Imagem por Carta Campinas.

Como espaço de discussão sobre o regionalismo em suas diferentes perspectivas e campos de análise, o Observatório de Regionalismo (ODR) contribuiu recentemente para a reflexão do momento atual do regionalismo latino-americano, assim como para a compreensão do surgimento de novos mecanismos regionais. Ademais, buscou-se contribuir para a análise dos atuais entraves nas diferentes regiões do mundo e o enfrentamento desses espaços multilaterais diante da nova pandemia do Coronavírus. Ainda assim, o momento atual parece tensionar cada vez mais as expectativas dos atores e Estados em relação às instituições regionais no mundo, em um cenário já marcado pelo descrédito no multilateralismo, pela crescente do nacionalismo e até mesmo pelo fortalecimento do anti-regionalismo.

Além de ser necessário compreender o que se perde com a desconstrução dos espaços regionais, é importante avaliarmos os possíveis fatores que resultam na crise do regionalismo, para assim, podermos também pensar nos possíveis ajustes e decisões futuras em busca de fortalecer a cooperação regional. 

Dessa forma, este artigo visa discutir os fatores que já são apontados por diferentes estudos como aqueles responsáveis, ou de grande participação, na desconstrução dos mecanismos de cooperação e integração regional na América Latina. De maneira geral é possível elencar sete (7) fatores que, apesar de analisados individualmente pela academia, estão interconectados com o problema aqui analisado, sendo eles:

  1. A Ausência de liderança regional;
  2. A Instabilidade dos governos;
  3. A fragmentação do regionalismo;
  4. O papel da autonomia nacional;
  5. A confluência de pressões internas e externas;
  6. A existência de um processo cíclico na região; e
  7. O Baixo intercâmbio intrarregional e a abertura à reprimarização da economia.

Em primeiro lugar, a ausência de liderança dos processos de cooperação e integração regional na América Latina compõem um dos elementos da crise do regionalismo ao se considerar o importante papel que as lideranças nacionais tiveram na construção e impulsionamento das instituições criadas nos anos 2000, como a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Nesse sentido, e levando em consideração a configuração desses espaços a partir de dinâmicas intergovernamentalistas e interpresidencialistas, Mijares e Nolte (2018) apontam que o incentivo nacional e a liderança desses processos pelos países economicamente mais capacitados no subcontinente, “contribuíram ao avanço do projeto de integração em tempos de uma maior sintonia ideológica entre os governos” (MIJARES; NOLTE, 2018, p. 106, tradução nossa). Por outro lado, em uma época de polarização ideológica e política, e diante de um espaço sem autonomia institucional, a ausência dessa liderança e da vontade política em manter e estimular os esforços existentes corroboram ao desestímulo e desmantelamento da dinâmica.

A ausência de liderança se amplia também na incapacidade ou afastamento em assumir os custos dos processos de integração regional na América do Sul. Vários são os estudos que apontam o papel de paymaster[1] assumido pelo governo brasileiro nos processos regionais dos anos 2000. Ainda assim, ao longo da última década a instabilidade nacional brasileira, e, como discutido por Spektor (2011), Malamud (2011) e Burges (2015), a ausência da vontade nacional de assumir tal papel e custear o processo regional, também se apresenta como um dos fatores de fragmentação e desestímulo ao espaço criado. Ainda assim, apesar das críticas o governo brasileiro se colocou na região como um paymaster parcial da integração regional (RAMANZINI JR.; MARIANO, 2016). Entretanto, com a crise e instabilidade política brasileira, reflexo das investigações de corrupção e dos levantes contra o governo de Dilma Rousseff, há o afastamento do papel assumido pelo país na região que, por sua vez, também reflete em uma crise do estímulo às instituições regionais.

Sendo assim, é possível apontar que a problemática da crise do regionalismo se aprofunda também a partir da instabilidade dos governos. De acordo com Llenderrozas (2016, p. 210), “a deterioração das condições políticas de alguns regimes democráticos colocou em xeque os esquemas regionais, particularmente a UNASUL, identificada como tendo um papel político estabilizador e mediador diante de crises institucionais”. Trata-se aqui não apenas da problemática da liderança e estímulo do processo, mas também das crises e instabilidades nacionais, que geram mudanças governamentais e alteram a maneira em que os Estados veem e gestionam as relações de cooperação em seu entorno regional.

Inserido nesse debate da instabilidade, tem-se como exemplo a Venezuela e o Brasil como lideranças regionais em crise em função da instabilidade de seus governos. No caso venezuelano, Mijares e Ramírez (2020) apontam que um dos fatores intervenientes que compõem a crise do regionalismo, e de modo específico das instituições regionais como a UNASUL, a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), é a crise socioeconômica e a autocratização da Venezuela. Nesse sentido, “a situação de crise venezuelana se configurou como uma condição crítica que favoreceu uma conjuntura crucial no fracasso da UNASUL” (MIJARES; RAMÍREZ, 2020, p. 5), uma vez que o espaço regional existente se mostrou inepto em gerir a crise e a deterioração da governabilidade democrática do país a partir de sua estrutura.

