TEXTO POR:
Bianca Silva Gonçalves
Graduanda em relações internacionais pela UNIJORGE e parte do centro de práticas em organizações internacionais pelo núcleo de pesquisa e extensão em relações internacionais. Contato: biancagoncalvess2004@gmail.com.
Guilherme Dias do Carmo
Bacharel em humanidades, com área de concentração em relações internacionais pela UFBA, graduando em relações internacionais pela UNIJORGE, membro do centro de práticas em organizações internacionais pelo núcleo de pesquisa e extensão em relações internacionais. Contato: guidias1936.gd@gmail.com
INTRODUÇÃO
A visão de futuro introduzida pela União Africana (UA) através da Agenda 2063, incentiva a ascensão do continente por meio da boa governança e respeito aos princípios democráticos. Com grande enfoque no desenvolvimento socioeconômico do continente, a organização reproduz os preceitos panafricanistas e busca a união da região para impulsionar o desenvolvimento. Assim, para cumprir o objetivo do presente artigo de contribuir para a compreensão da atuação multilateral do continente africano, a partir da análise da União Africana. O texto será dividido em uma breve contextualização da criação da UA a partir da compreensão da Organização da Unidade Africana (OUA), em seguida serão analisadas as ferramentas utilizadas pela organização para promover maior integração e desenvolvimento do continente africano: a Agenda 2063 e o African Peer Review Mechanism (APRM). Por fim, a instabilidade política e social presente no Mali será analisada a partir de um estudo de caso. Dessa forma, o artigo possui as seguintes seções: I- Introdução; II – A União Africana; III – A Agenda 2063 e o African Peer Review Mechanism; IV – Estudo de caso; V- Conclusão.
A UNIÃO AFRICANA
Para compreensão da UA é importante analisar o contexto de sua criação através de um olhar crítico, tendo em vista que a história da África é atravessada por longos períodos de ingerência, tanto colonial quanto neocolonial. Formulada em 2002, a UA foi pensada como sucessora da OUA, visando aprofundar a defesa dos valores panafricanistas, bem como aprimorar e institucionalizar os mecanismos de manutenção do equilíbrio regional (COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA, 2015).
Desse modo, durante a criação da UA os estudiosos se debruçaram sobre as deficiências da organização antecessora para apontar caminhos que o organismo deveria seguir rumo ao desenvolvimento africano. Os principais pontos abordados, foram a necessidade de fomentar a democracia e boa governança dentre os países membros, impulsionados pelos ideais difundidos pela globalização durante a década de 1990. Outro forte traço destacado foi também a incapacidade da OUA de implementar uma agenda independente dos interesses exclusivos da elite, no viés econômico e político, e mediar conflitos existentes — o que posteriormente resultou no seu fim.
A aparente ineficácia da OUA foi atribuída ao “caráter personalista, materialista e oportunista da política Africana” (Berman 1998, 305). Havia outras razões também: a primeira era a primazia do poder político no cálculo da elite. […] (Ake 1981). Segundo, a maioria dos líderes africanos não eram produtos do processo democrático e, portanto, não podiam se importar menos com a unidade africana (Ibeike-Jonah 2001). (NWOZOR, 2018, p.03)
A AGENDA 2063 E O AFRICAN PEER REVIEW MECHANISM
Assim, tendo em vista todas as questões a serem superadas para o estabelecimento de uma Organização internacional (OI) eficiente e duradoura, a União Africana buscou ferramentas e mecanismos para orientar suas movimentações e auxiliar na aplicação do acordado. Treze anos após o seu surgimento, em 9 de julho de 2002, a organização surgiu com um plano estratégico de longo prazo para impulsionar a ascensão política, econômica e social do continente africano, a Agenda 2063. A visão de futuro almejada pela Agenda é um grande símbolo não só para a integração e cooperação do continente africano, como também para o avanço das pautas de desenvolvimento focadas na região. O plano é composto por inúmeras seções que especificam as metas da organização, as quais são chamadas de “aspirações”. Dentre as 7 aspirações expostas no documento, três foram selecionadas para a pesquisa, devido a aplicabilidade no estudo de caso. Assim, esta discussão propõe-se a analisar as seguintes:
(a) […] “Um continente integrado, politicamente unido com base nos ideais do pan-africanismo e a visão do Renascimento Africano” (b) […] “Uma África de boa governança, democracia, respeito pelos direitos humanos, justiça e o estado de direito”; e (c) […] “Uma África pacífica e segura” (COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA, 2015, p.2)
Pautando as tomadas de decisão nas aspirações da Agenda, a organização assume uma postura categórica ao tratar os desafios presentes na África com o menor nível possível de interferências externas das grandes potências. E assim, foca em pensar soluções africanas para problemas africanos, materializando o seu alinhamento com os pensamentos panafricanistas, que moldam a missão, os princípios e os valores da instituição.
