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Os conceitos de globalização e mundialização, apesar de compartilharem elementos de conexão global, são distintos em suas abordagens e implicações. A globalização, frequentemente associada a questões econômicas e tecnológicas, refere-se a uma crescente interdependência entre nações, marcada pela redução de barreiras comerciais e o avanço da tecnologia. Já a mundialização, de acordo com Zygmunt Bauman (2005), está ligada à fragmentação da identidade, onde a cultura e os valores tradicionais enfrentam desafios. Essas diferenças se manifestam em como cada uma dessas perspectivas influencia a regionalização na América Latina, destacando ora um enfoque econômico e tecnológico, ora uma visão cultural e identitária. Mais do que isso, notamos como ambos os conceitos acabam, por vezes, ocupando o mesmo tempo histórico no processo de integração laitno-americano, ainda que com distintos graus de intensidade.

 

Globalização: Interdependência Econômica e Tecnologia

A globalização, segundo teóricos como Robert O. Keohane e Joseph S. Nye. (2001), é caracterizada pela interdependência complexa, onde a integração econômica entre estados se torna um fator dominante. Isso cria um sistema internacional profundamente interligado, mas também pode resultar em assimetrias, onde a riqueza e o poder se concentram em algumas regiões, deixando outras em desvantagem. Milton Santos (2000), em “Por Uma Outra Globalização”, argumenta que a globalização é o estágio mais avançado do capitalismo, e a expansão unilateral da lógica ocidental impõe desafios para a diversidade e a soberania das regiões periféricas.

A América Latina experimentou a influência da globalização desde o final do século XIX, começando com o panamericanismo, onde os Estados Unidos promoveram uma integração continental para fortalecer sua hegemonia. A Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) são exemplos de como os interesses políticos e comerciais dos Estados Unidos moldaram a integração regional. A primeira onda de integração latino-americana foi marcada, por tanto, por uma visão centrada na economia, buscando a liberalização comercial e a expansão do livre comércio.

A segunda onda de integração, no pós-Segunda Guerra Mundial, seguiu uma lógica parecida, mesmo que partindo de uma perspectiva latino-americanista, com a criação da Área de Livre Comércio da América Latina (ALALC), do Mercado Comum Centro-Americano (MCCA) e do Pacto Andino. Essas iniciativas visavam impulsionar a industrialização e a integração regional para aumentar a competitividade no sistema internacional. Esse enfoque na economia refletia a lógica da globalização, destacando a importância do comércio e da tecnologia para o progresso regional.

 

Mundialização: Identidade e Cultura em Foco

Em contraste, a mundialização enfatiza os aspectos culturais e identitários das relações internacionais. Para Bauman (2005), a mundialização está associada a um processo de liquefação das identidades, onde as certezas do passado são desafiadas por uma mistura de culturas e valores. Néstor García Canclini (1997) fala sobre a formação de uma sociedade híbrida, onde o local e o global se encontram em constante interação, mas nem sempre de forma harmoniosa.

Os primeiros ensejos nesse sentido, surgiram na terceira onda de integração latino-americana, nos anos 1980 e 1990, refletindo essa perspectiva, com a criação do Grupo de Contadora e do Grupo do Rio, que buscavam soluções políticas para os conflitos centro-americanos. Soma-se a isso a própria aproximação entre Brasil e Argentina no final do século XX, visando a redução das desconfianças bilaterais, sob o contexto de redemocratização. Essas iniciativas tinham um caráter mais diplomático e político, demonstrando uma preocupação com a identidade regional e a busca por estabilidade na região.

A quarta onda, nos anos 2000, foi marcada pela ascensão de governos mais à esquerda e progressistas, que questionavam a lógica neoliberal e a globalização focada apenas no comércio. Iniciativas como a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) buscavam promover uma integração regional que priorizasse questões sociais e políticas. A ALBA, particularmente, representava uma resposta anticapitalista e antihegemônica ao avanço das multinacionais e à influência dos Estados Unidos na região (BRICEÑO RUIZ, 2013). Até mesmo o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) teria tido seria caráter comercialista expandido a partir do Consenso de Buenos Aires (2003), no qual os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Néstor Kirchner, da Argentina, destacaram a importância da integração regional e do desenvolvimento econômico com justiça social.

 

A Dialética entre Globalização e Mundialização na América Latina

O desenvolvimento da integração latino-americana é uma jornada de constantes oscilações entre as influências da globalização e da mundialização. Enquanto algumas iniciativas se concentram na economia e na tecnologia, outras enfatizam a identidade e a cultura. Esse movimento dialético sugere que a regionalização na América Latina é uma arena de conflitos entre perspectivas distintas, refletindo a diversidade e a complexidade das relações internacionais.

A partir de meados da década de 2010, a tendência parecia favorecer a lógica da globalização, com um retorno ao foco no livre comércio e na abertura econômica, com ascensão de governos com uma mentalidade mais liberalizante, marcando o fim da onda rosa. No entanto, as questões levantadas pela mundialização, como a fragmentação da sociedade e os desafios à identidade regional, permanecem relevantes. As recentes crises na União Europeia, como a saída do Reino Unido (Brexit), refletem que a integração regional, mesmo em contextos mais avançados, pode enfrentar dificuldades quando aspectos identitários são negligenciados.

Dessa forma, a América Latina continua a buscar um equilíbrio entre as forças da globalização e da mundialização. O desafio para a região é criar uma integração regional que respeite as identidades locais, ao mesmo tempo em que busca uma inserção mais justa no sistema internacional. O futuro da integração latino-americana dependerá de como essas duas perspectivas são harmonizadas, criando uma região mais resiliente e coesa.

 

Referência bibliográficas

 

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3ª ed. São Paulo: EDUSP, 1997.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000.

NYE, Joseph S.; KEOHANE, Robert O. Power and Interdependence. 3rd ed. New York: Longman, 2001.

BRICEÑO RUIZ, José. Ejes y modelos en la etapa actual de la integración económica regional en América Latina. In: Desarrollo Económico y Desarrollo Sostenible en América Latina: Balance, Perspectivas y Propuestas. Santiago, Chile: Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), 2013, p. 75-95.

Escrito por

Beatriz Naddi

Doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam-USP). Membro do Observatório de Regionalismo vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa (2014). Realizou intercâmbio acadêmico na Universidad de Guadalajara (México) por meio do Programa de Bolsas Ibero-Americanas Santander Universidades (2012/2). Realiza pesquisas na área de Relações Internacionais, com ênfase em Integração Latino-Americana e História do México.