Imagem por Financial Times.
Na história japonesa, o ano de 2020 não foi marcado apenas pelo adiamento das Olimpíadas e Paraolimpíadas de Tóquio diante da pandemia de Covid-19, mas também pela renúncia, supostamente por questões de saúde, do primeiro-ministro japonês com maior tempo nesse cargo, Shinzō Abe (2012-2020), filiado ao Partido Liberal Democrata (PLD). Sob o lema nacionalista “Japão está de volta”, Abe empenhou-se em desenvolver uma inserção internacional japonesa assertiva que contasse com o robustecimento da economia nacional, desenvolvimento da aliança Japão-EUA e remilitarização japonesa. Iniciando seu mandato em setembro de 2020, Yoshihide Suga (2020-atualmente), também do PLD, encontrou um Japão com relações regionais afetadas pela política externa de Abe. Dessa forma, esse artigo almejou compreender os efeitos de Shinzō Abe e a atuação japonesa nos primeiros meses do governo de Yoshihide Suga dentro das dinâmicas regionais do Nordeste e Sudeste Asiático.
No início do governo de Shinzō Abe, a relação bilateral entre China e Japão se encontrou fragilizada ante intensas contestações territoriais sobre as ilhas Senkaku/Diayou1)Cada nação nomeou esses territórios contestados de acordo com a sua própria nomenclatura nacional. Dessa forma, para o Japão essas ilhas se chamam Senkaku, enquanto que Diayou para a China. durante a gestão do anterior primeiro-ministro japonês Yoshihiko Noda (2011-2012) e do constante expansionismo militar chinês. Por conseguinte, suscitou-se uma desconfiança na segurança nacional da Terra do Sol Nascente2)Termo utilizado para se referir ao Estado japonês. Japão, em japonês, pode ser dito como Nippon, assim como, Nihon, sendo que ambos os nomes significam “origem do sol”. que, em consonância com o interesse de remilitarização por parte de Abe e apesar do apaziguamento diplomático em 2014 entre Tóquio e Pequim, proporcionou o desenvolvimento de novas diretrizes e capacidades nacionais de defesa nipônicas, de 2013 a 2018, motivadas, por exemplo, pela consideração da China como ameaça militar (CARLETTI; DIAS, 2020). Não obstante a essa percepção militar, no âmbito da cooperação econômica, Abe e o presidente chinês Xi Jinping (2013-atualmente) demonstraram, em 2019, interesses mútuos na participação do Japão na iniciativa chinesa multicontinental Belt and Road, assim como concordaram, na reunião do G20 em 2019, em promover diálogos relacionados às áreas, por exemplo, de defesa, diplomacia, turismo, inovação científica e investimento internacional. Em uma conjuntura pré-pandêmica, Abe esperava receber Jinping em 2020 no território nipônico para maiores avanços bilaterais.
Como resultado da animosidade nipônica em relação ao poder bélico chinês, Shinzō Abe elaborou estratégias regionais e visitou, em 2013, todos os membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático3)Organização internacional composta por Brunei, Camboja, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Singapura, Tailândia e Vietnã. (ASEAN). Nesse sentido, conforme Nirmala (2016), visando perpetuar a estabilidade no Mar do Sul da China, contribuir para uma região próspera e pacífica, e intensificar a influência nipônica na região, Abe adotou políticas regionais de: 1) cooperação marítima estratégica, em especial no Mar do Sul da China, com a Indonésia, as Filipinas e o Vietnã; 2) fortalecimento das relações bilaterais por meio de parcerias estratégicas, desde econômicas a securitárias, com Brunei, Malásia, Singapura e Tailândia; 3) e, por fim, de assistência, principalmente econômica, para o desenvolvimento da segurança interna do Camboja, Laos e de Myanmar, sendo que essas nações possuem proximidade política e econômica com a China. Apesar dessas atitudes, vale ressaltar que Abe reconheceu, ao longo de sua gestão, a importância regional da China, não excluindo possibilidades, por exemplo, de cooperações econômicas e desenvolvimento diplomático sino-japonês (FLEMING-FROY, 2019), conforme demonstrado anteriormente, e não sendo de interesse a intensificação da rivalidade China-EUA.
