O entendimento da República Popular da China (RPC) sobre o espaço geográfico que constitui sua política regional foi ampliado gradativamente. Na segunda metade do século XX era entendido como o Leste Asiático, principalmente a Península Coreana. Já a partir dos 1990 foi estendendo-se gradualmente para a Ásia Central, no sentido da Eurásia, e para o Sudeste Asiático, em direção ao Oceano Índico. Houve também avanços qualitativos, como a participação em mecanismos de diálogo e cooperação com a ASEAN e APEC, como na crise asiática de 1997, instaurando uma “política de boa-vizinhança” (BACELLETE, 2014).

Em continuidade à “política de boa-vizinhança” a China estabeleceu com a Rússia a Organização para Cooperação de Xangai (OCX), e assinou um acordo de livre comércio com a ASEAN. Paralelamente, o governo chinês formulou a estratégia “going out”, cujo cerne é estimular o investimento estrangeiro direto[1] de empresas nacionais no exterior. O projeto chinês de Cinturão e Rota da Seda (Belt and Road Iniciative – BRI) lançado pelo governo Xi Jinping insere-se na política regional chinesa e de investimentos, constituindo sua iniciativa mais moderna.

Transformações na política externa chinesa
A ascensão de Deng Xiaoping à liderança do Partido Comunista Chinês em 1978, após a morte de Mao Tsé Tung, engendrou mudanças na política interna e externa. A partir da percepção dos problemas econômicos do país, a política externa foi considerada como ferramenta auxiliar ao desenvolvimento econômico. No campo internacional o governo Deng manteve um baixo perfil de engajamento e evitou disputas com as grandes potências durante a década de 1980, devido a percepção de fraqueza da China no cenário internacional (XING, 2019).
Nos anos 1990 e 2000 o governo chinês manteve, em linhas gerais, as premissas da política externa estabelecidas por Deng. A construção do discurso de “desenvolvimento pacífico” visava assegurar aos países vizinhos que o crescimento econômico chinês era uma oportunidade para a região e não uma ameaça (GLASER, MEDEIROS, 2007). A China buscou aproximação com os demais países asiáticos por meio de mecanismos de diálogo e cooperação, como o Fórum Regional da ASEAN, ASEAN+3 (China, Coreia do Sul e Japão), ASEAN+1 (China) (LI,2009).
A base da política de “desenvolvimento pacífico” é a necessidade de manter seu entorno geográfico estável para focar desenvolvimento econômico doméstico, garantir a estabilidade do fornecimento de recursos energéticos e matérias-primas, e incentivar o comércio com seus vizinhos. O engajamento com os demais países asiáticos também faz parte da estratégia de evitar a formação de uma coalizão anti-China. Pequim solucionou todas as disputas fronteiriças terrestres[2], com exceção da Índia, e através da OCX celebrou acordos políticos e de segurança na Ásia Central. Outro objetivo da aproximação é neutralizar o apoio de países da região à independência de Taiwan (LI, 2009).
O governo Xi Jinping (2012-) está modificando a política externa chinesa, entendida não apenas como auxiliar ao desenvolvimento nacional, mas também como forma de projetar poder no cenário internacional. Pequim vem gradualmente abandonando a estratégia de baixo perfil e assumindo uma política ativa. No nível discursivo a ideia de um “Sonho Chinês” demonstra o objetivo do país em ter um papel maior no cenário internacional. Um exemplo é a postura assertiva nas disputas no Mar do Sul da China e sobre as ilhas Senkaku/Diaoyu com o Japão, e o Cinturão e Rota da Seda (SORENSEN, 2015; POH, LI, 2017).
Iniciativa Cinturão e Rota da Seda
Os primeiros discursos oficiais a mencionar o projeto Cinturão e Rota da Seda (BRI) foram feitos em 2013 no Cazaquistão e em 2014 na Indonésia, ambos realizados por Xi Jinping. O BRI envolve a construção de redes de infraestrutura, como ferrovias, rodovias, oleodutos e gasodutos, sistemas de telecomunicação e portos. O projeto é dividido em duas rotas interconectadas: 1) Um cinturão terrestre, que inclui os países fronteiriços com a China, 2) Uma rota marítima conectando os portos chineses com a costa africana, o Canal de Suez e o Mediterrâneo (XING, 2019).
