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Nos dias de 18 e 19 de Dezembro de 2020, na sede da esvaziada União de Nações Sul-Americanas (UNASUR, em português UNASUL), acontecia o “Encuentro de los Pueblos y Organizaciones de Abya Yala hacia la construcción de una América Plurinacional”. Esse era o início da RUNASUR, sigla que combina a palavra em quechua RUNA – ser humano, povo – com UNASUR. Lançada por Evo Morales, a RUNASUR é uma organização de integração da qual participam não os Estados Nação, mas sim povos e organizações, sejam elas sindicatos, Organizações Não Governamentais, sociedade civil organizada, povos indígenas, quilombos, etc. O único critério é que o participante esteja geograficamente localizado em um dos países membros da UNASUL.
Principal símbolo do regionalismo pós-hegemônico1)O Regionalismo Pós-Hegemônico “é tanto um conceito baseado em teoria, contribuindo para um debate e uma agenda de pesquisa que se ramificou no estudo do regionalismo do sul, quanto uma manifestação de governança que ressignificou e valorizou o espaço regional como um espaço de ação e contestação”, segundo definição de suas idealizadoras, Diana Tussie e Pia Riggirozzi., a UNASUL estava esvaziada. A situação política venezuelana inaugurou uma crise na coordenação da região, logo liderada pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016, deixando a organização sem liderança regional. Sua sede, localizada no Equador, está atualmente abandonada e os países tinham suspendido sua participação na organização regional.
Frequentemente correlacionado com a maré rosa, há espaço para argumentar que o regionalismo pós-hegemônico, bem como a UNASUL, fazem parte de um projeto abandonado, um exemplo importante de desintegração e um símbolo de como as organizações regionais são vulneráveis a mudanças políticas na América Latina. A criação da RUNASUR busca em certa medida remediar esse ponto fraco, já que diferentemente das mudanças políticas das lideranças presidenciais, os povos tradicionais estabeleceriam uma constante na região.
Entretanto, algumas dessas características (da maré rosa e do regionalismo pós-hegemônico) permanecem na região: a Bolívia e o Equador foram caracterizados como Estados Plurinacionais. Ao aprovar uma Constituição Plurinacional, o reconhecimento à existência de diversos povos originários é colocado no cerne da formação e caracterização desses Estados. Além disso, o caráter pós-hegemônico pode ser associado aos Estados Plurinacionais ao estabelecer uma alternativa à formação tradicional do Estado europeu. O Chile, após passar por uma fase liberal e manifestações populares, também teve a proposta de uma constituição plurinacional, que foi rejeitada.
De certa forma, a RUNASUR pode ser considerada a principal estratégia do regionalismo pós-hegemônico: se antes as organizações de integração regional eram criticadas por não serem bem-sucedidas nos modelos europeus de integração, a RUNASUR quebra essa afirmação em sua raiz, por ser um produto de construções locais a partir de valores locais. Seus membros, no momento, são atores não estatais, e suas regras e funcionamento estão altamente comprometidas com o Estado Plurinacional em vez de atores estatais.
Esse foco em Estados Plurinacionais pode até mesmo definir outro indicador para a pós-hegemonia, porque não está direcionado ao mundo atlântico. Bolívia, Equador e Chile são os principais países dos Andes, o que pode significar um foco nos laços do Pacífico em vez do Atlântico. A “mudança para o Pacífico” tem sido considerada uma tendência para a redução da influência dos Estados e valores ocidentais no contexto internacional, marcada pela ascensão da China e pelo aumento do desempenho econômico da Ásia. É também um giro para o pacífico, já que ao invés de ter seus principais estados pertencentes ao atlântico, a RUNASUR segue a geopolítica orientada pelos Andes. Essa tendência se torna mais relevante com o slogan adotado “Construa nosso caminho, nosso Qhapaq Ñan”. Qhapaq Ñan foi uma estrada de 40.000 km de extensão criada pelo Império Inca nos Andes, de Santiago (Chile) a Tumbes (Equador) pela costa, e de Mendoza (Argentina) até Cali (Colômbia) por sua estrada terrestre.
