Foto de Isabella Lacerda, 2017, Jornal da PUC-RIO

 

Nesta semana o Observatório de Regionalismo traz uma entrevista transcrita com a Profa. Miriam Gomes Saraiva (URJ), realizada durante o Simpósio de Relações Internacionais do Programa de Pós-graduação San Tiago Dantas (SimpoRI) de 2017. Nessa entrevista a professora Miriam nos fala um pouco sobre a política externa brasileira dos períodos de Dilma Rousseff e de Michel Temer para a América do Sul, e sua percepção sobre o cenário atual do regionalismo sul-americano e seus mecanismos de integração. Não deixem de conferir!

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E: Entrevistadoras – Bárbara Carvalho Neves e Maria Luisa Telarolli
M. G. S.: Professora Miriam Gomes Saraiva
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E. Bom dia Professora, farei duas perguntas relacionadas a sua apresentação no Simpósio de Relações Internacionais (2017), representando também o grupo de pesquisa Observatório de Regionalismo. Você disse que o contexto internacional e o contexto interno brasileiro foram fundamentais para a aplicação do projeto de Política Externa (PE) do período. O período Dilma, que manteve o discurso de PE sem ter as condições que foram necessárias no período anterior, resultou em um baixo ativismo brasileiro. Atualmente, com o baixíssimo apoio popular que o presidente Michel Temer tem em seu governo, como é possível pensar ou traduzir as ações de política externa brasileira para a América do Sul?

M. G. S. Eu acho que mudou muito, porque a política externa brasileira do governo Lula era uma política externa que colocou o Brasil em um papel de liderança solitária, sem partilhar com a Argentina ou outro parceiro. O Lula subiu no governo depois da crise de 2001 da Argentina, e a Argentina como ator, eventual competidor por uma liderança, ou mesmo parceiro, estava deslocada, e os Estados Unidos também tinham muito pouco interesse, sendo que os governos Bush, Obama e atualmente Trump, não tinham e não tem uma política direcionada para a região. Então, o governo Lula de fato ocupou esse espaço, e isso valeu, assim como foi mencionado no final da mesa de discussão com o Clodoaldo Bueno, que o governo brasileiro para assumir o papel de liderança, tenha minimamente adotado o papel de paymaster na região. Eu entendo que tenha sido muito criticado como insuficiente pelos vizinhos, mas, o Brasil de certa forma pagou os custos da integração regional, sobretudo através de cooperação e alguns investimentos, e foi uma coisa que o governo Lula teve que conseguir vender, com dificuldade, para dentro da política brasileira, e conseguiu! No governo da Dilma, o cenário não só não estava mais posto, nem interno nem externo, como a própria Dilma como presidente, não mostrou um interesse maior por esse assunto. No meu entender, a origem mais forte dessa posição brasileira de liderança regional não é do Itamaraty, a região pode servir como bloco de poder ou projeção internacional, mas não tem uma identidade específica ou particular com os países vizinhos. E isso veio muito do PT, e eu acho que em toda a trajetória do partido, nos Fóruns de São Paulo ou nas reuniões que tinham sistematicamente com partidos de esquerda, que