A Rota da Seda foi uma rede de comércio entre China, partes da África e Europa, no período 206 AEC-208 EC, composto por rotas terrestres e marítimas durante a Dinastia Han (XING, 2019). O seu resgate pelo governo chinês é utilizado como elemento discursivo para legitimar a “comunidade de cooperação regional” associando-a raízes históricas e culturais. A construção desta retórica visa transmitir a noção de ganhos mútuos do desenvolvimento chinês e as consequências positivas da política chinesa para a região (BACELLETE, 2014). Neste sentido, ainda que o elemento central da Cinturão e Rota da Seda seja a construção de infraestrutura, o BRI expandiu seus objetivos, tornando o desenvolvimento o tema dominante (TSENG, LIM, 2019). Neste sentido o BRI possui cinco áreas de cooperação: coordenação política, conexão de infraestrutura, facilitação do comércio, integração financeira e vínculo entre pessoas (HSU, 2020).  O Cinturão e Rota da Seda também expandiu geograficamente com a inclusão da Rota Polar[3], visando conectar a China à Europa pelo Oceano Ártico, e o convite aos países da América Latina para participar do projeto (NOI, 2018).
No nível discursivo as motivações econômicas são colocadas em segundo plano. Entretanto o BRI é voltado para os interesses nacionais e internacionais da China. No nível doméstico uma das razões é dar vazão ao excesso de produção. Diante da crise financeira de 2008 o governo promoveu estímulos fiscais maciços, em especial em obras de infraestrutura, impulsionando a indústria de construção civil e a produção de ferro e aço. Assim o BRI visa redirecionar esta produção para projetos no exterior evitando a crise dessas indústrias (XING, 2019).
O segundo objetivo é promover o uso da moeda chinesa (renminbi) na região por meio de empréstimos através do BRI (YUAN, 2019). Incentivar o uso regional do renminbi reduziria a dependência chinesa do dólar, diminuiria o poder americano na região, e aumentaria a estabilidade financeira da China, já que a taxa de juros norte-americana teria menos impacto na economia nacional. (ZHANG, TAO, 2015). Outra finalidade é garantir o fornecimento estável de recursos naturais e energéticos, visto que o país importa a maior parte do petróleo do Golfo Pérsico, cuja trajetória até a China passa por gargalos, como o Estreito de Malaca, tradicionalmente dominado pela marinha americana (YUAN, 2019).
No plano internacional, o projeto representa a continuidade da importância dos países vizinhos na política externa chinesa. O BRI visa apoiar o desenvolvimento econômico dos países da Ásia Central, através de extensos projetos de infraestrutura, conduzidos em parceria com instituições da OCX, ampliando as funções do grupo para além da segurança, incluindo a dimensão econômica. Em relação ao Sudeste Asiático o objetivo é fortalecer as relações China-ASEAN, além da proposta do estabelecimento de uma “Zona de Livre Comércio Ásia-Pacífico” (YUAN, 2019).
A expansão do BRI foi possível devido à ausência de uma estrutura legal abrangente e de um “tratado do Cinturão e Rota da Seda” que limitem o escopo do projeto. Assim a execução do BRI recorre a acordos bilaterais e multilaterais. Um exemplo é a atuação coordenada na Ásia Central. Por meio de parcerias estratégicas bilaterais e da OCX, a China visa ampliar os fornecedores e as rotas de petróleo, diminuindo a dependência dos países do Oriente Médio (YUAN, 2019).
No Sudeste Asiático os objetivos do BRI são semelhantes a ASEAN, ambos visão promover atividades econômicas transfronteiriças. O projeto chinês é mais um elemento no contexto do aprofundamento das relações China-ASEAN, antecedido pela ampliação do tratado de livre comércio e o acordo sobre investimentos (HSU, 2020). Enquanto instituição a ASEAN compreende que há ganhos e participar do BRI, porém há divergências entre seus membros, abrindo caminho para conflitos internos. O Vietnã e as Filipinas têm demonstrando cautela devido as disputas de territórios marítimos no Mar do Sul da China com Pequim. Já outros membros, como o Camboja e Tailândia, são favoráveis ao aprofundamento das relações com a China (BITAS, 2020).