Essa adoção não significa que relações plurinacionais estejam livres de conflitos ou percalços. Uma delas já foi gerada pela criação da própria RUNASUR, na qual Evo Morales se pronunciou a favor da saída da Bolívia para o mar (sendo esse um objetivo na Constituição vigente). A declaração gerou repercussão principalmente em Cusco (Peru), levando a manifestações contra a 2ª Cúpula da RUNASUR, que deveria ter acontecido em 2019 na cidade e foi suspensa, segundo Evo Morales, pela pandemia do COVID-19. Isso porque, entre 1879-1883, houve uma guerra na qual participaram Bolívia (com apoio do Peru) e Chile quanto à demarcação de território e saída para o mar. É argumentado que as duas questões se relacionam porque a adoção de uma constituição plurinacional no Chile daria o controle ao povo Aymara sob o território em disputa, integrando o acesso da Bolívia ao mar, especialmente sob a existência de um acordo de integração plurinacional envolvendo todos os países. Cabe ressaltar, no entanto, que a demarcação e os direitos dos povos sob a constituição plurinacional no Chile ainda não está delimitada já que a proposta de Constituição chilena não foi aprovada.
O principal documento da RUNASUR é seu Decálogo, que estabelece os principais objetivos da organização: 1- autodeterminação dos povos; 2- fortalecimento da democracia, dos direitos humanos e dos direitos coletivos; 3- força a integração dos povos; 4- afirmação da plurinacionalidade, pluriculturalidade e plurilinguagem; 5- consolidação do anti-imperialismo; 6- construção da paz com justiça social; 7- promoção do buen vivir 2)Buen Vivir é um modelo de desenvolvimento dos povos indígenas dos Andes, que implica um conjunto organizado, sustentável e dinâmico dos sistemas económicos, políticos, socioculturais e ambientais, baseado nos princípios de relacionalidade, reciprocidade, correspondência e complementaridade.; 8- fortalecer a defesa da Mãe Terra e seus direitos 3)Nas constituições plurinacionais, os elementos da natureza são considerados seres vivos e, por isso, têm direitos garantidos. Os rios e as montanhas, por exemplo, podem ser registrados como pessoas jurídicas. A Nova Zelândia e a Índia adotaram cláusulas semelhantes.; 9- recuperar nossos princípios milenares de vida, promovendo a descolonização e a despatriarcalização 4)O Objetivo número 9 faz referência ao Ministério das Culturas, Descolonização e Despatriarcalização da Bolívia, que trata o patriarcado como uma herança da colonização. O Ministério é responsável pela implementação e supervisão de políticas públicas para a recuperação, proteção, preservação, restauração, promoção, socialização e valorização das culturas e expressões artísticas dos povos locais..
Não se encaixando na conceituação regular de integração, a RUNASUR parece ser um esforço para criar um ator coletivo com poderes para impulsionar uma agenda com a intenção de afetar toda a região. Após ter suas atividades prejudicadas pela pandemia do Covid-19, a relevância da RUNASUR será posta em cheque por duas novas variáveis na região: a eleição do presidente Luis Inácio “Lula” da Silva e o ressurgimento da UNASUL.
O ano de 2023 começou com a posse do presidente Lula no Brasil, ocasião para a qual o ex-presidente Evo Morales veio ao Brasil. Juntamente com o evento de posse, ele também participou de reuniões com organizações sociais e sindicatos brasileiros com o intuito de promover a RUNASUR no Brasil. Segundo ele, a RUNASUR não competiria com os arranjos de integração regional, mas seria, sim, complementar a eles, estabelecendo um “corpo político” dessas iniciativas, tendo declarado que “O Mercosul é nossa resposta econômica, e a Runasur é nossa resposta política”. Além disso, Evo também declarou que Lula não é só um símbolo, é uma garantia de integração de toda América Latina o que pode ser lido como uma declaração que coloca o apoio do presidente Lula como crucial para a consolidação da RUNASUR. No entanto, ainda não sabemos como ou até que ponto Lula apoia ou promove a iniciativa, não tendo sido encontradas declarações dele sobre a organização.
