A 50ª Cúpula do Mercado Comum do Sul (Mercosul), realizada em Mendoza, na Argentina, no dia 21 de julho, além da mudança na presidência pró-tempore que deixou de ser da Argentina e dirigiu-se ao Brasil, foi marcada por duas questões reiteradas pelos Chefes de Estado: a necessidade de superar as dificuldades do bloco e ampliar o livre-comércio; e a situação interna na Venezuela, ressaltando a crise da democracia representativa no país que atualmente encontra-se suspenso do Mercosul. Ambos os temas da agenda remetem às mudanças de governo e de orientação de Política Exterior no Brasil, Argentina e Paraguai.

Com relação ao primeiro tema, o presidente brasileiro, Michel Temer, enfatizou que o bloco possui “vocação para o livre mercado, para a democracia e para os direitos humanos”. Temer destacou que o bloco, criado em 1991, foi influenciado pela conjuntura de abertura comercial e consolidação da redemocratização presente em sua origem. O presidente brasileiro posicionou-se, assim, de forma crítica às orientações do bloco nos governos anteriores, que indicavam maior preocupação com a justiça social e com a concertação política, como anunciava o Consenso de Buenos Aires assinado por Lula e Néstor Kirchner em 2003.

De forma convergente, o Ministro de Relações Exteriores do Paraguai, Eladio Loizada, afirmou no dia anterior à Cúpula que o bloco regressou às suas origens ao avançar na agenda econômica e comercial. O presidente argentino, Maurício Macri, sustentou em seu discurso de abertura da Cúpula a ênfase que foi dada durante  sua presidência pró-tempore na ampliação de acordos comerciais. Nesse sentido, um ponto a se destacar é a retomada das negociações da parceria comercial entre Mercosul e União Europeia, tentativa inicialmente proposta ainda em 1999 sem resultados concretos, e as iniciativas de aproximação do bloco com a Aliança do Pacífico.

Notadamente pela aproximação política atual entre Argentina, Brasil e Paraguai, as agendas governamentais retomaram o discurso de “relançamento do Mercosul” e predominou a argumentação de volta às origens. Contudo, cabe ressaltar as diferenças entre a conjuntura de criação do Mercosul e a contemporaneidade – se a última década do século XX foi um momento de expansão do liberalismo e de preponderância dos Estados Unidos, hoje o mundo é marcado pela crise da globalização, pela retomada de nacionalismos e pelos desafios russo e chinês à hegemonia estadunidense. O sistema internacional é, portanto, bastante diferente e menos receptivo a tal estratégia do que havia sido nos anos 1990.

As declarações de Temer e Macri indicam que o Mercosul tende a retomar o paradigma do regionalismo aberto: um tipo de integração em convergência com a ordem internacional, em que a abertura comercial regional é vista como um primeiro passo à liberalização global. Há uma nítida mudança com relação à ótica regionalista colocada em voga na última década pelos governos mais progressistas, a qual ficou conhecida por regionalismo “pós-liberal” ou “pós-hegemônico” em que os temas de liberalização e desregulação comercial foram deslocados a uma esfera mais política em prol dos Estados e houve uma repolitização na região.

Já com relação ao segundo tema, a questão interna na Venezuela foi aspecto central do encontro e gerou debates importante entre os Estados-membro. Vale lembrar que no início de dezembro de 2016 os quatro membros originários do Mercosul decidiram suspender o país do bloco não em virtude de suas instabilidades internas, mas sim pelo fato do mesmo ter “descumprido as obrigações assumidas” no Protocolo de Adesão da Venezuela ao Mercosul então firmado quatro anos antes, em 2012. Nesse período houve inúmeros questionamentos quanto aos motivos da suspensão venezuelana, visto que os outros Estados também apresentam certa morosidade no processo de internalização das normas e acordos regionais.

Somente no início de abril do presente ano o Mercosul acionou o Protocolo de Ushuaia, termo aditivo ao Tratado de Assunção que trata sobre o compromisso democrático no bloco, na Bolívia e no Chile.  O documento reitera o respeito pela vigência das instituições democráticas e, em caso de ruptura da ordem, afirma, no seu artigo 5º, a possibilidade dos demais Estados membros suspenderem os direitos de participação e retirarem as obrigações decisórias institucionais.  Assim, Aloysio Nunes, Ministro de Relações Exteriores do Brasil, disse que houve ruptura democrática na Venezuela e, em decorrência, Ushuaia deveria ser aplicado.

Na 50ª Cúpula, a Argentina, o Brasil e o Paraguai, pretendiam ações mais enérgicas com relação ao país bolivariano, enquanto o Uruguai demandava moderação e rejeitava qualquer atitude que significasse ingerência externa naquele país. Como resultado, a declaração firmada pelos quatro países fundadores do bloco enfatiza a necessidade de diálogo e demanda que governo e oposição não levem a cabo nenhuma inciativa que possa ampliar a divisão social e agravar conflitos institucionais, uma referência às eleições para uma Assembleia Nacional Constituinte convocada pelo presidente Nicolás Maduro. Os países membros do Mercosul também se ofereceram como mediadores dispostos a acompanhar o diálogo entre os venezuelanos.

Alguns analistas consideraram a declaração final como um relativo fracasso do governo argentino de Maurício Macri, já que esse pretendia uma postura mais condenatória ao governo de Maduro. Contudo, a amenização do discurso proporcionada pelo Uruguai; a afirmação de que a crise venezuelana só poderá ser solucionada pelos próprios venezuelanos e a disposição do bloco, incluindo Chile, Colômbia, Guiana e México, em ser uma arena de diálogo e concertação política devem ser tomados como pontos positivos da reunião realizada dias atrás. Por outro lado, no que se refere à tentativa de “relançar” o bloco e retornar aos anos 1990, há que ressaltar que a segunda década do século XXI é marcada por desafios à globalização , temas inclusive afirmados no discurso de Macri. Assim, os governos atuais devem estar cientes dessa dinâmica e observarem que não basta pautar uma agenda comercial sem considerar as necessidades de desenvolvimento e de concertação política para atuar em uma ordem internacional restritiva.

* Artigo escrito em coautoria com Lívia Peres Milani, doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós Graduação “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES).

Escrito por

Cairo Junqueira

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS). Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Mestre em Relações Internacionais, com ênfase em Política Internacional e Comparada, pela Universidade de Brasília - Instituto de Relações Internacionais (UnB/IREL). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (UNESP/FCHS). Foi Pesquisador Visitante junto à Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires (UBA) - PPCP/Mercosul/CAPES. Atualmente é membro do Observatório de Regionalismo (ODR) vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPPs), além de ser colaborador do Projeto de Extensão "Internacionalização Descentralizada em Foco" (IDeF). Por fim, é coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Política Internacional e Sul-Americana (GP-SUL) com as seguintes linhas de interesse: Instituições Internacionais, Integração Regional e Paradiplomacia.