No que concerne à península coreana, destacou-se a baixa capacidade de Abe em inserir-se efetivamente na região. Nessa perspectiva, apesar da momentânea melhora da relação entre Japão e Coreia do Sul em 2015 ter resultado no acordo referente às mulheres de conforto4)Termo destinado às mulheres que foram forçadas pelo Exército Imperial japonês a realizarem atividades sexuais durante a colonização japonesa, em especial entre 1930 e 1945., desde 2012 o revisionismo histórico colonial e nacionalista de Abe contribuiu para críticas do governo sul-coreano da presidenta Park Geun-hye (2013-2017) e desencontros bilaterais diplomáticos e econômicos (MACHADO, 2019). Na gestão do presidente sul-coreano Moon Jae-in (2017-atualmente), a perpetuação de diferentes interpretações históricas, como a anulação do acordo das mulheres de conforto de 2015 e início de processos judiciais contra empresas japonesas que realizaram trabalhos forçados durante a colonização da Coreia (1910-1945), promoveu espaço, em 2019, para restrições econômicas entre ambas as nações e na ameaça sul-coreana em não renovar Acordo Geral de Segurança de Informações Militares (SAKAKI, 2019). Ante uma relação instável entre Tóquio e Seul, aproximações econômicas e geopolíticas sino-sul-coreanas se intensificaram.
Esse contexto aplicado às dinâmicas trilaterais do Nordeste Asiático dificultou a cooperação securitária entre EUA, Japão e Coreia do Sul, haja visto que Park e Moon não consideravam a China uma ameaça militar nas mesmas proporções que seus parceiros, assim como possuía o vizinho chinês como principal parceiro econômico e como importante ator com aproximações com a Coreia do Norte (LEE, 2018). Outrossim, os interesses da relação trilateral China-Japão-Coreia do Sul de, por exemplo, construir confiança entre as partes, promover cooperação securitária regional, em especial no que concerne a Coreia do Norte, e criar um acordo trilateral de livre comércio, foram afetados negativamente pelos embates nipô-sul-coreanos.
A partir de críticas discursivas contra o Japão e do desenvolvimento militar, inclusive com testes balísticos, realizados pelo chefe de governo norte-coreano Kim Jong-un (2011-atualmente), Abe incrementou o aparato militar nipônico ante essa ameaça e uma postura de desconfiança bilateral se intensificou (MACHADO, 2019). Diante disso e do princípio estático de Abe em resgatar japoneses sequestrados por espiões norte-coreanos entre 1977 e 1982, Kim não se interessou em ampliar diálogos com o governo japonês (CARLETTI; DIAS, 2020). No âmbito da cooperação trilateral EUA-Japão-Coreia do Sul, não se encontrou uma plataforma convergente de como agir na questão norte-coreana, considerando que: Moon almejou uma atuação diplomática para conter a política militar de Kim; Trump possuiu uma postura negociadora; enquanto que Abe foi favorável a sanções econômicas e pressões diplomáticas contra a Coreia do Norte (PARK, 2019).
Diante do exposto, percebeu-se que durante os oito anos do governo de Shinzō Abe, o Japão examinou a China, assim como a Coreia do Norte, como ameaças à segurança nacional, retroalimentando o processo de remilitarização nipônica. Em relação ao Estado chinês, embora existissem desconfianças na área de segurança internacional, a Terra do Sol Nascente se demonstrou aberta a cooperações bilaterais como visto na sua participação na Belt and Road Initiative. Ademais, como reflexo do desenvolvimento militar chinês, Abe incrementou suas relações com as nações da ASEAN, possibilitando o fomento da influência regional japonesa, desde políticas de cooperação marítima em áreas estratégicas até auxílios econômicos.
Na contramão desse abarcamento regional com a maior potência do Nordeste Asiático e com a ASEAN, constatou-se o distanciamento nipônico na península coreana, levando em consideração a regressão da relação Tóquio-Seul motivada por perspectivas históricas divergentes, assim como a inaptidão de Abe em adotar uma postura menos impassível em relação a Kim Jong-un na questão das sanções econômicas e sequestros de cidadãos japoneses entre 1977 e 1982. No âmbito das cooperações trilaterais inter e intrarregionais ativas no Nordeste Asiático, o enfraquecimento bilateral nipô-sul-coreano contribuiu para que a atuação conjunta tanto do bloco EUA-Japão-Coreia do Sul, quanto de China-Japão-Coreia do Sul não encontrassem consonância em desafios regionais pertinentes.
Em relação aos primeiros meses do governo do atual primeiro-ministro japonês, as primeiras visitas oficiais e presenciais de Yoshihide Suga foram em parceiros do Sudeste Asiático: Vietnã e Indonésia. Ante os respectivos encontros, notou-se que, para o Japão, ambas as nações asiáticas são consideradas estratégicas multilateralmente para o enfrentamento da capacidade militar chinesa no Mar do Sul da China e para balancear a influência econômica de Pequim na região, assim como Suga almeja que seus parceiros se desenvolvam no Indo-Pacífico. Embora o ambiente de desconfiança militar tenha permanecido, Suga e Xi Jinping concordaram em aprofundar suas relações bilaterais, com exceção de assuntos divergentes como, por exemplo, questionamentos territoriais e a criação de uma ação conjunta convergente frente à Coreia do Norte. Ressalta-se que a visita oficial de Xi Jinping ao Japão, programada para 2020, foi cancelada diante da pandemia do COVID-19. Similarmente como no governo Abe, o Japão de Yoshihide Suga manteve diálogos com a China, importante ator regional, ao mesmo tempo em que almejou desenvolver parcerias para balancear a influência chinesa no entorno regional japonês, mais especificamente no Sudeste Asiático.
