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Para determinados países, a estratégia única de inserção regional não se adequa a sua realidade geográfica, histórica, econômica e até mesmo cultural. Isto porque, determinados Estados, chamados de bifronte (ou cusp states), encontram-se no limite do que são consideradas duas (ou mais) regiões ou establishments, constituindo uma dualidade intrínseca em sua política externa1. Nesse sentido, é possível identificar posturas e estratégias regionais diferentes, mas complementares. Entre as estratégias, destaca-se a tendência destes Estados bifrontes em valorizar o regionalismo como forma de se proclamarem parte de seus respectivos frontes.
A efeito de ilustração, analisam-se dois países que têm o bifrontismo impresso em sua essência: México e Turquia. De cara, para estes dois países, a geografia estabelece um parâmetro fundamental de inserção regional, na medida em que se encontram entre duas regiões política, econômica e culturalmente divergentes. No caso mexicano, ao se localizar justamente no afunilamento do continente americano – entre América do Norte e América do Sul – este país precisa lidar com as discrepantes realidades a norte e a sul. Não muito diferente, o território turco encontra-se entre o mar Mediterrâneo e Negro, conectando também duas regiões contrastantes: Oriente Médio e Europa.
A partir disso, México e Turquia constroem suas estratégias de inserção regional considerando suas oportunidades e seus riscos. Dentre as oportunidades destaca-se a facilidade em se desenvolver um papel de interlocutor e mediador entre duas regiões. A existência de um país que se defina como parte de ambas as regiões pode estimular um diálogo inter-regional mais efetivo. Já no que diz respeito aos riscos, os países birregionais, em função de sua própria dualidade, podem não garantir a confiança de uma ou de ambas as partes como um mediador regional no caso de tal relação birregional não estar balanceada. Frente a isso, o regionalismo se torna um elemento chave para entender até que ponto sua estratégia bifronte encontra-se harmoniosa ou não.
No caso mexicano, a balança de sua relação com a América do Norte e a América Latina sofreu um agudo golpe quando em 1993 assinou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), o qual institucionalizou sua relação e dependência político-econômica aos vizinhos do norte. A partir de então, o México passou a fazer parte da cadeia industrial e comercial dos Estados Unidos, chegando a uma dependência de 91% das exportações e 75% das importações no ano de 20002.
Frente a isso, sua relação com a América Latina se deteriorou, principalmente, no campo político-diplomático, o qual historicamente havia sido ativo nas décadas de 1960, 1970 e 1980, por seu papel na mediação de conflitos (como durante sangrentas guerras civis na América Central) e na defesa da não intervenção estrangeira (como em sua relação com a Cuba revolucionária). Destaca-se nesse processo de deterioração da relação México-América Latina o governo de Vicente Fox (2000-2006), o qual enveredou profundos debates com os líderes latino-americanos da época – com destaque ao venezuelano Hugo Chávez e ao argentino Néstor Kirchner – dado seu apoio à iniciativa americana da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Paralelamente, na medida em que o México promovia o regionalismo de seu fronte norte, na América do Sul desenvolveu-se um regionalismo pós-neoliberal, com a criação, por exemplo, da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) e da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL).
No entanto, percebendo sua perda de espaço na região, o México, a partir de 2010, passou a promover novamente a ideia de regionalismo latino-americano em contraponto ao regionalismo sul-americano, lançando a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), a qual seguia na linha política e social das iniciativas geradas no período. Além disso, a partir de 2011, juntou-se a Colômbia, Chile e Peru (com governos ideologicamente afins) na criação de um novo bloco regional, a Aliança do Pacífico, o qual retomou os parâmetros do regionalismo aberto. No caso mexicano fica evidente, portanto, como a falta de balanceamento no relacionamento de um Estado bifronte fragiliza sua inserção regional, tendo sido o regionalismo a estratégia central nesse processo, tanto ao desequilibrar (por sua adesão ao NAFTA) quanto ao reequilibrar (com sua retomada regional com a CELAC e a Aliança do Pacífico) esta relação dual.