Em meio a lista das aspirações mencionadas, os países estabeleceram datas limite a curto, médio e longo período para auxiliar no alcance dos objetivos. Porém, existem visíveis deficiências na aplicação efetiva destes objetivos no solo africano.
Quando analisamos as metas de curto e médio prazo, como “Até 2020, todos os vestígios do colonialismo terão sido eliminados e todos os territórios africanos sob ocupação estarão totalmente libertados” ou “silenciar as armas até 2020” (COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA, 2015, p. 2), fica explícita a dificuldade de alcance dos objetivos. Esse atraso em alcançar as metas de curto prazo não é uma surpresa, visto que um período tão curto não é suficiente para sanar problemas estruturais historicamente consolidados.
Dentre os objetivos mencionados anteriormente, o primeiro deles abrange a libertação total do Arquipélago de Chagos do jugo colonial inglês; fato que ainda não aconteceu apesar das contestações da comunidade internacional e outros atores, como a Corte Internacional de Justiça (CIJ). Já o segundo, também apresenta diversas questões pendentes, como o caso do Mali que analisaremos posteriormente neste artigo.
Nesse sentido, existem diversos desafios a serem superados para o alcance das demais metas estabelecidas, como o fim dos resquícios de colonialismo ainda presentes na África. Essa meta estabelece 2020 como prazo para findar a ocupação do Arquipélago de Chagos, região que até hoje permanece sob o domínio do governo britânico. Tal objetivo, com uma data limite curta, considerando o ano de lançamento da Agenda (2015), não surpreende ao ter pouco êxito em alcançar o pretendido, visto que a potência tem apresentado relutância em abrir mão da região. Ainda assim, é de extrema relevância a pressão que estas metas impõem na comunidade internacional, reforçando o direito de autodeterminação dos povos já reconhecido pelas potências.
Paralelamente, além do plano de longo prazo, a UA também dispõe do African Peer Review Mechanism (APRM), um mecanismo voluntário no qual as nações examinam o estágio de aplicação de vertentes chave para o desenvolvimento. O APRM atua como um recurso favorável para a fiscalização e diagnóstico da conjuntura regional africana, abarcando diversas facetas socioeconômicas, incluindo conflitos armados, além de consistir em uma ferramenta de manutenção e monitoramento das práticas de boa governança dentro do continente africano. Através dele, a partir de 2003, alguns dos países membros da organização se comprometeram voluntariamente a fiscalizar seus países na aplicação das seguintes temáticas: democracia e governança política, econômica e corporativa; gestão econômica e desenvolvimento socioeconômico (ACHIENG, 2015).
Naturalmente, os relatórios gerados pelo mecanismo podem ser utilizados como parâmetro indicativo dos avanços ou deficiências na aplicação das metas determinadas pela Agenda 2063. E é por esse motivo que, mesmo com a diferença de objetivos existentes entre o APRM e a Agenda 2063, o modus operandi do mecanismo é tão relevante para a análise crítica do proposto pela Agenda, visto que os princípios norteadores do mecanismo e as aspirações estabelecidas na Agenda – primazia da boa governança no continente africano – tem grandes semelhanças.
