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Desde o processo de redemocratização após a ditadura militar o Brasil vem marcando seu posicionamento em temas até então menos presentes no debate das relações internacionais. Da mesma forma que buscou-se estabelecer instituições regionais para resguardar a América do Sul das forças neoliberais da globalização. Meio ambiente, direitos humanos e saúde ganharam espaço nas agendas, assim como foram fundamentais para a recuperação de credenciais da política externa brasileira no século XXI. No governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) entre 1995-2003 a reconstrução da imagem e a participação do país dentro dos debates multilaterais foram prioridades. A saúde enquanto pauta na política externa brasileira é um interessante exemplo a ser observado.

O Brasil protagonizou importantes lutas por acesso a medicamentos relacionados a HIV/AIDS. Na Organização Mundial do Comércio (OMC) em conjunto a outros atores estatais e não estatais, a defendeu a quebra dos acordos TRIPS sobre medicamentos retrovirais. Tópico também levado pelo Itamaraty a esfera da Organização Mundial da Saúde (OMS) e Conselho de Direitos Humanos da ONU (BARBOSA et al, 2017). Além de contribuir para o acesso a medicamentos, o Brasil participa ativamente nos esforços contra o tabagismo. Em vista disso, o governo FHC inicia um processo de institucionalização da saúde como pauta de política externa para inserção em um crescente segmento da governança global.

No contexto regional não foi diferente, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) gradativamente buscou ampliar a agenda regional para além do comércio e políticas tarifárias. Ainda em sua formação o bloco contava com instrumentos de integração e cooperação voltados a temas sociais dentro de seu arcabouço institucional.  O Subgrupo de Trabalho (ST) – 11, vinculado ao Grupo Mercado Comum (GMC), criado em 1991 versa sobre saúde. Suas ações giram em torno de entendimento sobre normas e políticas voltadas para saúde, tanto de Estados membros quanto de associados. Da mesma forma, o ST11 trata sobre políticas tarifárias de insumos e materiais utilizados na área da saúde. Em 1995, o GMC criou as reuniões periódicas entre os ministros e ministras de saúde dos Estados membros e associados, gerando um novo espaço para o debate. Por sua vez, a reunião semestral acabou por auxiliar na construção de consensos e trocas de experiências em políticas para saúde pública.

Ao longo dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) entre 2003-2016 a saúde permaneceu relevante, tanto na esfera global quanto na regional, como ferramenta na política externa brasileira com o Sul Global, principalmente no sentido de contribuir para autonomia dos sistemas públicos de saúde desses Estados. O governo do presidente Lula (2003-2010) aprofundou um processo de institucionalização da agenda de saúde, criando mecanismos de cooperação interministerial entre Ministério das Relações Exteriores (MRE), Ministério da Saúde (MS) e Agência Brasileira de Cooperação (ABC). (BARBOSA et al, 2017).

A professora Deisy Ventura (2013) afirma que a saúde na agenda internacional brasileira desse período foi marcada por um caráter estruturante, a fim de auxiliar na criação de sistemas públicos de saúde baseados na experiência do Sistema Único de Saúde (SUS), e em outros órgãos do MS. A cooperação técnica e de práticas de políticas públicas foram importantes ferramentas no relacionamento do país com os demais atores do Sul Global, seguindo uma estratégia de inserção do país a partir de ações mais proativas nos debates de cooperação para o desenvolvimento e governança global.

Na esfera regional houve um aprofundamento da temática, especialmente pela compreensão da saúde como um direito basilar da cidadania das populações sul-americanas. A proposta brasileira para criação da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) em 2008 trouxe dentro de sua proposta iniciativas mais voltadas para a cooperação técnica entre os países. Além de estabelecer ferramentas para articulação dos Estados membros na negociação conjunta na compra de medicamentos e insumos médicos, a criação da UNASUL trouxe dois mecanismos para a saúde na esfera regional: o Conselho Sul-Americano de Saúde (CSS) e o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS).

O CSS foi formado pelos ministros e ministras da saúde dos países membros com o objetivo de harmonizar e trocar experiências em políticas públicas sobre saúde. Já o ISAGS funcionaria como um centro de altos estudos interestatais voltado a pensar e formular políticas integradas, formar lideranças políticas e articular a atuação da região em temas de saúde global. Portanto, a agenda de saúde da UNASUL não se limitava a questões regionais, projetando a participação e posicionamento de seus membros no nível sistêmico. Entre 2010-2014 os Estados participantes da organização conseguiram agir enquanto bloco em 26 resoluções da Assembleia Mundial da Saúde na OMS (FARIAS et al, 2015).

