Imagem por Council on Foreign Relations.
Artigo por Luís Filipe de Souza Porto
Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC (PRI-UFABC). Bacharel em Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ). Pesquisador do Núcleo de Avaliação de Conjuntura da Escola de Guerra Naval (NAC/EGN/Marinha do Brasil) e do Grupo de Economia do Mar (GEM/DGP/CNPq). Membro do Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional (OPEB/UFABC). Analista editorial no Observa China (观中国). E-mail: lfilipe.sporto@gmail.com.

A região da América Latina e Caribe (ALC) tem um histórico de desafios estruturais para o desenvolvimento em setores diversos, como infraestrutura e indústria. Mais recentemente, essa realidade foi intensificada pelas crises decorrentes da pandemia COVID-19, com transbordamentos para além da saúde e questões sanitárias (MAXIMILIANO, 2021). Nesse contexto, torna-se significativamente adequado ressaltar o potencial das oportunidades de recuperação advindas das relações com a China, principalmente dentro do escopo da Belt and Road Initiative (BRI), no sentido de aumentar a resiliência e capacidade da ALC na gama de setores afetados pela crise, reforçar cadeias de valor regionais existentes e atrair Investimento Estrangeiro Direto (RODRIGUES, 2020). 

Embora a China tenha aprofundado há tempos os laços com muitos países da ALC, é relativamente recente a participação efetiva da BRI na região. Muitos países da ALC assinaram acordos para se beneficiarem da BRI, à medida que o nível de comércio entre a ALC e a China continua aumentando (RODRIGUES, 2020). Além disso, nações que não são formalmente participantes da BRI – incluindo Argentina, Brasil, Colômbia e México – também foram beneficiárias de investimentos chineses significativos (PATRICK, 2021). Entre os projetos encontrados na BRI encontra-se a Health Silk Road (HSR), que apesar de ter chamado a atenção durante a crise de Covid-19 (MILOŠEVIĆ, 2020), não é nova. Xi Jinping, atual presidente de China, usou o termo pela primeira vez durante uma visita a Genebra, em janeiro de 2017, onde assinou um memorando de entendimento com a Organização Mundial da Saúde (OMS) comprometendo-se com a construção de uma “Rota da Seda da Saúde”, que teria como objetivo adotar estratégias para a evolução da saúde pública nos países em torno da BRI (XINHUA, 2017). 

Em agosto de 2017, o governo chinês também organizou um seminário em Pequim intitulado “Fórum Belt and Road sobre Cooperação em Saúde: Rumo a uma Rota da Seda da Saúde”, onde o Diretor Geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus elogiou a proposta “visionária” de Xi para utilizar a rede da BRI para fortalecer a cooperação no setor da saúde. Tedros terminou seu discurso endossando a recomendação da China de que “os líderes da saúde de 60 países reunidos aqui, e os parceiros da saúde pública, construam uma rota da seda saudável, juntos” (WHO, 2017).

Em 2017, Pequim sediou a primeira “Reunião de alto nível de Belt and Road para cooperação em saúde”. Na ocasião, foi assinado um memorando de entendimento sobre a HSR entre a China, a OMS, o Programa das Nações Unidas para o Combate à AIDS (UNAIDS) e mais trinta outros países, abordando medidas, como: i) apoio explícito à cooperação entre a BRI e organizações internacionais, como a OMS e a UNAIDS; ii) defesa dos princípios gerais da BRI de “ampla consulta, esforços conjuntos, benefícios compartilhados”, além do reforço ao “Estado de direito e oportunidades iguais para todos” (Ibid, 2017).

No contexto regional, além de apoiar os organismos internacionais de saúde, a China promoveu vários fóruns de saúde como plataformas para aumentar sua influência, a saber: i) Fórum de Cooperação Sanitária China-ASEAN; ii) Fórum de Ministros de Saúde dos Países da Europa Central e Oriental da China (ECO); iii) Fórum de Cooperação em Saúde China-Países Árabes (CCICED, 2018). Esses fóruns contam com a participação de autoridades de saúde da China e dos países participantes para propor e discutir projetos concretos de cooperação.