Os principais pontos abordados pelo APRM em seus questionários, são também muito valiosos para a observação crítica da Agenda 2063, sendo eles: fraquezas nos sistemas, leis e instituições, indicadores de alerta precoce que apontam para as áreas que requerem maior ação e a medida em que o país implementou os planos de ação acordados (ACHIENG, 2015). Essas questões são importantes não só para o diagnóstico individual da situação de cada Estado, como também auxiliam na compreensão do nível de aplicação da Agenda nesta região.
Isto posto, utilizaremos a aspiração “Silenciar as armas até 2020” (COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA, 2015, p.2) como base para analisar o que está acontecendo no Mali a partir dos seguidos golpes militares ocorridos em 2020 e posteriormente em 2021, e entender a atuação da União Africana frente a conjuntura atual. A meta estabelece que até a data limite, em 2020, o continente africano deveria estar livre de todas as guerras, o que não foi alcançado no período, e mesmo em 2023 (3 anos após o prazo de 2020) a situação de insegurança política na região permanece crítica. Desse modo, exemplificaremos a falha no alcance deste objetivo através da análise crítica do quadro estabelecido no Mali.
ESTUDO DE CASO
Nesse sentido, enquanto o mundo parava por conta da pandemia do até então recém descoberto coronavírus, o Mali passou no primeiro semestre de 2020 por grandes movimentações populares que diagnosticavam um desagrado generalizado referente à administração pública. Respaldando-se nas insatisfações populares e no crescimento das atividades terroristas na região norte do país (SIMMS, 2021), em agosto de 2020 ocorreu a tomada do poder executivo pelos militares, que forçaram o presidente a renunciar e instalaram um novo governo.
A condenação global ao golpe foi quase imediata, representantes estatais de todas as partes do mundo emitiram suas preocupações com a escalada antidemocrática no país, que por sua localização central e riquezas minerais quase inexploradas pode ser visto como essencial em parâmetros geopolíticos, sendo assim relevante para a estabilidade regional. Nesse sentido, destaca-se o papel da União Africana que, respaldada nos compromissos acordados pelo Mali como signatário do APRM, rapidamente suspendeu o país de todas as atividades, órgãos e instituições da organização, posteriormente intensificando a represália, aplicando sanções coletivas ao novo regime malinense (SIMMS, 2021).
Enquanto a UA alçava propostas de apoio a uma gradual retomada da ordem constitucional em Bamako (capital do Mali) – seguindo os princípios da APRM – ocorreu um segundo golpe de Estado em menos de um ano, quando uma ala militar insatisfeita com os rumos dados a governança, sequestrou o então presidente e outros membros do alto escalão do governo, consolidando ainda mais a instabilidade na região. Com isso, a União Africana voltou a suspender a participação do Mali na organização (SIMMS, 2021), que meses antes tinha sido readmitido com o intuito de não prejudicar a população civil.
O ano de 2023 tem representado uma continuidade das instabilidades no continente africano, majoritariamente na região do Sahel, onde golpes como o ocorrido no Níger em julho movimentaram os tabuleiros políticos e desafiaram as instituições da União Africana. A ameaça de intervenções externas fizeram com que a já tensa relação entre os países vizinhos ganhassem um novo episódio após Níger, Burkina Faso e o Mali -ainda governado pela junta militar- celebrarem em setembro um acordo de defesa mútua.
A intensificação das parcerias com as nações hoje governadas por regimes militares ditos nacionalistas, e o constante adiamentos das eleições no Mali, frustram os planos da União Africana, que mesmo após as respostas negativas de Bamako, segue buscando o diálogo, a fim de garantir a volta do Mali para um regime democratico, assim ficando mais convergente as propostas da agenda 2063.