Segundo Pia Riggirozzi e Matt Ryan (2022) configurou-se na América do Sul uma sobreposição das organizações regionais, criando uma rede de mecanismos institucionais em saúde que apesar de sobrepostas, eram complementares. Mercosul e UNASUL acabaram reunindo um grupo de iniciativas que garantiram um amplo leque de ações no campo da saúde, de ações normativas regionais a articulação de posicionamentos em conjunto na Assembleia Mundial da Saúde. Esses espaços regionais possibilitaram posicionamentos mais autônomos e pragmáticos frente à governança global da saúde na (OMS), se apresentando eficientes na aquisição de medicamentos essenciais para os países membros dos blocos sul-americanos (BIANCULLI et al, 2022).

O governo de Dilma Rousseff (2010-2016) deu menos ênfase à política externa no geral, contudo, princípios e valores gerais foram mantidos. Agendas domésticas, principalmente a econômica, ocuparam maior espaço, ao mesmo tempo em que a presidência atua menos em agendas internacionais. Segundo Perez e Gómez (2016) a saúde como pauta internacional não sofre alterações estruturantes em relação ao governo Lula, isto é, o Brasil continua como parte integrante do sistema multilateral da saúde global e nos acordos bilaterais. Contudo, cortes orçamentários, abandono de uma postura propositiva dentro dos debates e menor atenção a política externa por parte da Presidente acabaram por diminuir a atuação na pauta da saúde.

Ao longo das últimas décadas percebe-se que a saúde ocupou um novo espaço dentro da política externa brasileira. O Itamaraty compreendeu tal agenda não só a identificando como uma deficiência estrutural compartilhada por vários atores da América do Sul, como também reconheceu as políticas públicas de saúde enquanto um ativo promissor da política externa brasileira. Em paralelo a esse movimento, ela ocupou um espaço de destaque dentro da agenda regional brasileira de maneira mais institucionalizada por meio da UNASUL e seus instrumentos de cooperação. Contudo, ainda no governo Rousseff esse tema começa a perder força na política exterior brasileira.

A chegada de Michel Temer (2016-2018) ao poder, após o impeachment da presidente Rousseff, deu início a um processo de transformação no posicionamento brasileiro sobre a política externa. O país voltou-se para as potências ocidentais, buscando acordos comerciais; a entrada na Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e repensa sua posição sobre o regionalismo sul-americano. Levando o país a retomar a defesa de um regionalismo voltado às pautas comerciais, em detrimento de projetos para desenvolvimento socioeconômico (TOTTI; NITSCH, 2020). O avanço dos valores neoliberais dentro da política externa brasileira aprofundou a inércia em áreas antes relevantes como a saúde.

Em 2018 o presidente suspendeu a participação do país na UNASUL junto a outros 8 países membros do bloco. Esse movimento do governo Temer acarretou a ausência do país em importantes mecanismos de cooperação e articulação regional em saúde, ausentando-se do CSS e ISAGS. O recuo não foi somente na esfera regional, mas também na governança da saúde global. Ao longo da gestão Temer o Brasil deixou de fazer suas contribuições para a OMS em 2017, devendo 12 US$ milhões (CHADE, 2017). Essa tendência se aprofundou a partir da eleição de Jair Messias Bolsonaro (2019-Atual), sobretudo por conta das rupturas propostas pelo candidato eleito.

Desde o início de seu mandato, o presidente Bolsonaro deixou clara sua proposta para a política externa brasileira, alicerçando-se na ruptura com os governos anteriores, essencialmente os governos do PT. Nesse sentido, o Brasil retornaria a suas origens de identidade e valores, centrados no Ocidente e princípios judaico-cristãos; colocando-se na qualidade de oposição às forças de esquerda internacionais e tornando o Brasil um forte crítico ao multilateralismo e às organizações internacionais. Mesmo após a troca de Ernesto Araújo por Carlos França, feita em março de 2021, esse panorama foi arrefecido, porém não abandonando. As críticas ao multilateralismo, ruptura com os governos anteriores e aprofundamento da lógica neoliberal resultaram em um descaso em relação a pautas como a saúde na política externa.

A pandemia do Covid-19 trouxe a saúde para um debate central da política doméstica e externa.  O Brasil que ao longo dos anos acumulou capital político dentro da governança em saúde global e regional, e construiu uma diplomacia com capacidade de agência sobre a agenda da saúde, não seguiu o caminho esperado. Em junho de 2020, o presidente Bolsonaro ameaçou sair da OMS por discordar das recomendações sobre lockdown e isolamento social, acusando a instituição de “ideológica” (GARCIA, 2020).

