Em 23 de junho de 2016, iniciou-se o processo de saída do Reino Unido da União Europeia (UE), após a opção Leave ter vencido um referendo questionando se o país deveria permanecer como membro do bloco europeu ou deixar o processo de integração[1]. O processo ficou popularmente denominado Brexit, uma espécie de contração do termo Britain’s Exit. Como já salientado anteriormente em outros textos do Observatório, a votação foi extremamente apertada, 51,9% dos votos foram favoráveis à saída do Reino Unido da União Europeia (Leave), enquanto que 48,1% votaram pela permanência (Remain), sendo o comparecimento nas urnas de 72,2% – recordando que a votação no país não é obrigatória (ELECTORAL COMMISSION, 2016).
No dia 29 de março de 2017, a atual Primeira-Ministra britânica Theresa May, do Partido Conservador (Conservative Party) enviou para o Presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, uma carta ativando o Artigo 50 do Tratado da União Europeia, também conhecido como Tratado de Lisboa (CONSELHO EUROPEU, 2017). O Artigo estabelece que qualquer Estado-membro pode decidir se retirar da UE, desde que esteja de acordo com as respectivas normas constitucionais. Prevê que o Estado precisa notificar ao Conselho Europeu a decisão, estabelecendo Conselho e Estado um acordo que condicione a saída da integração. Desta forma, os tratados celebrados no âmbito da União Europeia não mais serão aplicáveis ao Estado que deseja sair do processo, assim que forem acordados os termos de retirada. Caso não haja acordo, os acordos com a UE perderão a validade dois anos após a notificação de saída e ativação do Artigo 50. No entanto o prazo pode ser prolongado se assim o Conselho desejar (TRATADO DE LISBOA, 2008). É um artigo que dá à Bruxelas o poder de conduzir a separação, ainda que o ímpeto inicial seja evocado pelo Estado que deseja se separar (MORILLAS, 2017).
Portanto, ativado o Artigo 50, as negociações deveriam desembocar em um acordo de “divórcio” entre as partes até março de 2019 (respeitando os dois anos). Contudo, o resultado do referendo explicitou uma sociedade bastante dividida quanto à saída do Reino Unido do processo de integração europeu, gerando certa instabilidade na condução do processo, seja por parte da população, que chegou a protestar por um novo referendo, seja por parte da oposição política ao governo dos Conservadores, capitaneada pelo Partido Trabalhista (Labour Party).
Neste contexto, a Primeira-ministra Theresa May tem uma visão bastante assertiva da condução das negociações, não desejando um Brexit suave como muitos políticos, empresários e analistas consideram ser o melhor resultado, mas, sim uma saída da UE de forma integral – um Brexit ‘duro’ – sem que o país permaneça, por exemplo, como parte do mercado único, ainda que se busque um acordo de livre-comércio com o bloco (BERCITO, 2017; THERESA MAY, 2017). Na carta enviada, a Ministra propôs sete princípios para guiar as negociações: Deve haver um espírito de cooperação entre os dois lados; Os cidadãos devem ser colocados em primeiro plano; Um acordo que compreenda os interesses de ambas as Partes nas áreas de economia e segurança; Trabalhar para diminuir as incertezas; Prestar particular atenção às questões que envolvam a Irlanda e Irlanda do Norte; Devem ser priorizados os grandes desafios nas negociações antes das questões técnicas (há uma proposição de uma área de livre comércio neste item); Trabalhar juntos para proteger os valores europeus (MAY, 2017).
Após a ativação do artigo 50, a contagem regressiva para conclusão de um acordo se iniciou. Assistindo às divisões políticas e sociais que o Brexit gerava na sociedade britânica, Theresa May convocou, em 18 de abril, eleições gerais para o dia 8 de junho. Com a convocação, a líder conservadora esperava que a partir da votação popular, seu partido estabelecesse uma maioria no Parlamento, de forma que a Primeira-ministra permanecesse no cargo (PREMIÊ BRITÂNICA, 2017).
A estratégia teria como finalidade dar maior estabilidade e segurança à condução do Reino Unido frente às negociações com a União Europeia. Desta forma, May procurou dar, através de novas eleições, maior legitimidade à sua condução do Brexit, além de tentar diminuir o espaço dos partidos de oposição no Parlamento, uma vez que a maioria fosse conquistada (MORILLAS, 2017). Àquela altura, a Primeira-ministra desfrutava alta popularidade frente à população britânica (61%), o que, provavelmente, ensejou a ideia de May em lançar as eleições gerais (MAIDMENT, 2017).
No entanto, o apoio à May se viu enfraquecendo na medida em que a campanha avançou. Temas polêmicos relativos à reformulação de políticas de assistência social proposta por May, e um ataque terrorista ocorrido em Manchester, dinamitaram a popularidade da Primeira-ministra e construíram caminho para a ascensão do Partido Trabalhista, sobretudo, na figura de Jeremy Corbyn (GUIMON, 2017). O resultado da desidratação da figura de May foi não conquistar a maioria nas eleições gerais que ela mesma convocou.
