A emergência da pandemia do Covid-19 (Sars-CoV-2) no ano de 2020 tem agudizado a percepção de crise regional na América do Sul. Desde que as atenções se voltaram para a cidade chinesa de Wuhan, considerada marco inicial da pandemia, o epicentro do coronavírus já migrou para a Europa, para os Estados Unidos e agora para o Brasil. Dada a excepcionalidade desse contexto e os desafios colocados pela crise sanitária, argumenta-se que a situação sul-americana desperta especificidades devido ao processo de deterioração social e política que ocorrem nesses países mesmo antes do surto epidemiológico. Antes da pandemia, estimava-se que o período 2014-2020 seria o de menor crescimento das economias latino-americanas em sete décadas. Com a pandemia, a retração econômica é estimada em torno de 5,3% (CEPAL, 2020).

Desse modo, esse texto busca analisar as respostas da América do Sul à pandemia do coronavírus, mais precisamente as iniciativas regionais. A atuação regional oferece pistas sobre os comportamentos exteriores dos governos nacionais, tornando esta uma discussão também do universo da política externa. A crise evidencia o modo como a problemática sanitária extrapola o âmbito doméstico do Estado, considerando a abrangência e as implicações transfronteiriças dessa ameaça global. No entanto, de acordo com Riggirozzi (2020, p. 2), diferentemente da década passada, há atualmente na América Latina uma “clara erosão do pensamento e da prática da governança regional sanitária”, fruto de uma conjuntura que é marcada pelo distanciamento político entre os países e pela falta de liderança regional.

Em linhas gerais, a governança da saúde na região assumiu três feições principais: (I) a criação de marcos normativos que ensejaram processos de governança e a articulação de redes intergovernamentais em respaldo a ações de especialistas em saúde; (II) a profusão de recursos e conhecimento em suporte às políticas públicas nesta área; e (III) a inovação em dinâmicas de representação e diplomacia regionais frente a atores externos (RIGGIROZZI, 2020). Diversos conceitos amplificados pela pandemia – tais como sistemas de saúde, coordenação de respostas conjuntas, cooperação setorial, intercâmbio de informações, estudos epidemiológicos – eram pertencentes do universo de atuação do CSS-ISAGS.

Nesse contexto, partimos do entendimento de que a derrocada da Unasul importa na medida em que impactou os trabalhos do Conselho de Saúde Sul-Americano (CSS) e do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), justamente no momento em que urgem as tratativas intergovernamentais em saúde. Ou seja, diante da falta de uma visão integradade saúde e de um panorama de regionalismo  em crise, as respostas regionais ao coronavírus são constrangidas.

A Covid-19 e a América do Sul

Criado em 2019, o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul) desponta como mecanismo intergovernamental destinado a oferecer alguma sobrevida à articulação conjunta de seus 8 países signatários. No dia 17 de março, os países do Prosul assinaram a Declaração presidencial sobre ações conjuntas para enfrentar a pandemia do coronavírus, dentre as quais estão:

  • o intercâmbio periódico de informações sobre a evolução de medidas concernentes a transporte aéreo, terrestre e marítimo, especialmente no que se refere a medidas que restrinjam ou afetem a transitoriedade das pessoas;
  • troca de boas práticas governamentais que contribuam para a criação de políticas públicas e a adoção de medidas de mitigação e o combate de fake news;
  • coordenação para compra conjunta de insumos médicos, no âmbito da OPAS, bem como para solicitar recursos junto a organizações regionais como Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF);

No entanto, podemos questionar a eficácia dessas medidas. Conforme o próprio termo do documento, os objetivos listados implicam somente uma “declaração de vontades” desses países e não evidenciam os aspectos essenciais mais básicos de exequibilidade de políticas coordenadas, tais como a previsibilidade de metas e prazos e o planejamento de estratégias e táticas a serem implementadas para a consecução desses objetivos. Outra barreira para efetivação dessas medidas está na miríade de comportamentos presidenciais. Ou seja, como é possível falar em melhoria do diálogo, trocas de informações e combate a fake news, diante da presidência brasileira, que tem operado sob uma lógica de insulamento, refutação da imprensa e propagação de desinformações? Além disso, a própria divergência entre posturas mais brandas e mais rígidas dos governantes sul-americanos coloca em xeque a construção de uma política regional de combate ao coronavírus.

Nesse sentido, destaca-se o Brasil, que tem sido um entrave para os esforços diplomáticos contra o coronavírus. Enquanto a maioria dos países sul-americanos já dispunha sobre o fechamento das fronteiras e a necessidade de cooperação durante essa conjuntura, o Planalto investia energia política em sentido contrário. O presidente Jair Bolsonaro sequer participou da reunião presidencial do Prosul, sendo o único mandatário ausente na ocasião. Com efeito, o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, justificou a manutenção do embarreiramento da fronteira com o Brasil alegando que o país se configura “uma grande ameaça”, discurso análogo ao adotado por presidentes do Cone Sul. O Paraguai é um dos países latino-americanos com respostas mais efetivas contra a pandemia, assim como a Argentina, cujo presidente atingiu altos índices de popularidade por conta da condução do combate à pandemia.