As concepções negacionistas, a anti-ciência criaram dificuldades para além das fronteiras brasileiras, elas tornaram a cooperação com o Brasil em prol do combate à pandemia quase impossível. As trocas dos ministros da saúde ao longo do governo também contribuíram para a instabilidade na agenda. Somente após pressões domésticas de opositores políticos, da Comissão de Parlamentar de Inquérito (CPI) da Convid-19 o governo brasileiro investiu mais na compra e produção doméstica das vacinas.

A governança regional em saúde sofreu impactos diretos dessa postura brasileira, não só pelo papel de potência regional que o país ocupa. Assim como pela carência deixada na ausência de um grande defensor dos mecanismos regionais de saúde. O critério ideológico excluiu qualquer prioridade que poderia ter sido dada a pautas relacionadas a forças progressistas. Essa tendência se mostrou clara já no início do governo, ela ganhou ainda mais força no contexto da pandemia do Covid-19. Em uma das maiores crises do século XXI, impactando estruturas sanitárias, políticas e econômicas, a cooperação deveria ter sido uma regra, porém foi uma exceção nas relações internacionais. O governo brasileiro se omitiu de um papel chave para seu entorno, até então ocupado por ele.

Percebe-se desinteresse do governo brasileiro em debater mecanismos de cooperação dentro do Mercosul ou Prosul em relação à crise instaurada. Da mesma maneira que a existência de laboratórios voltados à produção de vacinas como a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan posicionam o Brasil à frente e com capacidades de propor mecanismos de cooperação com os vizinhos. Contudo, não houve nenhuma movimentação nesse sentido. Na realidade, o governo Bolsonaro seguiu um caminho oposto.

Do mesmo modo, não houve esforços dos mecanismos do bloco sobre a saúde, tanto o ST-11 como a reunião de ministros da saúde, a fim de criar ações concretas no combate à pandemia. A ação mais efetiva veio do Fundo para Convergência Estrutural no Mercosul (FOCEM), que investiu US$16 milhões no enfrentamento contra o Covid-19 em 2020 (FOCEM, 2020). Sendo assim, o governo Bolsonaro pretere um papel de liderança na região não atuando dentro dos mecanismos regionais de cooperação em saúde, nem ao menos se mostrando propositivo no debate para criação de mecanismos de cooperação alternativos.

A política externa bolsonarista foi gradativamente se distanciando de sua vizinhança. Mesmo com as oportunidades de liderar mecanismos de cooperação regional em saúde, o governo brasileiro não o fez. Preferiu-se a inércia ou até mesmo o desmantelamento de normativas mercosulinas. Como alternativa a essas organizações, o Prosul não conseguiu fazer nenhuma ação concreta. Essa postura acabou por impactar para além do campo da saúde, mas nas relações de poder regionais.

A noção de liderança regional e o relacionamento com o restante da América do Sul foram diretamente afetados. O afastamento do Brasil, assim como a própria fragmentação das instituições sul-americanas intensificou a presença de atores como China e EUA, muito por conta de suas diplomacias da saúde. Isso porque ambos os países ocuparam mercados e papéis que poderiam ter sido em alguma medida exercidos pelo Brasil (NOLTE, 2022). Ademais, a permeação do negacionismo do Presidente Bolsonaro e sua equipe ministerial, contribuiu para que fossem fechadas fronteiras com muitos países do entorno sem um mínimo de diálogo. Atenuando ainda mais o distanciamento com os países vizinhos.

Mediante ao que foi exposto no presente texto, percebe-se que até o governo Bolsonaro aprofunda um processo de inércia para desmantelamento sobre um importante tema da política externa brasileira, especialmente para a América Sul. Pois, ainda que Rousseff e Temer não tenham dado relevância ao tema como seus antecessores, o Brasil nunca havia se excluído do debate, como foi feito pelo presidente Bolsonaro.

A saúde enquanto pauta de política externa tem muita relevância não só por estar relacionada a direitos humanos. Bem como, um tema transversal a outros temas como segurança e meio ambiente. No caso brasileiro, ela foi uma parte importante do processo de reinserção do Brasil no sistema internacional no mundo pós Guerra Fria. Mesmo que o discurso bolsonarista anti-multilateralismo tenha perdido força, o papel da saúde não foi resgatado. Em um mundo ainda em recuperação da pandemia do Covid-19 há espaço para desenvolver o campo da governança da saúde global e regional. Porém, ao que tudo indica, será difícil o atual governo ocupá-lo.