coincidentemente foram ganhando presidências, resultando em um discurso mais fluido. No caso da ex-presidente, a Dilma não é originária do PT, ela é do PDT, portanto não teve essa participação histórica no Fórum de São Paulo, essa interação com os outros atores. Dessa maneira, ela enfraqueceu muito o PT dentro do processo de formulação de política externa, embora o Marco Aurélio Garcia seguisse como assessor, ele apenas era um apagador de incêndios de crises políticas na América do Sul, não tendo outro papel no que diz respeito a alguma estratégia de política externa. Então, com a Dilma o Brasil foi dando marcha ré nesse papel, se mantendo como líder porque os outros assim diziam, mas não tem mais essa perspectiva, já não havia mais uma disposição política para isso. No caso brasileiro, durante o governo Lula se juntaram interesses diferentes: se juntaram desenvolvimentistas para exportar coisas para a América Latina/América do Sul; se juntaram os geopolíticos, de caráter nacionalista, colocados na direção do BNDES (que tinham uma ideia de América do Sul como Mega-Estado, com o Brasil sendo o polo de poder; se juntou também a vontade do presidente Lula de equilibrar essas diferentes visões; e o Itamaraty com essa perspectiva de projeção internacional, no qual a América do Sul poderia ser um background interessante. Com a Dilma tudo isso se rompeu, os desenvolvimentistas começaram a se preocupar, sobretudo, com o próprio Brasil, buscando se salvar como podiam dentro do país. O PT, conforme digo, perdeu a posição, já os geopolíticos foram postos para fora do BNDES e o Itamaraty perdeu força no governo, sendo que a Dilma não tinha vontade política, nem disposição, não articulando essas posições. Então, aquilo que deu a base para o governo do Lula na região, no governo Dilma não existia mais, por dentro principalmente. Ademais, no decorrer do governo dela foram mudando as presidências, entrando governos mais liberais, diferentes, e as perspectivas de integração foram postas em debate. Da parte dela, na UNASUL, por exemplo, ela ia com má vontade. Na criação da CELAC, eu me lembro, o objetivo da reunião teria sido criar uma comunidade de Estados Latino Americanos, no entanto, voltou-se falando do petróleo da Venezuela. Ou seja, tais condições foram se desconstruindo desde dentro, e claramente foi se desmontando, o ativismo foi diminuindo. O que o governo Temer fez quando entrou foi jogar a “pá de cal” do governo Lula, ou seja, mudou o discurso, porque a Dilma não mudava o discurso e o PT ainda guardava esse pequeno nicho da política externa que administrava as questões políticas da região, que se perdeu. E o que o governo brasileiro começou a fazer, em termos discursivos foi muito barulhento, houve muitas críticas à América do Sul, à UNASUL, ao secretário geral da União, críticas aos governos da vizinhança, críticas às políticas que o PT havia aplicado, que na realidade eram políticas do Lula, não da Dilma, uma vez que Michel Temer era vice dela e se houvesse algum problema em sua política, ele era parcialmente responsável. Então, o que o Temer fez foi jogar essa “pá de cal” e mudar o discurso, mas, na prática, a política externa do Lula para a região já não existia há mais tempo.

