Imagem: Prédio da Administração Nacional de Navegação e Portos (ANNP) do Paraguai, local que sediou os eventos do Mercosul de 2024. Fonte – Mercosul (2024).

 

Escrito por: José Paulo Silva Ferreira (UFG) e Thiago Moreira Gonçalves (PUC Minas)*.

 

Nos dias 7 e 8 de julho de 2024, ocorreram em Assunção – Paraguai – a Reunião Ordinária do Conselho do Mercado Comum (CMC), órgão decisório de nível ministerial, e a Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados. A Cúpula marcou o encerramento da presidência pro tempore do Paraguai e o início da presidência uruguaia (MRE, 2024), função exercida por seis meses, alternando entre os países-membros em ordem alfabética.

Durante o mandato paraguaio, realizaram-se diversas reuniões ministeriais e de altas autoridades sobre temas variados, incluindo: educação, justiça, trabalho, cultura, saúde, segurança, desenvolvimento social, direitos humanos, mulher, povos indígenas, afrodescendentes, meio ambiente, turismo e gestão de riscos de desastres. Além disso, foram realizadas as Cúpulas Social e Empresarial do bloco, ambas em 1º de julho de 2024, em formato virtual. A primeira, com a participação de setores da sociedade civil organizada, tratou de crescimento econômico inclusivo, redução da pobreza, povos indígenas e direitos humanos (GOMIDE JR., 2024). A segunda, abordou com o setor privado a integração comercial de bens e serviços, economia criativa, indústria leve e logística fluvial (MRE, 2024a).

Os encontros mercosulinos ocorreram em meio a tensões entre os principais sócios fundadores do bloco, Brasil e Argentina, por desentendimentos na relação presidencial Lula-Milei. Desde a campanha eleitoral presidencial na Argentina de 2023, o presidente argentino Javier Milei tem feito declarações polêmicas sobre o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, chamando-o de “corrupto” e “comunista” e acusando-o, sem apresentar provas, de financiar a campanha de seu adversário kirchnerista – também expressou apoio ao ex-presidente Bolsonaro. Dias antes do segundo turno, Lula aludiu crítica a Milei, afirmando que a Argentina precisava de um presidente que “goste de democracia” (UOL, 2024).

Em novembro de 2023, Diana Mondino, então indicada ao San Martín e atual chanceler, visitou o Brasil e encontrou o ministro Mauro Vieira, demonstrando uma busca por pragmatismo nas relações bilaterais. Como presidente eleito, o líder argentino convidou Lula para sua posse, mas este não compareceu, rompendo uma tradição diplomática de mais de 30 anos. Em abril de 2024, houve uma tentativa de reaproximação, sem sucesso, com o envio de uma carta ao Planalto (UOL, 2024).

Em junho, Lula afirmou que Milei deveria pedir desculpas pelo que disse, e obteve uma negativa como resposta. No mês seguinte, o argentino criticou fortemente Lula na rede social X (antigo Twitter), retomando a acusação de interferência nas eleições argentinas (UOL, 2024). Em 1º de julho de 2024, a Casa Rosada declarou que Milei viria ao Brasil para participar, entre os dias 6 e 7 de julho de 2024, da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) – versão brasileira de um evento conservador estadunidense, que contou com a presença de Bolsonaro.

O governo argentino negou que a ausência na Reunião do Mercosul tenha envolvimento com os atritos com Lula, e sim, que se deve a choques de agenda (MILEI … , 2024). Além disso, negaram apoio do Itamaraty com acomodações, alegando que se tratou de uma viagem privada e não uma visita oficial (JAVIER … , 2024). A gestão cuidadosa da relação bilateral e o avanço da integração no Mercosul são entendidos desde os anos 1990 como elementos permanentes das políticas externas do Brasil e da Argentina (CANDEAS, 2017); no entanto, o distanciamento entre Milei e Lula, devido a desentendimentos pessoais e divergências de governo, enfraquece essa base comum estabelecida.

Apesar da recusa de Milei em integrar a LXIV Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, Mondino esteve presente em ambos eventos. Alegou na Reunião Ordinária que “a Argentina está firmemente comprometida com os princípios de integração regional e cooperação mútua”, complementando que visualizam o Mercosul como “ferramenta vital para promover o desenvolvimento econômico, a estabilidade política e a segurança regional” (MRECIC, 2024, online). Na ocasião, declarou a necessidade de desenvolvimento de estratégia conjunta no combate ao crime organizado e tráfico de drogas na América do Sul. Além disso, firmou acordos, como: o Protocolo para Coordenação de Assistência Médica e Transferências Sanitárias Primárias Transfronteiriças, com o Uruguai, estabelecendo uma base jurídica para a cooperação em emergências médicas entre as cidades fronteiriças; Convênios de Complementação Financeira e Técnica entre o Mercosul e o Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA), para colaboração com o Fundo para a Promoção do Desenvolvimento nas áreas financeira e técnica, e o Acordo de Cooperação Cinematográfica. Por fim, defendeu uma reforma administrativa e financeira do bloco, propondo para as discussões do próximo ano (MRECIC, 2024).

