Por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama[i]

I’m on your side, oh, when times get rough
And friends just can’t be found
Like a bridge over troubled water

(Simon and Garfunkel, ‘Bridge Over Troubled Water’, 1969)

 

A disputa política na Venezuela galgou os mais altos degraus das instituições internacionais. No Conselho de Segurança da ONU, a situação é considerada quase unanimemente como uma “ameaça à paz e segurança internacionais” e motiva disputas acirradas entre os seus membros permanentes[i]. O impasse entre o governo de Nicolás Maduro e a Assembleia Nacional liderada por Juan Guaidó produziu agregação de esforços na Organização dos Estados Americanos[ii] comparável ao rechaço à Revolução Cubana ocorrida há 60 anos. No MERCOSUL, a Venezuela teve seus direitos suspensos[iii].

O agravamento da situação político-econômica na Venezuela ocorreu, paulatinamente, à vista dos estados vizinhos, na última década.  As receitas do petróleo – combustível da vigorosa redistribuição de renda efetuada durante os anos de Hugo Chávez – caíram vertiginosamente após a crise de 2008.

Após a morte de Chávez e diante da reiterada hostilidade dos vizinhos (que se seguiu às tentativas de aproximação durante o boom petrolífero), Nicolás Maduro optou pelo enclausuramento.

À medida que os índices econômicos definhavam e a migração alcançava a casa dos milhões de pessoas, a América do Sul diminuía seu capital negocial com Caracas – às voltas com cooperação militar com a Rússia de Vladimir Putin e crescente dependência diante dos investimentos chineses[iv].

Instabilidades combinadas com recessão no Brasil e Argentina contribuíram para a perda de influência[v]. O quadro da tragédia venezuelana adquire traço dramáticos contra o pano de fundo da retração dos dois motores do MERCOSUL. Entretanto, no mesmo período, as economias do Pacífico deram um salto de eficiência e sincronização. Dentre elas, duas das mais prósperas economias emergentes se colocaram em rota de colisão com a Venezuela de Maduro: a Colômbia e o Peru.

Uma das imagens mais eloquentes da encruzilhada em que a Venezuela se encontra é a Ponte Internacional de Tienditas, na fronteira com a Colômbia. A moderna construção foi concluída em 2016 para substituir a sobrecarregada Ponte Simón Bolívar, datada de meados do século XX.

O que poderia ser um bom exemplo de integração logística (um dos mais urgentes nós da integração regional) se tornou um paroxismo em disputa. A ponte permanece fechada desde sua conclusão, no auge do agravamento das tensões fronteiriças. Em 2019, à medida em que os governos vizinhos, capineados pelos Estados Unidos de Donald Trump, acumulam provisões para auxílio humanitário ao longo do trecho colombiano, Maduro mantém o lado venezuelano hermeticamente fechado.

A mobilização da ponte pelas partes em disputa, por um lado, escancara o fracasso de seus intentos.

Ao escolher uma ponte fechada para concentrar e distribuir auxílio humanitário, os estados integrantes do grupo de Lima[vi] dizem à comunidade internacional que a chegada dos suprimentos é algo de importância secundária diante do agitprop em favor de um outrora desconhecido Guaidó. Já Maduro se fecha em copas diante do fracasso da gestão em um país faminto e com milhões de pessoas em fuga, cenário comparado pela ONU aos efeitos da guerra civil internacionalizada na Síria[vii].

Diante desse cenário, a ponte acena com o vazio de propostas que tragam ânimo para a democracia.

Por outro lado, a Ponte Internacional de Tienditas simboliza com vigor a desintegração continental. Em pouco menos de três décadas após a assinatura do Tratado de Assunção, o aprofundamento da integração pela via das instituições internacionais[viii] arrefeceu no continente após a crise de 2008. Nos últimos anos do século 20 e nos primeiros do século atual, crises políticas na América do Sul foram geridas eficazmente. A guerra fronteiriça entre Equador e Peru (1995), tentativas de golpe de estado no Paraguai (1996) e Venezuela (2002) foram rechaçadas com veemência pelos estados da região, com o uso intensivo das instituições regionais e o surgimento de novas instituições nesse processo.

O mesmo não ocorreu, porém, na destituição de Manuel Zelaya em Honduras (2009) e no rescaldo do impeachment presidencial de Fernando Lugo no Paraguai (2012). A articulação regional perdeu capacidade de prover mediação acreditada em disputas do continente, ao tomar abertamente partido de uma das forças em disputa. O caso paraguaio é paradigmático: a suspensão do status do país no MERCOSUL foi usada como janela de oportunidade para guindar a Venezuela de Chávez à membrezia do órgão[ix], manobra que se revelaria ironicamente contraproducente a partir de 2016.