O Partido Conservador ainda obteve mais votos do que o Partido Trabalhista, no entanto, os votos não foram suficientes para o governo formar uma maioria no Parlamento, e desta forma poder governar de forma mais “estável” e com uma oposição menos poderosa, como era esperado por May. Os conservadores obtiveram 42,45% dos votos, enquanto os trabalhistas obtiveram 39,99%. No computo das cadeiras, conservadores ficaram com 318 assentos no Parlamento, perdendo 13 que possuíam antes das eleições. Enquanto que os trabalhistas, ainda que tenham ficado com 261 assentos, ganharam 32 assentos a mais do que tinham anteriormente (UK ELECTION, 2017).
Sendo assim, o desejo de May de se fortalecer para as negociações com a UE, que se iniciariam dia 19 de junho, não correspondeu à realidade. A saída da Primeira-ministra foi formar uma coalização com um partido da Irlanda do Norte, o Democratic Unionist Party (DUP), que possui 10 assentos. No entanto, o DUP é um partido que, de forma geral, busca um Brexit suave, uma vez que preza pelas relações com a Irlanda, país membro da União Europeia, mas que não faz parte do chamado Reino Unido. Como Reino Unido e Irlanda, por enquanto, fazem parte da União Europeia, a aproximação entre Irlanda do Norte e Irlanda se tornou maior nos últimos tempos. Um Brexit duro, como propunha May, significaria uma modificação, ao menos temporária, na relação entre Irlanda do Norte e Irlanda, algo não desejado pelo DUP (SERVA, 2017).
Por isso, ao estabelecer uma aliança com este partido, inicialmente, May parece ficar fragilizada em sua proposta de condicionar as negociações para um Brexit em sua integralidade, como a ministra costumava propor antes de convocar as eleições gerais. Após a “derrota” nas urnas, a Ministra tem tentado estabelecer um diálogo com a oposição, mas Corbyn e seu Partido Trabalhista são irredutíveis em questionar a legitimidade do governo Conservador de May após este não ter angariado a maioria necessária nas eleições gerais. A líder, no entanto, permanece convicta em seus discursos de que prosseguirá com o Brexit em sua integralidade (EXAME HOJE, 2017).
Concomitante a esta crise na política doméstica britânica, as negociações entre o Reino Unido e a União Europeia foram iniciadas, de forma oficial, em 19 de junho. O secretário de Estado nomeado exclusivamente para lidar com o Brexit, David Davis, se reuniu com o chefe negociador da UE, Michael Barnier. A principal diretriz da UE nas negociações são os direitos dos cidadãos britânicos que vivem na União, e os direitos dos cidadãos europeus que vivem na ilha britânica, de acordo com o Conselho Europeu, “minimizando a incerteza (…) para os nossos cidadãos, empresas e Estados-membros” (CONSELHO EUROPEU, 2017). Há também a preocupação em sanar as contas que Reino Unido possui com os sócios europeus em acordos do processo de integração. Entre as exigências da União para que o Reino Unido continue parte do mercado único europeu, estaria a aceitação da jurisdição do Tribunal de Justiça da UE e a livre-circulação de trabalhadores. Pontos muito criticados por May e pelos partidários do Brexit (ABELLÁN, 2017).
Em discurso de reunião da Comissão Europeia, Michael Bernier salientou os principais pontos de divergência entre Reino Unido e UE que surgiram na primeira rodada de negociação. Primeiro, a União quer que os cidadãos europeus tenham os mesmos direitos que os cidadãos britânicos que vivem na UE possuem, contudo, a posição britânica atual não permite tal reciprocidade, pois submete os cidadãos da UE à lei britânica, que impõe certas restrições para estrangeiros. A União gostaria, portanto que os cidadãos europeus no Reino Unido tivessem no acordo do Brexit uma base jurídica para garantir seus direitos, sendo garantidos pela Corte de Justiça da União Europeia. Pontos que os britânicos divergem da União, uma vez que a lei britânica prevaleceria nestes casos (BARNIER, 2017).
No entanto, como visto anteriormente, após as eleições gerais, May e os partidários de um Brexit mais integral perderam certa margem de manobra nas negociações. Discute-se já a mudança de tom do governo britânico nas negociações, ainda que certos agentes internos digam que a posição governista permanece a mesma daquela que Theresa May assumiu antes das eleições. Por exemplo, já estaria sendo aventada, sobretudo na parte econômica das negociações, a possibilidade da manutenção de uma União Aduaneira entre Reino Unido e UE, ou pelo menos a permanência da livre-circulação de trabalhadores, um posicionamento que interessa muito os empresários (ROBERTS, 2017).
Assim, alguns setores empresariais do Reino Unido parecem aproveitar o momento de fragilidade do governo para incutir a ideia de um Brexit suave. Por exemplo, em discurso na London School of Economics, Carolyn Fairbairn, diretora-geral da Confederação das Indústrias Britânicas (CBI), afirmou que não se deve subestimar o risco de reverter os processos de integração que o Reino Unido havia estabelecido com a União Europeia nos últimos anos e que deixar a União sem um acordo econômico e político, deixaria muitas empresas em uma situação extremamente complicada (FAIRBAIRN, 2017).