Quanto a atos normativos ou declaratórios na Reunião, foram firmados acordos em diversas áreas, como coprodução cinematográfica; complementação financeira e técnica associada ao FONPLATA; e atualização junto ao Chile do regime de origem, conjunto de regras de desgravação tarifária para produtos, que atendam determinados critérios de origem, do Acordo de Complementação Econômica (firmado no âmbito da ALADI como ACE-35) (MRE, 2024a).

As discussões na Cúpula do Mercosul culminaram em uma declaração conjunta dos Estados Partes do Mercosul e Bolívia, aceita na ocasião como membro pleno (MRE, 2024c). Com a ausência de Milei, Mondino assinou a declaração, representando a Argentina (MRE, 2024b). O documento destacou 38 pontos, que perpassam assuntos de comércio e economia, como tarifa externa comum; coordenação macroeconômica, tarifa intrazona e o Fundo para a Convergência Estrutural (Focem); cooperação e desenvolvimento sustentável; infraestrutura e transporte; regulação, como defesa da concorrência e do consumidor; agenda externa do bloco (regional e extrarregional); e adesão da Bolívia (MRE, 2024b).

A declaração conjunta, concernente aos avanços e agenda futura do bloco, foi aprovada por unanimidade. Na introdução do documento, os Estados parte declararam o compromisso com o “fortalecimento, dinamização e atualização do Mercosul”, ou seja, uma busca por ajuste do bloco à atual dinâmica integracionista, mais flexível, adaptável e aberta a mudanças constantes (MARIANO; BRESSAN; LUCIANO, 2012). No contexto do Mercosul, por exemplo, esta dinâmica implicaria uma abordagem capaz de responder rapidamente às mudanças nas condições econômicas globais e regionais, às novas tecnologias e aos desafios sociais emergentes. Esta perspectiva é uma resposta às constantes críticas uruguaia e paraguaia sobre os desequilíbrios e assimetrias estruturais entre os Estados parte (MRE, 2024b).

Além dos impasses gerados previamente à Cúpula, com a ausência de Milei e sua atribulada relação com Lula, outro tema destacado no encontro foi a tentativa de golpe de Estado na Bolívia. Mauro Vieira declarou apoio do Brasil a Bolívia, afirmando que “a democracia venceu” (AGÊNCIA BRASIL, 2014). Lula também visitou a Bolívia no dia seguinte à conclusão das negociações do Mercosul no Paraguai (MRE, 2024d).

Em relação aos assuntos do Mercosul que devem se desenvolver nos próximos meses, e que já figuravam entre as expectativas para esta Reunião e Cúpula, estão incluídos: um acordo sobre gestão de risco de desastres (discussão impulsionada pelas inundações no Rio Grande do Sul e Uruguai, em 2024) e uma declaração presidencial sobre combate ao crime organizado transnacional (MRE, 2024a).

Além disso, busca-se o aprofundamento do diálogo com a Colômbia, o Equador e o Peru, e a ampliação da rede de parceiros na América Central e no Caribe, considerando as tratativas em curso com El Salvador e República Dominicana, e a possibilidade de aproximação com o Panamá. Por fim, nos assuntos extra-América Latina, destaca-se o avanço nas recentes negociações de um possível acordo de livre comércio entre o Mercosul e os Emirados Árabes Unidos, a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), constituída por Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça, bem como a retomada do diálogo com a União Europeia (MRE, 2024a), com o acordo que segue embargado, sobretudo, pelo protecionismo agrícola francês (MRE, 2024a; MONNERAT, 2023).

Por fim, uma preocupação latente em relação ao futuro do Mercosul é a situação do Uruguai, que vem negociando bilateralmente um tratado de livre comércio com a China e já ameaçou algumas vezes se retirar do bloco ou mudar seu status para Estado associado. Para tanto, destacou-se a busca por uma “ênfase na intensificação das negociações externas, que permitam uma maior inserção internacional do bloco, e na eliminação de restrições internas que limitam ou impossibilitam o livre intercâmbio de bens e serviços, estabelecido no Tratado de Assunção” (CNN BRASIL, 2023; MRE, 2024b).

O posicionamento demonstra avanços entre os países membros do Mercosul em buscar satisfazer os interesses de todos os Estados parte. Neste sentido, esta foi a segunda cúpula consecutiva que o presidente uruguaio, Lacalle Pou, concordou com a declaração conjunta após quatro outras se negando a assinar o documento, em evidente dissenso do Uruguai em relação aos demais Estados parte do bloco (CNN BRASIL, 2023; MERCOSUL, 2023).