Outro ponto resvala na real vontade de intercâmbio de dados presente na Declaração. Desde março, o Ministério da Saúde brasileiro enfrenta uma série de críticas por falhas nos protocolos de notificação, falta de divulgação dos números e atrasos na computação e atualização de dados na plataforma oficial. Mais recentemente, houve ainda conflitividade dos dados oficiais que fora motivada por mudanças nos protocolos de sistematização do governo. Ilustrativo desse descompasso regional é o governo chileno, cuja difusão de informações inclui detalhamentos como a quantidade de testes diários, taxas de ocupação de leitos e uso de ventiladores pulmonares. Colômbia, Peru e Uruguai também apresentam níveis de publicização acima da média.

Por seu turno, o Mercosul respondeu à crise de um modo mais concreto. O bloco conesulino acordou a destinação de um aporte de 16 milhões de dólares para o combate à pandemia, além de outras alocações de recursos via Focem. Karina Mariano reitera o fato de o Brasil ter sido o país que menos contribuiu para esse montante, apesar de ser a primeira economia da região, uma postura que é simbólica do atual ‘autoisolamento’ do país na região. O Paraguai, na condição de presidente pro tempore, tem ensejado iniciativas para acelerar investigações em imunologia e enfermidades infecciosas, principalmente a Covid-19, em parceria coordenada entre o Instituto Pasteur do Uruguai e a Fiocruz do Brasil.

A pandemia ainda trouxe à tona o papel de instituições financeiras no aporte econômico aos países prejudicados pela crise. Os países signatários da Aliança do Pacífico (Chile, Colômbia, México e Peru) adquiriram junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) uma aprovação exclusiva de acesso a uma reserva (Linha de Crédito Flexível) de 107 bilhões de dólares, um valor que excede o montante destinado pelo Fundo a mais de 100 países. Diferentemente das condicionalidades impostas pelo Fundo, que são velhas conhecidas pelas economias latino-americanas desde a década de 1990, essa modalidade de apoio não exige uma contrapartida específica, a não ser pelo fato dessa aprovação estar diretamente vinculada ao histórico de liberalização econômica recomendada pela instituição.

Dadas as assimetrias na região, a verificação das medidas tomadas individualmente pelos governos nacionais oferece um cenário ainda mais complexo, principalmente se considerarmos as diferenças de capacidades e o elevado grau de subnotificação desses países (o que torna o quadro ainda mais nebuloso). Ainda assim, pontua-se que um fato comum a essas nações foi o estabelecimento de programas de proteção social destinados aos efeitos excepcionais da conjuntura pandêmica. Dentre as medidas mais recorrentes na região, conforme dispõe o Quadro 1, destacam-se a criação e/ou ampliação de programas de transferências monetárias (auxílio na renda), a distribuição de alimentos e produtos de higiene, e a flexibilização do pagamento de contas de serviços domésticos básicos (água, energia, gás etc.).

 

Quadro 1 – Medidas de proteção social na América do Sul devido ao Covid-19

Fonte: o autor, com base em CEPAL (2020)

 

O estudo da CEPAL (2020) destaca que Argentina, Bolívia e Brasil são casos de países que criaram novas modalidades de transferência de renda por conta da Covid-19, enquanto Colômbia, Paraguai e Uruguai adaptaram programas sociais já existentes. Venezuela e Uruguai promoveram doações de alimentos, igualmente Colômbia e Equador, que estabeleceram parcerias com o setor privado. Já as ações mais incisivas de postergação ou suspensão de contas de serviços essenciais foram implementadas em Argentina, Chile e Equador. O estudo mostra que essas modalidades não são excludentes, havendo casos que combinam um pacote de medidas. Há que se considerar também que essas medidas variam em abrangência e eficácia de um país para outro e que há uma série de obstáculos referentes à burocratização e falta de suporte governamental para que esses benefícios cheguem satisfatoriamente aos grupos sociais mais vulnerabilizados pela crise.

