Na América Latina, conflitos socioambientais geralmente ocorrem devido a existência de incompatibilidades quanto ao manejo de recursos naturais como a água, a terra e as florestas. O nível de desigualdade na região se traduz na escassez de oportunidades para que grupos historicamente marginalizados tenham acesso à informação, à participação nas instâncias democráticas e à justiça nos temas da agenda ambiental. Isto tem gerado uma tensão latente nos últimos anos ao passo em que se observa um aumento das lutas das comunidades originárias e camponesas pela terra, que reivindicam novas formas de mobilização e participação cidadã para defender seu direito de acesso à natureza (FRANK, 2019).

De modo geral, as tentativas preliminares de integrar participação social, acesso à informação e justiça ambiental remontam à Agenda 211)A Agenda 21 foi um dos documentos resultantes da Rio 92 que destacou a importância de se pensar global e localmente em respostas para os problemas ambientais que vinham sendo discutidos e rumo ao desenvolvimento sustentável, que estabeleceu a participação pública como princípio orientador para a cooperação internacional pelo desenvolvimento sustentável (RIBEIRO; MACHADO, 2018). Esses esforços podem ser observados também na leitura do Princípio 10 da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que afirma:

A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a participação no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar de processos de tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a conscientização e a participação pública, colocando a informação à disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a procedimentos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e reparação de danos (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1992, s/p).

Conhecido também como o princípio da democracia ambiental, o Princípio 10 destaca a importância da participação cidadã nos processos decisórios sobre questões ambientais. Não só isso, estabelece também a necessidade das autoridades governamentais se comprometerem com a promoção do acesso à informação e a justiça nessa agenda (BRASIL; QUEIROZ, 2019).

Projeto mais recente nesse sentido, e instrumento de operacionalização desse princípio, é o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, à Participação Pública e o Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais, ou Acordo de Escazú, firmado em março de 2018 em Escazú, Costa Rica. Dos 33 países que participaram das negociações,  até então 16 são signatários do Acordo, sendo eles: Antígua e Barbuda, Argentina, Bolívia, Brasil, Costa Rica, Equador, Guatemala, Guiana, Haiti, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Santa Lúcia e Uruguai.

O Acordo é o ápice da institucionalização de uma série de trabalhos técnicos regionais iniciados em 2012, sob a tutela da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). Tal aparato institucional foi negociado com a intenção de garantir a implementação na região de diretrizes que promovam os direitos de acesso à informação ambiental, participação pública nos processos de tomada de decisão sobre meio ambiente e orientações para se buscar justiça por crimes ambientais (ORDOÑEZ, 2019).

Bárcena (2018) entende que o Acordo mantém consigo a capacidade de avançar programas de desenvolvimento sustentável contando com a participação oportuna e informada de todos os setores da sociedade. A inserção de atores sociais nesse contexto seria peça chave para abordar temas referentes à ordem ambiental global, como a vulnerabilidade climática, a erosão dos solos e a perda de biodiversidade.

Não só isso, a importância desse mecanismo regional é notada por ser o primeiro tratado multilateral em temas ambientais na América Latina e no Caribe. Tem-se que este foi o primeiro acordo do gênero que conseguiu colocar em uma mesma mesa de negociações representantes da sociedade civil e da alta política dos países que assinaram e se propuseram a ratificá-lo, além de ter contado com ampla participação das lideranças femininas dos movimentos organizados regionais (FRANK, 2019).

Ribeiro e Machado (2018) sinalizam que o principal objetivo do Acordo é democratizar o acesso à informação para pessoas em condição de vulnerabilidade, mais especificamente as comunidades originárias latino-americanas, as quais na grande maioria das vezes se situam à margem da tomada de decisão sobre questões ambientais que os afetarão direta ou indiretamente. Estas pessoas, desse modo, poderiam encontrar nas diretrizes estabelecidas em Escazú a oportunidade de garantir direitos socialmente negados, como o da participação social.

A participação social seria o meio pelo qual atores sociais ampliam a discussão política e inserem grupos geralmente excluídos das estruturas democráticas, transformando práticas dominantes que tendem a ditar os rumos da tomada de decisão (SANTOS; AVRITZER, 2002). Sendo assim, o Acordo fornece elementos para se pensar uma nova institucionalidade política no âmbito dos países signatários, que colocariam na pauta democrática experiências participativas articuladoras da pluralidade como eixo fundamental.