HSR DURANTE A COVID-19

A China registrou 4,9% de crescimento do produto interno bruto no terceiro trimestre de 2020 em comparação com 2019. Além disso, teve crescimento de 0,7% do PIB nos primeiros três trimestres de 2020 (BLOOMBERG, 2020). Embora a China tenha enfrentado intenso escrutínio internacional por seu tratamento inicial inadequado do COVID-19 (FELLET, 2020), depois de conter a disseminação do coronavírus se configurou como grande exportadora de insumos de saúde, exercendo ativamente o que denominaram como “Diplomacia das Máscaras” (KOTZ, 2020), mantendo capacidade contínua de produzir e exportar suprimentos de saúde para um número significativo de países, especialmente emergentes. Ademais, a China também enviou equipes de especialistas em saúde para missões internacionais em outros países, que puderam compartilhar experiências, lições e sugestões de como a China lidou com a pandemia.

No momento, o Estado chinês está ativamente envolvido em assuntos internacionais de saúde, atividades que incluem cooperação com organizações internacionais e expansão da cooperação intergovernamental em saúde. A China dobrou seu apoio a organismos internacionais e de saúde da Organização das Nações Unidas (ONU), como a OMS (CHENG, 2020), enquanto o governo Trump adotou uma posição isolacionista se retirando da instituição. 

HSR NA AMÉRICA LATINA

Nos países da AL, a China prestou assistência médica a um significativo número de países , como Argentina, Chile,  Cuba, Costa Rica e Panamá, promovendo o intercâmbio de conhecimento entre especialistas chineses e latino-americanos. A colaboração com a China permitiu que os países latino-americanos encontrassem um forte aliado nas questões de saúde. Indiretamente, esses países contribuíram para a afirmação da influência chinesa, não só na região, mas também no sistema internacional, considerando que a China busca ativamente desassociar sua imagem internacional das críticas que vem recebendo por sua má gestão do início da pandemia e falta de transparência. 

Por outro lado, a China também quer garantir a estabilidade de seus mercados na América Latina, mantendo o equilíbrio que construiu na região em torno do “Consenso de Pequim”, ou seja, incorporando parceiros da periferia para o modelo de desenvolvimento centralizado chinês  (BOLINAGA; SLIPAK, 2015). Mais especificamente, a ideia é criar laços de dependência com a região, como parte do processo que se encontra atualmente para o desenvolvimento industrial, conquista de novos mercados para seus produtos de alto valor agregado e tecnologia de ponta, enquanto os países latino-americanos ainda dependem muito de commodities, com a economia baseada na exportação de produtos do setor primário (BERNAL-MEZA, 2019).

Essa relação centro-periferia buscada pela China também ocorre no campo da saúde, com presença significativa de uma rede de empresas do país ativamente envolvida na administração da diplomacia de saúde chinesa  na América Latina. A falta de investimento em infraestrutura no subcontinente, em comparação com outras regiões, leva a uma série de externalidades negativas, como produtividade baixa, desigualdade de renda ou acesso reduzido a serviços de saúde de qualidade. As relações da China com a região, desse modo, geralmente resultam em uma estreita colaboração de alto nível entre instituições médicas e de saúde governamentais, regionais e locais, como no âmbito de um plano de ação conjunto estabelecido em 2018 pela China e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) [1], apenas para citar um.

A realidade subdesenvolvida da América Latina também permite que a China se envolva de forma abrangente em diferentes aspectos da HSR na região. Com base nesse ativo chinês, os países mais pobres podem pedir maior assistência na construção de infraestrutura básica de saúde pública e capacitação, bem como intercâmbio e cooperação científica. 

CONCLUSÕES

A gama de mazelas e desafios para o desenvolvimento dos países da ALC permite que a China se envolva de forma abrangente na região em várias dimensões. Portanto, a ALC representa para a China oportunidades e uma região com necessidades, além de reforçar o ensejo de promover relações ainda mais fortes com os países da região. No que tange à saúde, a pandemia de Covid-19 destaca a carência de infraestrutura de saúde pública em muitos países, especialmente os  em desenvolvimento. 

