade neoliberal, a crise que se arrasta no país tolhe possibilidades ação.
No último domingo, contando com aproximadamente 8,5 milhões de eleitores, de um total de 20,5 milhões de inscritos, segundo o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), o atual presidente venezuelano, Nicolás Maduro, fora eleito para mais um mandato (6 anos). Os números indicam que 46% dos eleitores registrados votaram, contra quase 80% de participação em 2013. O resultado já era esperado pela oposição que, inclusive, fomentou o boicote ao pleito, não reconhecendo a qualidade democrática do processo.
Maduro está no poder desde 2013, quando, após a morte de Hugo Chávez, venceu as eleições depois de uma apertada disputa, teve 50,6% dos votos, contra 49% a favor de Henrique Capriles. Desde então, uma gama variada (nem por isso sem relação entre suas partes) de acontecimentos se inseriu no cotidiano do país, dificultando tanto sua governabilidade quanto a capacidade de se manter uma estrutura de oposição razoável, com capacidade de se organizar e competir, de fato, à introdução de um projeto diferente daquele do chavismo. Concomitantemente, os avanços sociais conquistados durante a gestão Chávez veem sendo ameaçados, pois, desde que assumiu a presidência, o atual presidente tem enfrentado problemas com relação ao preço do petróleo, a maior fonte de receitas do país. Nos primeiros anos da gestão Maduro o preço dessa commodity caiu e, mais recentemente, com sua revalorização no mercado internacional, a produção venezuelana já não possui a pujança de antes.
Com a economia abalada, a disputa entre as forças políticas internas se acirrou. Em 2015, a oposição conquistava a maioria no parlamento, mas, no mesmo ano, o Tribunal Supremo de Justiça decretou que três deputados da oposição e um da situação não poderiam assumir seus mandatos. Com a medida, a maioria qualificada (de 2/3) recém conquistada pelos opositores perdia seu efeito perante os olhos da Justiça. Apesar disso, a oposição garantiu a posse daqueles impugnados pelo TSJ, estendendo o conflito interinstitucional. O ápice desse desafeto ocorre em março de 2017, quando o Supremo destitui a Assembleia Nacional e atribuiu a Maduro um poder especial de ordem penal, militar, econômica, social política e civil. Pressionado interna e internacionalmente (vale lembrar, a assunção de Macri, na Argentina, e de Temer, no Brasil, iriam somar-se à pressão internacional contra o chavismo e, em âmbito sub-regional, em 2016, articulou-se para o não reconhecimento da presidência pró-tempore venezuelana no Mercosul e, inclusive, para a suspensão do país de Maduro do bloco.) a administração recuou no passo dado pelo TSJ. Os conflitos, entretanto, não parariam aí.
Pouco tempo depois, o então governador de Miranda, Capriles, seria inabilitado de ocupar cargos públicos por 15 anos (em função de questões relacionadas ao orçamento do Estado, e, também, por ser suspeito de estar envolvido no esquema de corrupção da construtora brasileira Odebrecht). Leopoldo Lopez, outro opositor com projeção razoável, continuaria preso e inelegível. Em seguida, com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) pelo governo, em maio de 2017, a situação política radicalizou-se, tanto nas ruas, entre protestos e confrontos, quanto por pressões externas (é neste momento que o país sofre maior pressão da Organização dos Estados Americanos (OEA) e anuncia sua retirada da instituição e a administração Trump recrudesce suas sanções direcionadas, sobretudo, à capacidade de financiamento do chavismo e aos membros de sua cúpula política, estas acentuadas em 2018 por medidas similares da União Europeia ). Durante um plebiscito (informal) orquestrado pela oposição, no intuito de quantificar a adesão à proposta da Constituinte e pressionar o governo, mais de 7 milhões de pessoas se manifestaram e, dentre elas, apenas 2% eram a favor da iniciativa governista, dados dos organizadores. Com o avanço do projeto, a oposição optou por não o integrar, estando presente em protestos nas ruas. No dia da votação oficial da ANC, segundo o CNE, pouco mais de 8 milhões de eleitores compareceram às urnas. Uma vez estabelecida, a ANC outorgou-se poderes legislativos, fortalecendo, assim, a dinâmica governista e, claro, acirrando as querelas com o legislativo eleito em 2015.