Como outro legado de Shinzō Abe para a inserção regional japonesa, Suga perpetuou uma contestação desarmonizada frente à Coreia do Sul. Em outubro de 2020, Suga atestou que o Japão não iria participar no encontro trilateral com a Coreia do Sul e a China, tendo em vista a manutenção dos processos judiciais sul-coreanos sobre os trabalhos forçados da colonização, mesmo que, em uma chamada telefônica com Moon, tenha admitido a necessidade de revigorar a relação Tóquio-Seul. Dessa forma, apesar de Suga ter almejado se encontrar com Kim, sem condições prévias, para tratar da questão da desnuclearização norte-coreana e sequestros de nacionais japoneses, a relação nipo-sul-coreana pode ser um entrave na elaboração de políticas regionais conjuntas em direção à Coreia do Norte. Nesse sentido, com um olhar mais atento à Coreia do Sul, o passado colonial continua a assombrar novos caminhos que a Terra do Sol Nascente poderia visualizar em seu horizonte, além de dificultar a elaboração de uma cooperação regional estável no Nordeste Asiático.
Referências bibliográficas
CARLETTI, Anna; DIAS, Maurício Luiz Borges Ramos. A Política Externa de Shinzō Abe (2012-2019): uma nova orientação japonesa. Cadernos de Relações Internacionais e Defesa, Santana do Livramento, v.2, n.2, p.23-43, 2020. Disponível em: https://periodicos.unipampa.edu.br/index.php/CRID/article/view/103249. Acesso em: 19 set. 2020.
FLEMING-FROY, Tristan. Abe Shinzō on Southeast Asia: Maritime Policy and the “Abe Doctrine”. Dissertação (Mestrado em Estudos Asiáticos) – Universidade de Lund, Centro de Estudos para Leste e Sudeste Asiático, Lund, 2019, 62f.
LEE, Chung Min. Prospects for US-South Korean-Japanese Trilateral Security Cooperation: in an Era of Unprecedented Threats and Evolving Political Forces. Atlantic Council – Scowcroft Center for Strategy and Security, p.1-34, 2018. Disponível em: https://www.atlanticcouncil.org/wp-content/uploads/2018/12/Prospects_for_US-South_Korean-Japanese_Trilateral_Security_Cooperation.pdf. Acesso em: 7 nov. 2020.
MACHADO, Hugo Gabriel de Souza Leão. A política de defesa do Japão entre Yoshida e Abe: a tentativa de revisão da Constituição de 1947 e a norma antimilitarista. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Sócio-Econômico, Florianópolis, 2019. 139 f. Disponível em: http://tede.ufsc.br/teses/PGRI0075-D.pdf. Acesso em: 31 ago. 2020.
NIRMALA, Mahar. Japan´s New ASEAN Diplomacy: Strategic Goals, Patterns, and Potential Limitations under the Abe Administration. International Journal of Social Science and Humanity, v.6, n.12, p.952-957, 2016.
PARK, Cheol Hee. Strategic Estrangement Between South Korea and Japan as a Barrier to Trilateral Cooperation. Scowcroft Center for Strategy and Security, p.1-14, 2019. Disponível em: https://www.atlanticcouncil.org/wp-content/uploads/2019/12/StrategicEstrangement-Report-web.pdf. Acesso em: 19 set. 2020.
SAKAKI, Alexandra. Japan-South Korea Relations – A Downward Spiral: More than “Just” Historical Issues. Stifung Wissenschaft und Politik, Berlim, SWP Comment n.35, p.1-7, 2019. Disponível em: https://www.swpberlin.org/fileadmin/contents/products/comments/2019C35_skk.pdf. Acesso em: 19 set. 2020.
Notas
1. | ↑ | Cada nação nomeou esses territórios contestados de acordo com a sua própria nomenclatura nacional. Dessa forma, para o Japão essas ilhas se chamam Senkaku, enquanto que Diayou para a China. |
2. | ↑ | Termo utilizado para se referir ao Estado japonês. Japão, em japonês, pode ser dito como Nippon, assim como, Nihon, sendo que ambos os nomes significam “origem do sol”. |
3. | ↑ | Organização internacional composta por Brunei, Camboja, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Singapura, Tailândia e Vietnã. |
4. | ↑ | Termo destinado às mulheres que foram forçadas pelo Exército Imperial japonês a realizarem atividades sexuais durante a colonização japonesa, em especial entre 1930 e 1945. |