Imagem- Fonte: Wikipedia.

A integração pode partir de diversos temas ou questões que são compartilhadas entre os países, não devendo se limitar a um processo linear, ou um modelo pronto, mas pode ser “vista como a interação entre diversos grupos para além de suas fronteiras nacionais, de forma a resolver problemas comuns”.

Um tema comum entre países, que, naturalmente, ultrapassa as suas fronteiras, é a água. No caso da América do Sul, a região é considerada abundante em recursos hídricos, pois conta com a Bacia do Prata e a Bacia Amazônica, ambas internacionais (CASTRO, 2012), além de grandes aquíferos, como é o caso do Alter do Chão, compartilhado entre estados brasileiros e o Aquífero Guarani, este último compartilhado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, sendo considerado um dos maiores mananciais de águas subterrâneas do mundo, com cerca de 1.100.000 Km² de extensão (FOSTER et. al, 2009).

Portanto, podemos pensar que o meio ambiente e a água são pauta dos blocos regionais, não? O Mercosul, ainda que aborde o meio ambiente no Tratado de Assunção (1991), enquanto elemento de integração, o tema sempre foi secundário. Contudo, é claro que o período no qual o bloco surge, marcado por um contexto de globalização e ímpeto neoliberal, impulsiona processos de integração econômica e comercial como forma de inserção internacional dos países, o que faz com que temas como o meio ambiente sejam preteridos dentro da agenda regional.

Todavia, durante a formação da estrutura institucional mercosulina, foi criado o Subgrupo de Trabalho 6 (SGT-6) para as questões ambientais e, posteriormente, a Reunião de Ministros de Meio Ambiente, bem como uma comissão para a temática ambiental dentro do Parlamento do Mercosul. Ainda, foi firmado o Acordo Quadro para o Meio Ambiente do Mercosul, em 2001, entre seus membros. Porém, tais iniciativas não garantiram maior expressividade para a temática, que permaneceu dentro da estrutura do bloco, vinculada à agenda econômica e a temas engessados (LEITE, 2018).

No início dos anos 2000 a América Latina passa pela chamada “Onda Rosa” (SILVA, 2010) com a ascensão de governos de esquerda e centro esquerda na região, como resposta ao fato de que o modelo neoliberal adotado das décadas anteriores não trouxe o desenvolvimento para a região, mas, sim, sucessivas crises. Essa mudança se reflete nos blocos regionais  a partir da construção de uma  agenda que passa a contemplar interesses políticos e sociais mais abrangentes; também é vista a criação de novos mecanismos de participação nos blocos, como ampliação dos subgrupos de trabalho, políticas educacionais, criação do Instituto Social do Mercosul, entre outros, bem como passou a ser contemplada a participação de atores que ultrapassassem a esfera estatal, ainda que o Mercosul preservasse o modelo intergovernamental de decisão, ou seja, em última instância, ainda era o poder executivo de seus Estados membros, representados pelo Conselho de Mercado Comum (CMC) e Grupo de Mercado Comum (GMC), que tomaria as decisões. Porém, havia uma expectativa de que as mudanças no regionalismo levariam a uma caminhada em direção ao aprofundamento das temáticas que se traduziriam em uma institucionalização e articulação (SARAIVA; RUIZ, 2009).

É ainda em meados dos anos 2000 que a água entra como tópico dentro das instâncias ambientais do Mercosul, pois nesse período os países membros do Mercosul passavam pelo Projeto para a Proteção Ambiental e o Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani (PSAG) e, uma vez que os países parte do Mercosul eram os mesmos que os do Aquífero Guarani, o bloco foi escolhido como instância para formulação de um Acordo para a temática, enquanto o PSAG ocorria. Entre momentos de estagnação, atividade e entraves pela redação dos artigos do documento internacional (SANTOS, 2015), o Acordo do Aquífero Guarani foi assinado em 2010, em ocasião da Reunião dos Presidentes do Mercosul. Todavia, o fato do Acordo ter sido negociado dentro de instâncias do Mercosul não se traduziu em um espraiamento da temática dentro do bloco ou tornou possível criar mecanismos de governança para a água ou até mesmo para o Aquífero Guarani, de uma perspectiva regional (MARIANO; LEITE, 2019).

Apesar de iniciativas insuladas para temática hídrica, há a presença de um caso, relacionado ao Aquífero Guarani, que une a possibilidade de participação de atores que saem da órbita presidencial e que possui grande potencial de integração, trata-se do caso de Salto (Uruguai) e Concórdia (Argentina). Ambas as cidades, na ocasião da comemoração dos 20 anos do Mercosul, em 2011, as cidades aderiram ao marco de cidades irmãs dentro da Rede Mercocidades, buscando estreitar ainda mais os laços de cooperação[2]. As cidades são vizinhas na fronteira, com intensa interação e juntas possuem parte mais povoada da fronteira entre os dois países, com aproximadamente 250.000 habitantes. Entre as principais fontes de renda de ambas as cidades está o turismo hidrotermal (FOSTER et. al., 2009). Salto possui o turismo termal mais desenvolvido no Mercosul, sendo fonte importante de renda da região e Concórdia vem crescendo no ramo. Contudo, ambas extraem águas do Aquífero Guarani, que, devido à formação hidrogeológica da área, tem suas águas propícias para o hidrotermalismo e não para consumo humano (FOSTER et. al, 2009; OEA, 2009).