Grosso modo, o esboço acima não esgota os cenários conflitivos naquele país, todavia nos serve de guia para uma melhor compreensão das eleições antecipadas de 20 de maio de 2018. Em teoria, a troca de presidentes deveria vir a ocorrer somente em 2019, pois a vigência do mandato presidencial na Venezuela é de 6 anos. A instabilidade política e a força conquistada pela coalizão da oposição a partir de 2015, expressa principalmente pela Mesa da Unidade Democrática (MUD), pressionava o governo e instigava a população para que o sufrágio fosse antecipado como uma forma de solução à crise política, o que não ocorrera de imediato. Somente com o enfraquecimento dos movimentos contrários ao regime vigente é que a ANC anunciou que anteciparia as eleições, a princípio com data limite de 30 de abril de 2018. Vale ressaltar, a MUD não poderia lançar um candidato oriundo de sua coalizão, a oposição deveria desmembrar-se e através da unidade partidária desbravar sua participação nas eleições. Com isso, parcela dos opositores já antecipava o resultado do dia 20 de maio e, como corolário, além de boicotarem, não reconheceram a legitimidade democrática do pleito e convocaram o povo venezuelano a “unas verdaderas elecciones libres y constitucionales” (a princípio, as atividades estão marcadas para o próximo dia 26).
Não obstante, o candidato opositor a Maduro com maior expressividade nas pesquisas, Henri Falcón, ex-chavista, fundador da Avançada Progressista, teve que usar de sua flexibilidade perante suas alianças a fim de apresentar uma alternativa ao regime corrente. Em 2010, Falcón divorciara-se de Chávez, e ,agora, foi além do boicote proposto pela coalizão de oposição. Dentre suas propostas, destacaram-se a dolarização da economia, a abertura do país ao assistencialismo internacional (seu plano prevê uma ajuda entre 15 e 20 bilhões de dólares anuais para o país), a atração de investimento direto, o financiamento via organismos multilaterais e a revisão da cobrança de impostos das petroleiras, enquanto que o presidente atual tende a uma maior estatização da economia. Assim, a gestão Maduro o rotula Falcón como traidor, neoliberal e entreguista. Contudo, o candidato de oposição angariou 21,1% dos votos, contra 67,7% de Maduro (lembrando que 46% dos eleitores votaram) em um processo que veio a classificar como fraudulento. Após o encerramento da votação, o ex-chavista declarava à TV que todo o processo eleitoral é duvidoso e carece de legitimidade.
Na mesma linha, Javier Bertucci, o terceiro colocado na disputa, reclamou, de imediato, da “compra descarada” de votos via controle estabelecido pelos “puntos rojos” (local onde o eleitor poderia apresentar seu cartão de beneficiário de assistencialismo social e usufruir, no dia da eleição, benefícios extras prometidos pelo governo; previamente já havia ficado decidido que tais “puntos rojos” deveriam ficar a, pelo menos, 200 metros de distância dos locais de votação). Além disso, na mesma declaração, o candidato fez referência a mais de 1400 denúncias recebidas pelo CNE sobre irregularidades na escrutinação, especificamente com os “puntos rojos”.
De modo complementar às pressões internas, condenaram o processo eleitoral do último domingo tanto o Grupo de Lima (criado em 2017 para discutir a crise venezuelana), composto por Argentina, Brasil, Canadá (este país, inclusive, não permitiu a votação em seu território), Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Panamá*, Paraguai, Peru e Santa Lúcia (que através da sua IV Declaração, de janeiro de 2018, já era contrário à antecipação da eleição no molde da ANC e a própria atuação da Constituinte, e favorável ao legislativo eleito em 2015 e a restituição de seus poderes), quanto a OEA (nas palavras de Almagro, Secretário Geral da Organização, “o ditador Maduro tentou, sem êxito, dar uma roupagem democrática ao seu regime totalitário”), os Estados Unidos (inclusive impondo novas sanções à Venezuela), o Reino Unido e a Espanha.