Doravante, as crises continentais veriam uma prolongada perda de fôlego de importantes agentes da região, em contraste com um renovado protagonismo de forças externas[x]. A esse quadro veio se somar uma abrupta mudança de rota da política norte-americana para a região. Ao passo que Barack Obama buscou aproximação fundada em investimentos e respeito às instituições sul-americanas, Trump acena com um bilateralismo punitivo no âmbito comercial e com coalisões seletivas para a gestão de crises[xi]. Fustigado pela ascensão chinesa, o controverso presidente dos Estados Unidos busca retomar alianças tradicionais. A normalização das relações com Cuba foi bruscamente revertida e a ameaça de uma ação militar abaixo do Equador volta a ser audível em Washington.

À medida que os agentes regionais são colocados em segundo plano, o grupo de contato criado para tentar mediar a crise venezuelana[xii] inclui o reticente Uruguai, o México de López Obrador e membros da União Europeia, que reconheceu a legitimidade das pretensões de Guaidó após Maduro ter rechaçado demandas por novas eleições (o pleito de 2018 não foi reconhecido internacionalmente).

Nesse sentido, os caminhos da Venezuela de 2019 seguem, ironicamente, na direção contrária das ações de Simón Bolívar em busca de autarquia e autonomia no século 19. A ponte que deveria aproximar dois povos se tornou um novo tipo de fronteira, nesse mundo em que estão a proliferar.

[i] Professor Visitante – Al Akhawayn University in Ifrane (Marrocos). Professor de Relações Internacionais – Universidade Federal do Tocantins (Brasil).

Referências Bibliográficas
[i] United Nations (2019). “With Venezuela Buckling under Severe Shortages, Security Council Emergency Session Calls for Political Solution to End Crisis, as Divisions Emerge over Path Forward”. Disponível em: https://www.un.org/press/en/2019/sc13680.doc.htm . Acesso em: 26 de Janeiro de 2019.
[ii] Organización de los Estados Americanos (2019). “Resolución Sobre la Situacion en Venezuela (aprobada por el Consejo Permanente en la Sesión Extraordinaria Celebrada el 10 de Enero de 2019)”. Disponível em: http://scm.oas.org/doc_public/spanish/hist_19/cp40193s05.doc . Acesso em: 10 de Janeiro de 2019.
[iii] MERCOSUR (2017). “Suspensión de Venezuela en el MERCOSUR”. Disponível em: https://www.mercosur.int/suspension-de-venezuela-en-el-mercosur/ . Acesso em: 5 de Agosto de 2017.
[iv] Gama, C.F.P.S. (2018). “As Reeleições de Vladimir Putin e Xi Jinping numa ordem internacional em transformação”. SRZD. Disponível em: http://www.srzd.com/geral/reeleicoes-vladimir-putin-xi-jinping-ordem-internacional-transformacao/. Acesso em: 22 de Março de 2018.
[v] Gama, C.F.P.S. (2016). “Diálogos Indiretos: Argentina e Brasil redefinem uma relação em crise”. MUNDORAMA. Disponível em: https://www.mundorama.net/?p=18403 . Acesso em: 26 de Fevereiro de 2016.
[vi] Ministério das Relações Exteriores (2019). “Declaração do Grupo de Lima”. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/19913-declaracao-do-grupo-de-lima-4 . Acesso em: 04 de Janeiro de 2019.
[vii] BBC (2018). “ONU diz que crise migratória na Venezuela já está quase no nível de fluxo de refugiados no Mediterrâneo”. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45307311 . Acesso em: 25 de Agosto de 2018.
[viii] Saraiva, M.G. (2011). “Integração regional na América do Sul: processos em aberto” in: 3° Encontro Nacional ABRI 2011, 3., 2011, São Paulo. Anais, ssociação Brasileira de Relações Internacionais. Disponível em:  http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000122011000300028&lng=en&nrm=abn . Acesso em: 12 Feb. 2019.
[ix] Gama, C.F.P.S. (2017). “Turbulências na Integração Regional: MERCOSUL à Deriva”. NEMRI. Disponível em: https://nemrisp.wordpress.com/2017/01/27/turbulencias-na-integracao-regional-mercosul-a-deriva/. Acesso em: 17 de Janeiro de 2017.
[x] Stuenkel, O. (2017). “Janela de Oportunidade se Fechou”. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/09/1921058-janela-de-oportunidade-se-fechou.shtml . Acesso em: 23 de Setembro de 2017.
[xi] Gama, C.F.P.S. (2017). “Economia Global e Integração Regional no mundo de Donald Trump”. SRZD. Disponível em: http://www.srzd.com/geral/economia-global-regional-donald-trump/ . Acesso em: 25 de Janeiro de 2017.
[xii] PÚBLICO (2019). “Grupo de contacto para a Venezuela reúne-se pela primeira vez em Montevideu”. Disponível em: https://www.publico.pt/2019/02/07/mundo/noticia/grupo-contacto-venezuela-reunese-primeira-montevideu-1861046#gs.wZTJfqbn . Acesso em: 7 de Fevereiro de 2019.

Escrito por

Observatório de Regionalismo

O ODR (Observatório de Regionalismo) realiza entrevistas com autoridades em suas áreas de conhecimento e/ou atuação, lançando mão de diversas mídias à divulgação do material elaborado.