Em suma, quanto às perspectivas para o período de presidência do Uruguai no Mercosul, que se inicia, há uma oportunidade significativa para avanços quanto a flexibilização das regras do bloco, defendida por determinados grupos da sociedade civil, não apenas uruguaios, mas que hoje são vocalizados por Lacalle Pou, por maior autonomia nas negociações comerciais. Ao mesmo tempo, espera-se um aprofundamento das pautas sociais, reforçando o compromisso com direitos humanos, inclusão social e desenvolvimento sustentável, especialmente com o retorno do Fórum Social do Mercosul. Há também expectativa de que as relações econômicas sejam fortalecidas com a liberalização comercial e ampliação de parcerias econômicas extra-bloco, buscando novos mercados e acordos que beneficiem todos os países membros. Ademais, a ausência de discussões mais profundas sobre a reincorporação da Venezuela indica que o país provavelmente não será aceito novamente durante os próximos seis meses, sinalizando uma prioridade em consolidar os atuais avanços e ajustar as dinâmicas internas antes de reincorporar o país ao bloco.

 


Referências Bibliográficas

AGÊNCIA BRASIL. Cúpula do Mercosul em Assunção sela entrada da Bolívia. Agência Brasil, 8 jul. 2024. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-07/cupula-do-mercosul-em-assuncao-sela-entrada-da-bolivia. Acesso em: 9 jul. 2024.

CANDEAS, A. A integração Brasil-Argentina: História de uma ideia na “visão do outro”. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2017. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/683-integracao_brasil_argentina.pdf. Acesso em: 7 jul. 2024.

CNN BRASIL. Uruguai decide não assinar o comunicado conjunto do Mercosul. CNN Brasil, 4 jul. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/uruguai-decide-nao-assinar-o-comunicado-conjunto-do-mercosul/. Acesso em: 9 jul. 2024.

GOMIDE JR., N. A XXIV Cúpula Social do Mercosul (Julho/2024): agendas e dinâmicas. Observatório de Regionalismo, 9 jul. 2024. Disponível em: https://observatorio.repri.org/2024/07/09/a-xxiv-cupula-social-do-mercosul-julho-2024-agendas-e-dinamicas/. Acesso em: 9 jul. 2024.

JAVIER Milei vem ao Brasil para encontro de conservadores e deixa de lado Lula. InfoMoney, 7 jul. 2024. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/politica/milei-vinda-brasil/. Acesso em: 7 jul. 2024.

MARIANO, Karina P.; BRESSAN, Regiane Nitsch; LUCIANO, Bruno Theodoro. Liquid Regionalism: a typology for regionalism in the Americas. Revista Brasileira de Política Internacional, Vol 64, Nº 2, 2021.

MERCOSUL. Comunicado Conjunto dos Presidentes dos Estados Partes do Mercosul e Estados Associados. Mercosul, 11 dez. 2023. Disponível em: https://www.mercosur.int/pt-br/comunicado-conjunto-dos-presidentes-dos-estados-partes-do-mercosul-e-estados-associados/. Acesso em: 9 jul. 2024.

MILEI cancela ida à reunião do Mercosul, mas nega relação com Lula. Poder360, 1 jul. 2024. Disponível em: .https://www.poder360.com.br/internacional/milei-cancela-ida-a-reuniao-com-mercosul-mas-nega-relacao-com-lula/. Acesso em: 6 jul. 2024.

MONNERAT, J. BENEVOLENT PROTECTIONISM? ENVIRONMENTAL REGULATION IN THE TRADE POLICY OF THE EUROPEAN UNION (EU) AND ITS IMPLICATIONS FOR THE EU-MERCOSUR TRADE AGREEMENT. Revista do Programa de Direito da União Europeia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 45-52, 2023. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rpdue/article/view/90005/84454. Acesso em: 7 jul. 2024.

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* Thiago Moreira Gonçalves: Mestre e Bacharel em Relações Internacionais (PUC Minas). Bacharel em Direito (UFMG) com formação complementar em Ciência do Estado (UFMG). Atualmente é pesquisador no Observatório de Regionalismo (PPGRI Santiago Dantas) e CEPDE/PUC Minas (Centro de Estudos Processos Decisórios em Política Externa e Política Internacional). Possui interesse pelos temas: Política Externa Brasileira; Integração Regional Latino-Americana; Diplomacia Federativa/ Paradiplomacia e Direito Internacional Público.

Escrito por

José Paulo Silva Ferreira

Mestrando em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás (UFG), na linha de Política Internacional, com bolsa CAPES. Pesquisador Assistente do Núcleo de Estudos Globais da UFG e do Observatório de Regionalismo (ODR). Atua nas áreas de Integração Regional, História da Política Externa Brasileira e Economia Política Internacional. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1208938060850174.