A favor do resultado e, portanto, de Maduro, a Aliança Bolivariana para os povos de nossa América (Alba) (e segundo informações em sua página web), Cuba, Rússia, China, El Salvador, República Dominicana, Bolívia e Panamá* (não encontramos nota ou declaração deste governo a respeito da eleição, somente o documento do Grupo de Lima; mais adiante na página da Alba há referência ao apoio da Coordinadora Panameña de Solidaridad con Venezuela). Além desses, o porta-voz de Relações Exteriores do Irã também acolheu o resultado a favor da administração vigente.
Portanto, com todas suas idas e vindas, prós e contras, e uma diversidade de proselitismos, uma nova disputa sobre significados se apresenta na região. Com tudo isso, o que é democracia? Será o Brasil hodierno mais democrático que a Venezuela de Maduro? Ou o Paraguai em 2012 é que deve ser o exemplo de um sistema político distante de uma democracia consolidada? As instituições daqui funcionam tão bem quantos as de lá (do país de Maduro)? O nosso judiciário se limita à seara da justiça? E o da Venezuela? Em âmbito internacional, em especial regional, a insulação do país tem dado resultados razoáveis? Nosso intuito não é apresentar respostas a essas perguntas, muito menos estabelecer, através delas, uma aproximação comparativa fundamentada, afinal, nos processos que conformam esses Estados nacionais deve figurar um número maior de divergências do que convergências . Porém, se é difícil encontrar uma base comum à comparação, essas perguntas servem, ao menos, aos exercícios de empatia e reflexão.
E esses exercícios se pronunciam (ou deveriam se pronunciar) como incontornáveis, afinal, o povo venezuelano se depara com uma miríade de problemas, desde a desvalorização de seu salário (mesmo com os ajustes recentes no salário mínimo, conforme publicação do instituto dataanalisis, seu valor integral, em abril deste ano, não era o suficiente para cobrir mais que 1,73% do valor total da Cesta Básica Familiar) consumido por uma elevada inflação (com previsão de superar os 13.864% em 2018) e a violência nas ruas em decorrência do confronto de forças opositoras e de situação (ainda que durante o processo eleitoral do dia 20 de maio, não tenham ocorrido conflitos), até o desamparo por parte das instituições públicas que se encontram em disputa. Destarte, a migração para e o refúgio em outros países, sobretudo nos vizinhos adjacentes, como Brasil e Colômbia (veja o relatório da Organização Internacional para Migrações) figuram como soluções frente à percepção de deslocamento do agenciamento individual.
Em suma, cabe à “nova” gestão de Maduro fomentar a construção de pontes para superar seu isolamento interno (polarização) e internacional, principalmente regional, usufruir o potencial econômico de seu país enquanto grande exportador de petróleo, revertendo o PIB venezuelano a saldos positivos (atualmente, o FMI prevê um PIB de -15% para o país em 2018) e, por último, mas não menos importante, devolver à população condições plenas para o agenciamento. Driblar os obstáculos já postos, não desde ontem, é o desafio do “revolucionário” governo de Maduro.
Finalmente, começamos o texto retomando os trabalhos dos colegas André Araújo e Ana María Suarez, onde ambos comentaram disputas políticas transversais às instituições regionais. Se por um lado a tensão posta pela configuração político-ideológica do chamado “giro à direita” na América do Sul dificulta o entendimento dialógico com a Venezuela. Por outro, a possibilidade de uma reconfiguração, sobretudo a partir das eleições brasileiras, resguarda um potencial significativo à construção de novos entendimentos. Já no âmbito social, a sugestão de olharmos para o fortalecimento do Estado avesso ao Bem-Estar e, portanto, o fortalecimento da individualização no Brasil, é um convite à ponderação acerca do recorte direita/esquerda nas dinâmicas políticas. Afinal, a Venezuela de Maduro, se muito criativa e a depender de variáveis intervenientes, poderia lançar mão de recursos (inovadores, quiçá/oxalá) que serviriam de insumos à reflexão nos núcleos de esquerda da região. E nesse sentido, opções de agência além das que estão postas nos dois países poderiam esboçar-se. Portanto, o resultado do pleito do domingo, mais adiante do que fomentar a discussão para a atribuição de valor à qualidade da democracia venezuelana, abre espaço para que o próprio chavismo reveja sua trajetória e renove seu projeto político.