Alguns meses depois, o Brasil anunciou seu retorno à UNASUL. Enquanto a RUNASUR é apontada como projeto pessoal do Evo Morales, o mesmo pode ser dito quanto à UNASUL e Lula. Com as atividades ainda a serem retomadas, pode ser feito o questionamento de qual será a relação entre as duas instituições. Elas poderiam ser vistas como complementares, por terem objetivos pós-hegemônicos, mas trabalharem em níveis diferentes, no entanto a ausência de menções à RUNASUR no renascimento da UNASUL, até então, não tem apontado nesta direção.
Existem outros motivos pelos quais essa conexão pode não ter sido feita. Um deles é o interesse em trazer outros países da região de volta à organização, como é o caso do Peru, que ainda não retornou. O Peru proibiu a entrada de Evo Morales no país a partir de janeiro desse ano, por tempo indeterminado, por supostamente atentar contra a segurança nacional ao articular com aymaras sobre a questão da saída boliviana para o mar. Ele é considerado persona non grata no país desde o ano de 2021. Dessa forma, associar a RUNASUR com a UNASUL antagonizaria com o objetivo de voltar a ter como países membros seus 12 Estados originais.
Por outro lado, a RUNASUR perder relevância (ou não ter o destaque esperado) no renascimento da UNASUL não significa fracasso da iniciativa. É relevante que a RUNASUR tenha sido criada exatamente em um momento marcado pela desintegração, ou pelo crescimento de iniciativas de governos de direita, como o desmantelamento da própria UNASUL, criação do Grupo de Lima e PROSUL. Pode-se então teorizar que suas atividades e sua existência se tornem mais relevantes em momentos de crise para a integração latino-americana, fazendo com que ela se transforme em uma organização de resistência e relevância para a manutenção das políticas de integração latino-americanas e as demandas que advém de seus atores não-tradicionais. conforme ressaltou o própio Evo Morales: “A Unasul é dos Estados. O Runasur é dos povos. […] como perdemos vários presidentes de esquerda na América do Sul, a Unasul ficou paralisada e surge esse profundo sentimento dos povos, das forças sociais, de continuar com as políticas da Unasul.” Nesse caso, a ofuscação da RUNASUR durante os momentos em que a integração progride, e sua maior relevância em momentos de estagnação não seria então uma fraqueza da iniciativa, mas sim sua principal estratégia e razão de existência.
Notas
1. | ↑ | O Regionalismo Pós-Hegemônico “é tanto um conceito baseado em teoria, contribuindo para um debate e uma agenda de pesquisa que se ramificou no estudo do regionalismo do sul, quanto uma manifestação de governança que ressignificou e valorizou o espaço regional como um espaço de ação e contestação”, segundo definição de suas idealizadoras, Diana Tussie e Pia Riggirozzi. |
2. | ↑ | Buen Vivir é um modelo de desenvolvimento dos povos indígenas dos Andes, que implica um conjunto organizado, sustentável e dinâmico dos sistemas económicos, políticos, socioculturais e ambientais, baseado nos princípios de relacionalidade, reciprocidade, correspondência e complementaridade. |
3. | ↑ | Nas constituições plurinacionais, os elementos da natureza são considerados seres vivos e, por isso, têm direitos garantidos. Os rios e as montanhas, por exemplo, podem ser registrados como pessoas jurídicas. A Nova Zelândia e a Índia adotaram cláusulas semelhantes. |
4. | ↑ | O Objetivo número 9 faz referência ao Ministério das Culturas, Descolonização e Despatriarcalização da Bolívia, que trata o patriarcado como uma herança da colonização. O Ministério é responsável pela implementação e supervisão de políticas públicas para a recuperação, proteção, preservação, restauração, promoção, socialização e valorização das culturas e expressões artísticas dos povos locais. |