Na construção da Agenda 2063, o ano de 2020 foi estabelecido como marco onde a meta de silenciar todas as armas seria alcançada. Todavia, por conta dos acontecimentos no Mali, e em diversos outros países do continente, 2020 pode ser lido como um ano no qual a agenda foi colocada à prova. A fragilidade institucional apresentada pelo Mali e por outras nações africanas se coloca como um considerável obstáculo para a conclusão das metas apresentadas pela UA e para a própria organização.
Esse déficit de governabilidade não é uma realidade exclusiva do Mali, diversos países do continente africano sofrem desse mal, como Burkina Faso e Guiné Conacri. Problemas como a descentralização do poder em forças políticas – organizações criminosas, grupos terroristas e como no caso trabalhado, nas forças militares – dificultam a implementação de políticas de boa governança (NWOZOR, 2018). O caso do Mali exemplifica o quanto o caminho para a concretização dos objetivos do APRM e da agenda 2063 precisam ser constantemente repensados, ponderando as alternâncias de realidade política, que em Estados formados recentemente se mostram recorrentes.
Logo, a identificação de deficiências, o reforço de boas práticas e o próprio espaço de diálogo estabelecido pelo APRM se apresentam como primordiais para um caminho em que o Mali e outros países, como Sudão e Burkina Faso, retornem para os padrões governamentais estabelecidos como ideais para a União Africana. É a partir da reconstrução da relação de países como o Mali com a UA, e desses com suas nações vizinhas, que se pode pensar no APRM como direcionamento para a conclusão de objetivos da agenda 2063.
O crescimento de movimentos armados expõe uma fragilidade nas metas estabelecidas, que parecem não condizer com uma realidade alcançável a um prazo curto, como aconteceu referente ao objetivo de silenciar as armas. A recorrência desses problemas mancham a imagem da União Africana, que pode aparecer no cenário internacional como ineficaz, devido a constância de notícias negativas ligadas às instabilidades regionais, como o escândalo dos dois golpes em nove meses no Mali.
Entretanto, a rápida coordenação institucional da organização garante a ela dois pontos positivos primordiais: a construção de um debate interno referentes aos problemas e a não tolerância às quebras institucionais. Esses pontos demonstram uma seriedade necessária para uma organização desse porte e viabilizam a compreensão de que apesar dos problemas a UA se propõe a trabalhar e se adaptar a partir das adversidades.
CONCLUSÃO
Mesmo com obstáculos a serem superados, é inegável a importância da União Africana para o movimento de integração, cooperação e desenvolvimento do continente como um todo, promovendo forte alinhamento com os princípios defendidos pelo pan africanismo. As posições assumidas pela organização, reiteram os compromissos com a visão de sociedade estabelecida na Agenda 2063, na qual uma perspectiva futurista coloca os seus 55 membros em posições de governabilidade antagônicas às observadas no Mali e em outros países suspensos nos últimos anos. Com isso, percebe-se que a Agenda elaborada pela organização, ocupa um papel muito importante no norteamento das políticas aplicadas pelos seus países membros, e propõe a ascensão de um continente próspero e unificado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACHIENG, R. M. Can we speak of African agency?: APRM and Africa’s agenda 2063. African Sociological Review / Revue Africaine de Sociologie, v. 18, n. 1, p. 49–64, 27 fev. 2015. Disponível em: https://www.ajol.info/index.php/asr/article/view/113673. Acesso em: 18 maio. 2023.
COMISSÃO DA UNIÃO AFRICANA. Agenda 2063: A África Que Queremos. [s.l.] União Africana, abr. 2015. Disponível em: <https://au.int/sites/default/files/documents/36204-doc-agenda2063_popular_version_po.pdf> . Acesso em: 16 maio. 2023.
SIMMS, K. D. Mali: dos golpes de Estado en un contexto de inseguridad regional. Instituto de relaciones internacionales, 2021. Disponível em:http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/126685. Acesso em:17 maio, 2023.
NWOZOR, A. União africana, construção do Estado e os desafios da fragilidade estatal na África. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais v.7, n.13, p.69-90,2018. Disponível em: http://eprints.lmu.edu.ng/3229/. Acesso: 14 maio 2023.