Similar ao caso mexicano, a Turquia na década de 1990 apostou em sua inserção comercial à União Europeia ao firmar em 1995 um acordo de união aduaneira com Bruxelas. Além disso, o Estado turco teve sua candidatura ao bloco europeu reconhecida em 1997, apontando um interesse para além do comercial: uma pretensão política. No entanto, diferentemente do México, a Turquia interpretou que sua aproximação política e comercial à União Europeia não deveria refletir no deterioramento de sua relação com o Oriente Médio. Para a Turquia, seu poder político, econômico e cultural no Oriente Médio era a base de sua própria relevância frente ao fronte ocidental, garantindo-lhe maior poder de barganha nas negociações com o bloco europeu 3.
Nesse sentido, investiu na promoção de diversos acordos de livre comércio, os quais resultaram em um aumento das exportações turcas a países da Ásia e África (em especial, aos países árabes e islâmicos) de 19,5% em 2002 para 37,9% em 2016 4. Além disso, no âmbito político impulsionou a política diplomática nomeada de “zero problemas com vizinhos”. Inclusive, desenvolveu um importante papel de mediador de conflitos, como entre Israel e Síria, Armênia e Azerbaijão e o episódio mais proeminente da parceria com o Brasil em uma negociação com o Irã durante a crise nuclear deste último (2010). Nesse sentido, o governo turco passou a promover o país como o centro das duas regiões (Europa e Oriente Médio) e não como periferia delas, rejeitando a ideia de ponte, que simplesmente conecta para uma concepção mais ativa.
No entanto, as crises experienciadas em ambos seus frontes tornaram a balança bifronte turca cada vez mais instável. Primeiro, a crise econômica na União Europeia a partir de 2008 elevou discursos xenófobos, dificultando as negociações para a adesão plena da Turquia ao bloco. Já no outro fronte, a militarização do Oriente Médio a partir da Primavera Árabe, desestabilizou a região, com destaque ao conflito na Síria e a emergência do Estado Islâmico. Frente a este cenário, a balança regional turca começou a pender às suas alianças ocidentais. Como afirma Lesser (2011), seu avanço na região por meio de uma estratégia de soft power foi abalada com a ascensão do aspecto hard no Oriente Médio. Exemplo disso, foi a reaproximação turca a seus parceiros securitários tradicionais, vide a instalação de radares e mísseis da OTAN na Turquia a partir de 2011 3.
Vista a experiência bifronte de México e Turquia da década de 1990 à atualidade, observa-se como o regionalismo foi central, tanto para impulsionar quanto para abalar o equilíbrio de seu bifrontismo. O regionalismo, portanto, deve ser entendido como peça fundamental dentro da estratégia geral dos Estados bifrontes, na medida em que as iniciativas regionais devem primar pelo equilíbrio e harmonia de seus frontes.
Além disso, verifica-se a fragilidade desses Estados bifrontes em manter a médio prazo o equilíbrio de seus frontes frente aos diferentes contextos regionais e mundiais. Assim, Estados bifrontes são como malabaristas que buscam manter dois pinos rodando no ar em meio a um campo aberto, onde brisas ou fortes ventos podem direcionar os pinos mais para um lado que para outro. Nesse caso, destaca-se novamente a importância do regionalismo, na medida em que as iniciativas regionais institucionalmente consistentes podem garantir maior estabilidade à sua estratégia bifronte frente a mudanças conjunturais.
Enfim, o sucesso dos Estados bifrontes está intimamente ligado à margem de manobra regional e internacional existente, assim como a sua habilidade em fomentar um regionalismo equilibrado, harmonioso e consistente.
1 HERZOG, Mark; ROBINS, Philip (ed.). The Role, Position and Agency of Cusp States in International Relations. Nova Iorque: Routeledge, 2014. Não paginada.
2 INEGI. Banco de información Económica. 2019. Disponível em: <https://www.inegi.org.mx/sistemas/bie/>. Acesso em: 27 fev. 2019.
3 HERZOG, Mark. From cusp to hub? How Turkey tried to instrumentalize its cuspness as an aspiring multi-regional middle power. HERZOG, Mark; ROBINS, Philip (ed.). The Role, Position and Agency of Cusp States in International Relations. Nova Iorque: Routeledge, 2014.
4 OEC. Turkey – Tree Map: Export Destinations. 2018. Disponível em: <https://atlas.media.mit.edu/pt/>;. Acesso em: 22 mai. 2018.