Resta saber qual o peso que a pressão dos empresários pode fazer junto à condução política que Theresa May vem dando ao processo. Enquanto as negociações entre Reino Unido e União Europeia continuam, as incertezas permanecem. Quando o Brexit era apenas uma possibilidade, discutia-se muito o grau de instabilidade que a saída do Reino Unido poderia gerar em uma União Europeia já fragilizada pela Crise do Euro e pela ‘Crise dos Refugiados’. Se for um fato que a saída de um membro de peso gera incertezas para o processo de integração europeu, atualmente é também um fato que o Brexit foi e é um grande catalisador de incerteza doméstica no reino da rainha. May já fez uma jogada arriscada ao convocar as eleições gerais, não saindo tão vitoriosa quanto esperava. Mais uma jogada errada da Primeira-Ministra, e o Brexit pode se mostrar mais perverso do que aparentou no começo, neste caso, mais para o governo do Partido dos Conservadores do que para a própria União Europeia.
Referências
ABELLÁN, Lucía. UE e Reino Unido começam a negociar o Brexit em Bruxelas. El País. 19 de junho de 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/18/internacional/1497820611_186694.html>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
BARNIER, Michael. Speaking Points by Michael Barnier after the College Meeting. European Commission. Brussels, 12 july 2017. Disponível em: <http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-17-2005_en.htm>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
BERCITO, Diogo. May indica Brexit ‘duro’ e Reino Unido deve deixar mercado comum europeu. Mundo. Folha de São Paulo. 17 de janeiro de 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/01/1850505-may-indica-Brexit-duro-e-reino-unido-deve-deixar-mercado-comum-europeu.shtml>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
CONSELHO EUROPEU. Declaração do Conselho Europeu (artigo 50º) sobre a notificação do Reino Unido. Conselho Europeu. Conselho da União Europeia. 29 de março de 2017. Disponível em: <http://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2017/03/29-euco-50-statement-uk-notification/>. Acesso em 14 de julho de 2017.
ELECTORAL COMMISSION. EU referendum results. 2016. Disponível em: <https://www.electoralcommission.org.uk/find-information-by-subject/elections-and-referendums/past-elections-and-referendums/eu-referendum/electorate-and-count-information>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
EXAME HOJE. Theresa May vai tentar convencer a oposição. Mundo. Exame. 11 de julho de 2017. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/mundo/o-apelo-de-may-pela-uniao/>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
FAIRBAIRN, Carolyn. Speech: “Eyes wide open”, the importance of a smooth transition to a new EU deal. Confederation of British Industry. 6 july 2017. Disponível em: <http://www.cbi.org.uk/news/speech-eyes-wide-open-the-importance-of-a-smooth-transition-to-a-new-eu-deal/>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
GUIMÓN, Pablo. Subida inesperada de trabalhistas na corrida eleitoral preocupa conservadores no Reino Unido. Internacional. El País. 30 de maio de 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/29/internacional/1496093135_133912.html>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
MAIDMENT, Jack. Theresa May most popular leader since 1970s as Jeremy Corbyn hits all time low. News. The Telegraph. 27 april 2017. Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/news/2017/04/26/theresa-may-popular-voters-leader-since-late-1970s/>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
MAY, Theresa. The Primer Minister. 29 de março de 2017. Disponível em: <http://www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2017/03/pdf/070329_UK_letter_Tusk_Art50_pdf/>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
MORRILAS, Pol. Habrá Brexit?. Barcelona Center for International Affairs. Junho de 2017. Disponível em: <https://www.cidob.org/es/publicaciones/serie_de_publicacion/opinion/europa/habra_Brexit>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
TRATADO DE LISBOA. Tratado de Lisboa – Versão Consolidada. Comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República. Ministério dos Negócios Estrangeiros. Lisboa, Assembleia da República, março de 2008. Disponível em: <https://www.parlamento.pt/europa/Documents/Tratado_Versao_Consolidada.pdf>. Acesso em: Acesso em 14 de julho de 2017.
PREMIÊ BRITÂNICA. Premiê Britânica convoca eleições gerais no Reino Unido para 8 de junho. BBC BRASIL. 18 de abril de 2017. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39630249>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
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SERVA, Leão. Nanico irlandês se agiganta e vira estrela da eleição no Reino Unido. Mundo. Folha de São Paulo. 09 de junho de 2017. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/06/1891589-nanico-irlandes-se-agiganta-e-vira-estrela-da-eleicao-no-reino-unido.shtml>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
THERESA MAY. Theresa May assina carta que pede a saída do Reino Unido da UE. Brexit. El País. 28 de março de 2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/28/internacional/1490724964_088203.html>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
UK ELECTION. UK Election 2017: full results. The Guardian. 9 june 2017. Disponível em: <https://www.theguardian.com/politics/ng-interactive/2017/jun/08/live-uk-election-results-in-full-2017>. Acesso em: 14 de julho de 2017.
[1] Respondendo à pergunta: “Should the United Kingdom remain a member of the European Union or leave the European Union?”.