Figura 1. Área Salto e Concórdia

Fonte: FOSTER et. al, 2009, p.25

O Aquífero Guarani contou nos anos 2000 com um PSAG, como já mencionado, e antes de seu lançamento estabeleceu quatro áreas para projetos piloto, nas quais havia vulnerabilidade no uso do Guarani; entre essas áreas, duas eram transfronteiriças, sendo uma delas Salto e Concórdia. Durante o PSAG, estudos foram realizados para aprofundar o conhecimento dessa área dentro dos projetos piloto, conduzidos por especialistas e políticos na área e gestão dessas águas nas duas cidades. Foi concluído, em 2009, com o final do Projeto, que havia potencialidade de interferência nos poços hidrotermais vizinhos o que poderia afetar o artesianismo, que é uma atração turística especial; a construção de novos poços pelas cidades deveria ser elaborada com base em estudos e planejamento conjunto, além de ter sido constatado também o risco de salinidade das águas, entre outros aspectos.

A gestão coordenada e a troca de informações foi vista e recomendada como essencial, dado que os regimes legais e institucionais da Argentina e Uruguai são distintos, portanto, a cooperação nessa área transfronteiriça e o fortalecimento da integração e gestão por um recurso comum se tornou essencial. Desde 2009, apesar do final do PSAG, a Comissão Binacional se manteve ativa, embora não tivesse um respaldo legal formal na forma de um acordo ad hoc (SINDICO et. al, 2018).

É interessante notar que, mesmo sem um acordo formal entre os dois países, ou entre os dois municípios, as principais atividades de estudo e monitoramento continuaram ao longo dos anos graças à liderança dos membros locais da Comissão e, em 2017, foi assinado um Acordo entre as cidades de Concórdia e Salto. Trata-se de um importante e interessante marco jurídico transfronteiriço, negociado por dois municípios e com  participação ativa de atores subnacionais, portanto, não se trata de um acordo entre dois países, o que pode trazer desafios para o seu reconhecimento pelo direito internacional enquanto instrumento vinculativo, mas, do ponto de vista político, trata-se de um documento forte e persuasivo, que confirma muitas as práticas e necessidades de gestão que vêm sendo desenvolvidas e consagradas, antes mesmo do próprio Acordo do Aquífero Guarani, celebrado entre países, entrar em vigor, o que só ocorreu no final de 2020, mais de 10 anos após sua assinatura. O Acordo municipal de 2017 é um exemplo de como a cooperação transfronteiriça de liderança local pode ser um forma de pensarmos a cooperação e integração, de forma efetiva, sem necessariamente envolver o Estado Nacional (SINDICO et. al, 2018).

Mercher et. al (2019)  ao realizarem estudo referente às fronteiras nacionais da América do Sul, observaram  que cidades possuem grande relevo no tocante às políticas públicas de integração regional, sendo possível pensar em esquemas de governança multinível a partir do prisma de novos atores nas agendas fronteiriças, realizando análise das cidades fronteiriças na região sul-americana e da Rede de Mercocidades,  as quais, por meio de suas dinâmicas políticas, poderiam realizar transferência de responsabilidades da integração dos Estados-membros do Mercosul para as cidades, sendo inclusive um dos exemplos de dinâmica o caso do Aquífero Guarani entre Salto e Concórdia.

Dessa forma, as questões ambientais e, principalmente, hídricas, são transfronteiriças per se. As iniciativas vistas no Mercosul no tocante ao meio ambiente e à água, especialmente no caso do Aquífero Guarani, demonstram que em um bloco de estrutura intergovernamental, tais temas permanecem insulados e engessados a outros tópicos e às dinâmicas nacionais dos países parte. No entanto, percebemos nos atores subnacionais e em outras esferas de participação a potencialidade nas iniciativas de integração a partir das dinâmicas locais, transfronteiriças e de atores que ultrapassam o Estado e podem efetivamente criar esquemas de governança e gestão para temas considerados secundários nas agendas, a partir de uma dinâmica de baixo para cima,  que pode dinamizar inclusive os blocos regionais.

REFERÊNCIAS

CASTRO, J.E. A gestão da água na América Latina. Revista Desafios do Desenvolvimento-IPEA, ano 9, ed.74, 2012

FOSTER, S.; HIRATA, R.; VIDAL, A.; SCHMIDT, G.; GARDUÑO, H. A Iniciativa do Programa Sistema Aquífero Guarani – Rumo à Gestão Prática da Água Subterrânea em um Contexto Transfronteiriço. GW-MATE, n.9, 2009.

LEITE, M.L.T.A. Acordo do Aquífero Guarani e a ótica da integração regional. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, São Paulo,2018.

MÈRCHER, L.; BERNARDO, G.J.; CORREIO, E. Z. S. Multilevel governance in south america: Borderline mercocities and mercosur regional integration. Revista Conjuntura Global v. 8, n. 2, 20

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA) Aquífero Guarani: programa estratégico de ação/ Acuífero Guaraní: programa estatégico de acción. Edição bilíngue. Organização dos Estados Americanos (OEA), 2009,424.

SANTOS, C.L.S. Aquífero Guarani: atuação do Brasil na negociação do acordo. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais. Instituto de Energia e Ambiente, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

SINDICO, F.; HIRATA, R.; MANGANELLI, A. The Guarani Aquifer System: From a Beacon of hope to a question mark in the governance of transboundary aquifers. Journal of Hidrology: Regional Studies, 2018.

Escrito por

Maria Luísa Telarolli

Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós- Graduação UNESP, Unicamp e PUC-SP "San Tiago Dantas" e doutoranda em Geografia Humana pela USP. Pesquisa recursos hídricos, governança internacional e o Aquífero Guarani, mais especificamente,o Acordo do Aquífero Guarani no MERCOSUL. Além de ser membro do Observatório de Regionalismo, também é membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares de Cultura e Desenvolvimento (GEICD) da UNESP/ FCLar, da Waterlat - Gobacit e do Grupo de Geografia Política e Meio Ambiente do Departamento de Geografia Humana da USP.