REFERÊNCIAS

BARBOZA, Tayná Marques Torres; PINHEIRO, Letícia; PIRES-ALVES, Fernando. O diálogo entre saúde e política externa brasileira nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Carta Internacional, v. 12, n. 3, p. 175, 2017.

CARMOS, Marcia. Bolsonaro presidente: declarações de Paulo Guedes sobre o Mercosul surpreendem membros do bloco. BBC News Brasil. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46026331 Acesso em 20 de outubro de 2022.

BIANCULLI, Andrea C.; HOFFMANN, Andrea Ribeiro; NASCIMENTO, Beatriz, Institutional overlap and access to medicines in MERCOSUR and UNASUR (2008–2018). Cooperation before the collapse?, Global Public Health, v. 17, n. 3, p. 363–376, 2022.

CHADE, Jamil. Documentos mostram que Brasil tem segunda maior dívida com OMS. Estadão Saúde. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,documentos-mostram-que-brasil-tem-segunda-maior-divida-com-oms,70002316778. Acesso em: 20 de outubro de 2022.

FARIA, Mariana; GIOVANELLA, Ligia; BERMUDEZ, Luana, A Unasul na Assembleia Mundial da Saúde: posicionamentos comuns do Conselho de Saúde Sul-Americano, Saúde em Debate, v. 39, n. 107, p. 920-934, 2015.

FOCEM. O MERCOSUL APROVA MAIS RECURSOS PARA PROJETO FOCEM SOBRE BIOTECNOLOGIAS APLICADAS À SAÚDE, DESTINADOS À LUTA CONTRA O COVID-19. Disponível em: https://focem.mercosur.int/pt/noticia/o-mercosul-aprova-mais-recursos-para-projeto-focem-sobre-biotecnologias-aplicadas-a-saude-destinados-a-luta-contra-o-covid-19/. Acesso em: 19 de outubro de 2022.

GARCIA, Gustavo. Bolsonaro aponta ‘viés ideológico’ na OMS e ameaça tirar Brasil da organização. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/bolsonaro-aponta-vies-ideologico-na-oms-e-ameaca-tirar-brasil-da-organizacao.ghtml. Acesso em 25 de outubro de 2022.

GÓMEZ, Eduardo; PEREZ, Fernanda Aguilar, Brazilian foreign policy in health during Dilma Rousseff’s administration (2011-2014), Lua Nova, n. 98, p. 171–197, 2016.

MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Paulo Guedes defende reforma da TEC e flexibilização do Mercosul. 2021a. Disponível em https://www.gov.br/economia/ptbr/assuntos/noticias/2021/abril/paulo-guedes-defende-reforma-da-tec-e-flexibilizacaodo-mercosul. Acesso em 20 de outubro de 2022.

MINISTÉRIO DA ECONOMIA. “A nossa missão é modernizar o Mercosul”, diz Paulo Guedes. 2021b. Disponível em https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2021/agosto/201ca-nossa-missao-e-modernizar-o-mercosul201ddiz-paulo-guedes.  Acesso em 20 de outubro de 2022.

NOLTE, Detlef. 2022. Vamos relativizar o sucesso da “diplomacia das vacinas” da China. Disponível em: https://latinoamerica21.com/br/vamos-relativizar-o-sucesso-da-diplomacia-das-vacinas-dachina/. Acesso: 18 de outubro de 2022.

RIGGIROZZI, Pia; RYAN, Matt, The credibility of regional policymaking: insights from South America, Globalizations, v. 19, n. 4, p. 604–619, 2022.

TOTTI SALGADO, Vitória; NITSCH BRESSAN, Regiane, O Acordo De Associação Mercosul-União Europeia E A Política Externa Brasileira, Revista Neiba, Cadernos Argentina Brasil, v. 9, n. 1, 2020

VENTURA, Deisy. SALUD PÚBLICA Y POLÍTICA EXTERIOR BRASILEÑA. Em: MÉNDEZ, Emilio García; BENABOUD, Fifi; BRANT, Maria. Revista Internacional de Derechos Humanos. p. 220, 2013.

 

Escrito por

Heitor Erthal

Doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), mestre e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense. Integra o grupo de pesquisa Observatório do Regionalismo (vinculados à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo - REPRI). Desenvolve pesquisa nos seguintes temas: Política Externa; Política Externa Brasileira; Regionalismo e governança regional; Saúde.