A HSR fornece a estrutura política para a China fortalecer e propor seu sistema de ajuda médica internacional, aumentar sua influência na governança da saúde regional e global, direcionar de forma mais assertiva os recursos e investimentos da BRI em saúde pública e ampliar o papel do país no fornecimento de insumos médicos. Para a ALC, a HSR representa uma base de barganha para a assistência na construção de infraestrutura básica e cooperação em saúde pública. Ao mesmo tempo, a HSR fornece as bases para que a China possa oferecer ajuda internacional em meio à crise pandêmica, expandindo sua influência. Embora os interesses nacionais devam ser protegidos com cuidado, não há razão para que os países latino-americanos não possam se beneficiar de trabalhar com a China no âmbito da HSR, assegurando, obviamente, termos de cooperação bem negociados e projetos bem administrados.

Notas

[1] Fórum China-CELAC: Novas Oportunidades para o Desenvolvimento. China-CELAC Forum, 2018. Disponível em: http://www.chinacelacforum.org/esp/ltdt_2/t1527418.htm

Referências:

BERNAL-MEZA, R. China e América Latina: o desenvolvimento de uma nova relação centro periferia. Revista do CEAM, v. 5, n. 1, p. 59–73, 2019. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/revistadoceam/article/view/26197. 

BOLINAGA, Luciano; SLIPAK, Ariel. El Consenso de Beijing y la reprimarización productiva de América Latina: el caso argentino. Prob. Des, México,  v.46, n.183, p.33-58, Dezembro, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0301-70362015000400033&lng=es&nrm=iso>

CCICED. Special Policy Study on Green Belt and Road and 2030 Agenda for Sustainable Development: 2018 policy paper. CCICED, 2018. Disponível em: https://www.iisd.org/sites/default/files/publications/CCICED/engagement/2018/green-belt-and-road-and-2030-agenda.pdf

CHENG, Evelyn. China’s Xi pledges $2 billion to help fight coronavirus. CNBC, 18/05/2020. Disponível em: https://www.cnbc.com/2020/05/18/chinas-xi-pledges-2-billion-to-help-fight-coronavirus-at-who-meeting.html

CHINA e OMS construirão Rota da Seda “saudável”. Xinhua Português, 19/01/2017. Disponível em: http://portuguese.xinhuanet.com/2017-01/19/c_135994881.htm. Acesso em: 30/04/2021.

FELLET, João. O que se sabe sobre as principais acusações contra a China na pandemia. BBC Brasil, 30/04/2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52466295

KOTZ, Ricardo. Diplomacia das máscaras: o papel da China no contexto da Covid-19 e os países emergentes. CEIRI News, 03/08/2020. Disponível em: https://ceiri.news/diplomacia-das-mascaras-o-papel-da-china-no-contexto-da-covid-19-e-os-paises-emergentes/

MAXIMILIANO, Alonso. Ante la COVID-19: la banca para el desarrollo y la nueva normalidad en América Latina. Análisis Carolina, 26/01/2021. Disponível em: https://www.fundacioncarolina.es/ante-la-covid-19-la-banca-para-el-desarrollo-y-la-nueva-normalidad-en-america-latina/

MILOŠEVIĆ, Žikica. The Health Belt & Sanitary Road: China from the guilty loser to the superior winner. Diplomacy & Commerce, 04/04/2020. Disponível em: http://www.diplomacyandcommerce.rs/the-health-belt-sanitary-road-china-from-the-guilty-loser-to-the-superior-winner/

PATRICK, Igor. Brasil deveria entrar na ‘nova rota da seda’ da China? Talvez já esteja. Folha de São Paulo, 15/05/2021. Disponível em: https://chinaterradomeio.blogfolha.uol.com.br/2021/05/15/brasil-deveria-entrar-na-nova-rota-da-seda-da-china-talvez-ja-esteja/

RODRIGUES, B. S. O pouso do dragão na América do Sul: uma análise dos China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean e do projeto da Nova Rota da Seda. Brazilian Journal of Latin American Studies, v. 19, n. 37, p. 78-105, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/prolam/article/view/166148. Acesso em: 17 maio. 2021.

WHO. Towards a Health Silk Road, a speech by Dr Tedros in the Belt and Road meeting for health cooperation. World Health Organization, 18/08/2017. Disponível em: http://bit.ly/2fQQZLe

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Observatório de Regionalismo

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