E. Diferentes mecanismos e instituições regionais foram criados no período do regionalismo conhecido como pós-liberal, como a UNASUL. Com o período atual, onde se discute a existência de um “standby” dos países frente às ações regionais, como estas instituições são vistas? Elas mantêm alguma validade na região, ou elas perdem a sua força? Aquilo que já foi consolidado, tem-se andamento, você vê alguma movimentação?

M.G.S. Olha, eu acho que elas perdem força. Algumas instituições, como foi o caso do MERCOSUL, que se construiu como instituição do regionalismo aberto, mais comercial, foi mudando durante o período do Lula, adquirindo uma dimensão mais política e social, e agora retorna mais para seu perfil comercial. Nesse caso há uma mudança na própria organização, onde ela se adapta ao novo formato do regionalismo, ou à ausência atual de formato do regionalismo latino-americano. A UNASUL, a CELAC e a ALBA, que foram criadas já no marco do regionalismo pós-liberal, tem outras questões a serem consideradas no contexto atual. A UNASUL tem uma sede, uma estrutura, então não se pode desfazer dela tão rapidamente, o que pode acontecer é: em primeiro lugar, o Equador está pagando sozinho, porque a sede é lá, sendo assim, seus funcionários, sua conta de luz e tudo mais é o governo equatoriano que está bancando; em segundo, o governo Dilma, deu um calote e não pagou a UNASUL, a qual foi paga pelo governo Temer quando entrou, assim como pagou praticamente todas as outras organizações. Mesmo assim, acredito que a UNASUL vai ficar meio em “fogo brando”, ela não tem como ser desestruturada, ela não vai sumir, mas o seu ativismo já diminuiu, e aos poucos vai se adaptando ao perfil do regionalismo, atuando em áreas como a da saúde que tem espaço para sua atuação, buscando áreas pontuais onde ela possa ser útil e onde exista algum tipo de consenso entre os seus atores. No geral, a UNASUL, embora ela tenha esse perfil pós-liberal, desenvolve uma relação de cooperação, não de integração propriamente. Então, não existem compromissos fortes por parte dos Estados, o que dá ao organismo certa maleabilidade para se adaptar ou priorizar determinada área que tenha mais importância, esquecendo outra que por hora não esteja no foco, e eu acho que vai acontecer isso. Já a CELAC, ela fica numa situação “piorzinha”, porque a CELAC é a continuação do Grupo do Rio, na tentativa de trazer o grupo a uma forma mais institucional e o que eu vejo que enfraquece a CELAC não são as diferenças, porque o Grupo do Rio foi criado nos anos 1980 e conviveu com muitas diferenças, passando pela dimensão mais neoliberal, e sobreviveu bem. O Grupo resistiu a diferenças internas muito graves, sobretudo entre Argentina e Brasil que se polarizavam em uma posição dentro do grupo. Então, a variedade de regionalismos não seria suficiente para a CELAC terminar, mas, confesso que o que me amedronta um pouco mais é a reincorporação de Cuba na OEA, pois o Grupo do Rio, assim como a CELAC, tem como grande referência a exclusão de Cuba. Sendo assim, na medida em que o país é reincorporado na OEA, a minha pergunta é: esses debates não podem se dar dentro da OEA? Por que a CELAC? Para que gastar se você pode fazer negociações? Os embaixadores já estão lá na OEA e os de Cuba também. Então, terminou-se com a alteridade, a não ser que o Trump comece a distanciar da América do Sul, xingar a América Latina, e os outros mecanismos se recuperem. Mas, no geral, se perdeu essa ideia de América Latina em oposição a algo, que era o que justificava a existência da CELAC, então com ela eu tenho medo que se descomponha, que caia no esquecimento. Rigorosamente a CELAC tem a presidência rotativa e daqui a pouco eu já não sei mais quem é a presidência de turno; que fique estagnada e não tenha uma agenda, pois como ela também não tem sede, ela é mais fácil de ficar no esquecimento. Acredito até que o Grupo do Rio teve épocas em que ele foi mais ativo e outras, menos ativo, talvez a CELAC possa ficar nesse morto por um tempo, mas como eu disse, não tendo uma sede e não tendo os conselhos como a UNASUL tem, de temas que passam fora da política, como saúde, educação, infraestrutura, defesa, onde possa aparecer situações de oportunidade que se apresentem como um benefício atuar conjuntamente, tendo a UNASUL como marco para isso, a CELAC perde essa função, pode inclusive terminar, onde pode passar seis meses e ninguém se reúne e assim consecutivamente, sem ninguém dizer que terminou.

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Foto disponível em: <http://jornaldapuc.vrc.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=5246&sid=49>

Escrito por

Bárbara Carvalho Neves

Doutora e Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais - San Tiago Dantas. Bolsista FAPESP (20/04348-5).
Colaboradora do Laboratório de Novas Tecnologias de Pesquisa em Relações Internacionais (LANTRI), do Grupo Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Grupo de Reflexión sobre Desarrollo y Integración en América Latina y Europa (GRIDALE).
Áreas de Interesse: Política Externa Brasileira, Regionalismo Sul-Americano, Instituições Regionais, Integração em Infraestrutura, IIRSA e COSIPLAN.
Linkedin (https://www.linkedin.com/in/b%C3%A1rbara-neves-765055128/)
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