Em decorrência das circunstâncias regionais de ameaças ao meio ambiente, desequilíbrios ecossistêmicos e descaso com as populações marginalizadas, a integralização do que foi construído em Escazú incide também sobre o aspecto de conflitividade socioambiental característico da América Latina. Para tanto, torna-se necessário construir uma nova institucionalidade repensando os paradigmas em vigor, seja de funcionamento da democracia ou de como se pensa o desenvolvimento.

Enrique Leff (2003) argumenta que para ir além desses paradigmas seria necessário buscar conformar diferentes valores culturais, reconhecer a essencialidade e os potenciais da natureza, além de buscar igualdade e a fortificação de valores democráticos. Reconhecer esses pontos seria consubstanciar uma racionalidade distinta capaz de suplantar as desigualdades econômicas e sociais da região, permitindo a emancipação de sujeitos anteriormente subalternos e fazendo com que as suas vozes sejam ouvidas.

Portanto, construir essa nova racionalidade em âmbito regional por meio do Acordo seria etapa essencial na cristalização de uma governança climática e ambiental mais democrática e plural. O debate institucional promovido colabora para compreender a concretude dos problemas ambientais na América Latina e no Caribe como um todo, suscitando o diálogo entre diferentes saberes que desestruturam as lógicas de conhecimento dominantes e ressignificam a natureza desde a cultura.

 

REFERÊNCIAS

 

BÁRCENA, Alicia. O Acordo de Escazú: uma conquista ambiental para a América Latina e o Caribe. CEPAL. 26 set. 2018. Disponível em: https://www.cepal.org/pt-br/articulos/2018-o-acordo-escazu-conquista-ambiental-america-latina-o-caribe. Acesso em: 01 ago. 2020.

BRASIL, Deilton Ribeiro; QUEIROZ, Lorrane. As Múltiplas Dimensões do Acordo de Escazú de São José da Costa Rica: acesso à informação, participação pública e acesso à justiça. In: Encontro Nacional do CONPEDI Goiânia, 28., 2019, Goiânia. Anais eletrônicos… Florianópolis: CONPEDI, 2019, p. 78-95. 

FRANK, Volker. El Acuerdo de Escazú y la Conflictividad Socioambiental en América Latina: ambiente, desarollo y acceso a la información. In: Foro Regional de Transformación de Conflictos Socioambientales en América Latina, 11., 2019, Ciudad de Guatemala. Anais eletrônicos… Ciudad de Guatemala: Cholsamaj, 2019, p. 1-46.

LEFF, Enrique. Racionalidad ambiental y diálogo de saberes: sentidos e senderos de un futuro sustentable. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 7, p. 13-40, 2003.

RIBEIRO, Érica Bezerra Queiroz; MACHADO, Bruno Amaral. O Acordo de Escazú e o acesso à informação ambiental no Brasil. Revista de Direito Internacional, v. 15, n. 3, p. 251-265, 2018.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/sc/municipios/itajai/gerco/volume-v. Acesso em: 02 ago. 2020.

ORDOÑEZ, Sergio Henrique Hernandéz. El Acuerdo de Escazú: retos y desafíos de un texto con ambigüedades legales y aspectos relacionados con el comercio internacional. Revista Internacional Transparencia e Integridad, s/v, n. 9, p. 1-11, 2019. 

SANTOS, Boaventura de Souza; AVRITZER, Leonardo. Introdução. In: Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2002.

Notas   [ + ]

1. A Agenda 21 foi um dos documentos resultantes da Rio 92 que destacou a importância de se pensar global e localmente em respostas para os problemas ambientais que vinham sendo discutidos e rumo ao desenvolvimento sustentável

Escrito por

Raí Honorato

Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, campus Poços de Caldas. Pesquisador associado ao Grupo de Estudos em Política e Direito Ambiental Internacional (GEPDAI), vinculado ao CNPq; membro do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) e integrante do Observatório de Regionalismo (ODR), vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI). Participa também das Práticas Simuladas, projeto encabeçado pelo San Tiago Dantas em parceria com o Escritório de Representação em São Paulo do Ministério de Relações Exteriores (ERESP). Agendas de interesse: (1) mudanças climáticas e redução de emissões, (2) comunidades e representações indígenas, (3) integração regional, com foco na América Latina e Ásia, (4) política externa brasileira e (5) hidropolítica. Também foi aluno extensionista e atuou como Secretário-Geral do projeto de simulação e modelagem "MINIONU".