Nota-se ainda que os governos sul-americanos adotaram, de modo geral, alguma forma de isolamento social, mesmo considerando as variações de restritividade e abrangência de um país para outro. As exceções ficam por conta do Uruguai – que, apesar da não-obrigatoriedade do isolamento, contou com uma estratégia coordenada que apela à responsabilidade voluntária da população – e Brasil, cuja presidência tem desestimulado e até mesmo negado as diretrizes da Organização Mundial da Saúde. Neste caso, diante da omissão do governo federal, a decretação de protocolos dessa natureza coube aos governos estaduais. A divergência de estratégias entre ambos os países recai sobretudo nas posições antagônicas assumidas por seus presidentes: enquanto o uruguaio Luis Lacalle Pou aposta na sinergia saúde-economia, Jair Bolsonaro decidiu apelar para o discurso econômico em detrimento de uma efetiva ação sanitária. Sintomático desse movimento brasileiro é o esvaziamento do Ministério da Saúde e sua consequente militarização.

A pandemia tem servido de pano de fundo para a escalada do autoritarismo, em reforço a uma tendência que se percebe globalmente. O Brasil é um dos exemplos, tanto pelo enfraquecimento da transparência já listada, e que inclui ataques a instituições democráticas e à liberdade de imprensa, quanto pelas incursões internacionais contra os direitos humanos, o multilateralismo e a OMS. Por exemplo, o Itamaraty, sob comando do ministro das Relações Exteriores, o diplomata Ernesto Araújo, impôs censura à utilização de jornais e revistas nacionais que subsidiavam com informações (clipping) os diplomatas brasileiros no exterior, por serem considerados demasiadamente ‘críticos’ ao governo. Sabe-se ainda que esse cerceamento inédito foi estendido aos veículos estrangeiros, cada vez mais indagadores da postura de Bolsonaro.

Por seu turno, a Bolívia, imersa em crise institucional desde a renúncia de Evo Morales e a ascensão da senadora Jeanine Áñez à presidência interina do país, decretou lei que pune em até 10 anos de cadeia quem disseminar desinformação sobre o coronavírus. O amplo rechaço dentro e fora do país, que alertava que o decreto abria brechas para a punição indiscriminada e atentava contra a liberdade de expressão, forçou a revogação da medida.

Reflexões sobre o regionalismo na pós-pandemia

A crise atual levanta o questionamento sobre a capacidade de geração de consensos e busca de soluções conjuntas do regionalismo. A discussão sobre o comportamento dos organismos internacionais em tempos de crise não é algo novo e, no caso da América do Sul, o tema do “regionalismo em crise” vem sendo tratado desde pelo menos 2015. Ainda assim, é importante avaliar como um fenômeno global ressoa de modos distintos no interior das comunidades política.

Em paralelo ao aspecto de fragmentação e desunião do caso sul-americano, a União Africana tem provado que é possível estabelecer uma coordenação política mínima entre os países para combater os efeitos da pandemia. Conforme demonstra Ribeiro (2020), em artigo publicado anteriormente no Observatório, os países africanos utilizaram as experiências adquiridas com surtos epidemiológicos passados e apostaram em uma estratégia conjunta que tem estimulado o papel do regionalismo na África.

Desse modo, a busca pelo adensamento da coesão intrarregional a nível de América do Sul é mister na agenda pós-pandemia. O regionalismo sul-americano das últimas décadas reforçou a opção por espaços políticos que não priorizaram a constituição de uma estrutura supranacional mínima e eficientemente autônoma para a gerência de processos de cooperação e integração regional. Resultado disso são iniciativas guiadas ao sabor das alternâncias de plataformas governamentais no poder. Debilidades como essas ganham maior sensibilidade durante a pandemia do coronavírus, em face das reiteradas assimetrias sociais e econômicas.

Um último ponto tem a ver com as implicações da radicalização da política externa brasileira aos processos de integração e cooperação. Desde a eleição presidencial do argentino Alberto Fernández e a notória recusa de Bolsonaro em reconhecê-lo como tal, a assim conhecida ‘parceria estratégica’ entre o Palácio do Planalto e a Casa Rosada segue estremecida. Ademais, o chanceler brasileiro culpou a China, principal parceiro comercial do país, pela proliferação do que ele chamou de ‘comunavírus’ (em alusão ao regime político comunista da China). Viés xenofóbico e retórica agressiva antissistema representam flagrante ruptura com a tradição diplomática brasileira. Cabe analisar, desse modo, como a inserção internacional pífia e errática do Brasil neste momento afetará os interesses exteriores do país no longo prazo.

Referências

CEPAL. El desafío social en tiempos del COVID-19. Informe Especial COVID-19, n. 3. ECLAC, mayo 2020. 22p. Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/45527-desafio-social-tiempos-covid-19. Acesso em: 14 mai. 2020.

RIGGIROZZI, Pía. Coronavirus y el desafío para la gobernanza regional en América Latina. Madrid: Fundación Carolina, 30 marzo 2020.

Escrito por

Lucas Eduardo Silveira de Souza

Bacharel em Relações Internacionais (Unesp) e Mestre em Relações Internacionais (UnB). Área de interesse: América do Sul, regionalismo sul-americano, Unasul, integração regional e política externa brasileira.