Por outro lado tem-se também a crise do principal instigador dos processos regionais nas últimas décadas, o Brasil. Vadell e Giaccaglia (2020) apontam que a modificação das diretrizes de política externa brasileira no final do segundo governo Dilma, no governo Temer, e de maneira mais drástica no atual governo de Jair Bolsonaro, refletem no descrédito das iniciativas regionais e do próprio espaço sul-americano instigado a partir de meados dos anos 2000. Nesse sentido, compreender a crise do regionalismo na América Latina implica compreender também o posicionamento brasileiro diante de seus vizinhos, que cada vez mais tem se desacoplado da região. De modo mais pontual, Vadell e Giaccaglia (2020, p. 1) apontam que a crise do regionalismo latino-americano, assim como as inúmeras problemáticas enfrentadas pelos países da América Latina, se configuram “em um emaranhado complexo e desordenado, no qual o futuro político institucional do Brasil terá repercussões relevantes para o futuro da região”.

A instabilidade dos países latino-americanos se conforma tanto no âmbito político quanto econômico, corroborando ao baixo intercâmbio intrarregional e a abertura à reprimarização da economia. De acordo com Llenderrozas (2016) e Pozo (2020), a alta dependência dos mercados extrarregionais para a exportação, devido ao baixo intercâmbio intrarregional, acabam por influenciar a dinâmica regional em momentos de queda dos preços dessas exportações.

Como demonstram os exemplos históricos, as crises econômicas sacudem os mecanismos de integração. As prioridades mudam e os recursos financeiros se orientam às necessidades internas. Os projetos que requerem inversão de magnitude serão postergados e toda a estrutura institucional será afetada. (LLENDERROZAS, 2016, p. 211).

Tais críticas e observações refletem, por sua vez, na manutenção de um processo cíclico na região. De acordo com Pozo (2020), a reduzida interdependência econômica e baixo comprometimento na manutenção e priorização dos esforços para o desenvolvimento conjunto na região resulta em uma dinâmica cíclica de alternância de comportamento  dos países latino-americanos em relação ao regionalismo, entre fases de bonanças e fases de críticas e descontentamentos. Tal padrão de comportamento, existente desde os anos 60,

tende a durar em torno de 10 anos (ou 2 gestões governamentais). Após esse período vem a crise e o processo [regional] é acusado de retórica, ineficácia e enviesamento ideológico. Outra iniciativa [então,] de natureza diferente ou contrária absorve a atenção e o protagonismo político. Após essa fase, o processo entra em uma certa inercia e esquecimento, mas dificilmente acaba, engrossando a procissão de mortos-vivos da integração latino-americana que gera uma reputação tão ruim. (POZO, 2020, p. 360, tradução nossa).

Desde os primeiros esforços regionais na América Latina a tomada de decisões se deu a partir da priorização da autonomia nacional e em detrimento da possível criação de uma autonomia regional (MIJARES; RAMÍREZ, 2020; MIJARES; NOLTE, 2018). Dessa forma, a priorização da autonomia nacional refletiu no modo de condução das relações multilaterais no continente, marcando a construção de mecanismos regionais com estruturas institucionais maleáveis e flexíveis às vontades dos Estados. Por sua vez, tal dinâmica reflete em instituições mais vulneráveis à períodos de crise e mudanças nos direcionamento dessas vontades governamentais.

Como consequência da sobreposição dos interesses nacionais e das inúmeras iniciativas regionais que cada país busca projetar na região, tem-se também a fragmentação do regionalismo, (MIJARES; RAMÍREZ, 2020). A existência de projetos geopolíticos sobrepostos em um mesmo espaço regional reflete essa disputa de interesse no regionalismo latino-americano. Como discutido por Barros e Gonçalves (2019) no período atual esse problema se amplia uma vez que apresentam-se novas iniciativas com lideranças dispersas que não contribuem à união do espaço regional, mas sim somam-se ao cenário fragmentado.

Grande parte dos fatores aqui elencados refletem o último problema a ser discutido, a confluência de pressões internas e externas na dinâmica do regionalismo latino-americano. De acordo com Vadel e Giaccaglia (2020), a crise do regionalismo latino-americano se conforma também a partir do processo de redefinição da própria dinâmica regional, como resultado de mudanças na conjuntura global e nacional. De maneira mais específica, os autores apontam que

desde o ponto de vista sistêmico, as principais variáveis a serem consideradas incluem o auge internacional de políticas protecionistas e soberanistas, associadas com o Brexit e a chegada de Donald Trump ao governo dos Estados Unidos, assim como a irrefreável presença da China na região – que pode implicar tanto um efeito capitalizador para as economias sul-americanas orientadas a exportação, assim como um efeito devastador, se somente gera uma agudização do processo de reprimarização que começou a afetar a região na última década. [Por outro lado,] em relação aos fatores endógenos, o regionalismo atual manifesta uma fragmentação política significativa. Essa fragmentação foi produto, em primeiro lugar, de diversas mudanças de governo na região, acompanhados por um estado de abulia generalizado […]. (VADELL; GIACCAGLIA, 2020, p. 1072-1073, tradução nossa).

Por fim, o objetivo deste breve artigo não é propor um entendimento único sobre os elementos que compõem a crise do regionalismo latino-americano, mas sim concatenar e discutir perspectivas  para a reflexão dos problemas existentes, assim como suas interconexões. Afinal, apesar de a América Latina ser vista hoje em dia como uma região à deriva na arena global é necessário que a academia e os atores nacionais e regionais se atentem à sistemática destruição e desmantelamento da estrutura de governança regional da última década. Diante de um contexto que demanda cada vez mais cooperação para resolver problemas em comum no continente é necessário superar a crescente ausência e invisibilidade do espaço latino-americano, uma vez que essa fragmentação amplia a “vulnerabilidade dos países da região em relação à forças externas de todos os tipos” (NEVES; HONÓRIO, 2019, tradução nossa).

 

Notas

[1].  Termo designado por Walter Mattli (1999, p. 56, tradução nossa), paymaster se refere ao “[…] Estado-membro dominante em um agrupamento regional […] [o qual] ameniza as tensões distributivas e, portanto, garante a estabilidade do processo de integração. […]. A integração requer a presença de uma liderança incontestável entre o grupo de países que buscam vínculos mais próximos na região”.

 

Referências Bibliográficas

BARROS, P. S.; GONÇALVES, J. de S. B. Fragmentação da Governança Regional: o Grupo de Lima e a política externa brasileira (2017-2019). Mundo e Desenvolvimento, v. 2, p. 6-39, 2019.

BURGES, S. Revisiting consensual hegemony: Brazilian regional leadership in question International Politics. International Politics, London, v. 52, n. 2, p. 193–207, 2015.

LLENDERROZAS, E. UNASUR: Desafíos geopolíticos, económicos y de política exterior. Pensamiento Propio, v. 42, p. 195-214, 2016.

MALAMUD, A. Conceptos, teorías y debates sobre la integración regional. Revista Norteamérica, Ciudad de Mexico, v. 6, n. 2, jul./dic. p. 219-249, 2011. 

MIJARES, V. M.; NOLTE, D. Regionalismo post-hegemónico en crisis. Por qué la Unasur se desintegra, Foreign Affairs Latinoamérica, v.18, n. 3, p. 105-112, 2018.

MIJARES, V. M.; RAMÍREZ, S. H. El factor Venezuela en la Crisis del Regionalismo Posthegemónico. Working Paper, 2020.

NEVES, B. C.; HONORIO, K. S.. Latin American Regionalism Under The New Right. E-INTERNATIONAL RELATIONS, v. SEP, p. 1, 2019

POZO, P. C. del. El regionalismo a examen. La crisis global de la integración. Revista de Fomento Social, v. 74, n. 3, p. 349-368, 2020.

RAMANZINI Jr., H.; MARIANO, M. P. A política externa brasileira e as relações com a América do Sul entre 2008 e 2015. Texto IPEA, 2016.

SPEKTOR, M. One Foot in the Region: Eyes on the Global Prize. Americas Quarterly, New York, issue: The new Brasil and the changing hemisphere, spring, 2011.

VADELL, J. A.; GIACCAGLIA, C. El Rol de Brasil en el Regionalismo Latinoamericano: la apuesta por una inserción internacional solitaria y unilateral. Foro INternacional, LX, n. 3, cuad. 241, p. 1041-1080, 2020.

 

Veja mais artigos relacionados: 

  1. Como a América do Sul responde à crise pandêmica?
  2. Processos de crise e securitização na Hungria: da pauta econômica às “ameaças nacionais” da imigração e da COVID-19.
  3. América do Sul em crise: onde estão as instituições regionais?
  4. A crise do Multilateralismo e as lições para os processos de integração regional
  5. Detlef Nolte: É preciso superar a crise atual e revitalizar o regionalismo latino-americano

Escrito por

Bárbara Carvalho Neves

Doutora e Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais - San Tiago Dantas. Bolsista FAPESP (20/04348-5).
Colaboradora do Laboratório de Novas Tecnologias de Pesquisa em Relações Internacionais (LANTRI), do Grupo Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Grupo de Reflexión sobre Desarrollo y Integración en América Latina y Europa (GRIDALE).
Áreas de Interesse: Política Externa Brasileira, Regionalismo Sul-Americano, Instituições Regionais, Integração em Infraestrutura, IIRSA e COSIPLAN.
Linkedin (https://www.linkedin.com/in/b%C3%A1rbara-neves-765055128/)
Lattes (http://lattes.cnpq.br/1285958251025487)