Os projetos do BRI são financiados por bancos chineses, pelo Fundo do Cinturão e Rota da Seda e pelo Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB). Enquanto o Fundo é composto pelo governo chinês, o AIIB é uma instituição multilateral composta por 78 membros. Apesar da China deter a maior cota do AIIB e possuir poder de veto, as práticas e normas do banco são similares aos demais bancos internacionais de desenvolvimento. O principal ganho dessa instituição é financiar projetos que bilateralmente a China não consegue devido a tensões políticas, como a construção de ferrovias conectando China e Índia através de Myanmar (CALLAGHAN, HUBBARD, 2016).
Em geral os projetos do BRI apresentam duas fases: a escolha do contratante, isto é, a empresa responsável pelo projeto, e a participação na cadeia de suprimentos que servem ao contratante, composta por serviços financeiros e relacionados a engenharia. E apesar do BRI ser um dos principais temas de debate ao estudar a política externa chinesa, a análise de projetos específicos apresenta dificuldades devido à falta de transparência nas informações (GHOSSEIN et. al., 2019)
Entre os acordos analisados por HILLMAN (2018) apresentam uma disparidade entre os projetos financiados pela China (BRI) e por instituições multilaterais. Os contratos assistidos pela RPC são majoritariamente (89%) realizados por empresas chinesas. Enquanto os financiados pelo Banco Asiático de Desenvolvimento e Banco Mundial apresentam maior diversidade 40,8% são realizados por empresas nacionais, 30,2% por estrangeiras e 29% por chinesas. Essa disparidade é resultado de a dificuldade das empresas estrangeiras participarem do BRI. Além da competitividade das multinacionais chinesas, as firmas estrangeiras não tem acesso a informações confiáveis sobre oportunidade de negócios. Porém tal prática não é exclusividade da RPC, os projetos internacionais de infraestrutura tendem a ser opacos para beneficiar empresas domésticas.
Em síntese o BRI visa promover a exportação de construção de infraestrutura fornecendo às empresas chinesas novos contratos. A circulação de capitais oferece mais chances de internacionalização do renminbi. O desenvolvimento de portos aumenta o controle chinês sobre o transporte marítimo e aprimora o poder da marinha da chinesa. Ademais essa iniciativa aumenta a capacidade da RPC de integrar e consolidar sua participação nas principais instituições multilaterais asiáticas, promovendo a possibilidade de formar novos arranjos sob a influência chinesa, acomodando seus interesses (YUAN, 2019).
Referência bibliográfica:
BACELLETE, Ricardo. A Crescente Integração do Leste da Ásia, os Novos Arranjos Institucionais e o Papel da China. In: Boletim de Economia e Política Internacional, n. 18, 2014.
BITAS, Basil C. ASEAN amid China’s Vision of the Belt and Road and the US Strategy for the Indo-Pacific: Building a Strategic Bridge to Two Great Power Initiatives. In: China and the World: Ancient and Modern Silk Road, vol. 2, 2020.
CALLAGHAN, Mike; HUBBARD, Paul. The Asian Infrastructure Investment Bank: Multilateralism on the Silk Road. In: China Economic Journal, 2016.
GHOSSEIN, Tania; HOEKMAN, Bernard; SHINGAL, Anirudh. Public Procurement, Regional Integration and the Belt and Road Initiative. In: European University Studies Working Paper, nº 63, 2019.
GLASER, Bonnie S.; MEDEIROS, Evan S. The Changing Ecology of Foreign Policy-Making in China: The Ascension and Demise of the Theory of “Peaceful Rise”. In: The China Quartely, nº 190, 2007.
HILLMAN, Jonathan E. The Belt and Road’s Barriers to Participation. In: Center for Strategic and International Studies Reconnecting Asia, 2018.
HSU, Locknie. ASEAN and the Belt and Road Initiative: Trust-building in Trade and Investment. In: China and the World: Ancient and Modern Silk Road, Vol. 3, 2020.
LI, Mingjiang. Explaining China’s Proactive Engagement in Asia. In: TANG, Shipping et. al. (ed.). Living with China Regional States and China through Crises and turning points. Londres: Pallgrave Macmillan, 2009.
NOI, Goh Sui. China’s Belt and Road Initiative An Overview of Developments. In: China and the World: Ancient and Modern Silk Road Vol. 1, 2018.
POH, Angela; LI, Mingjiang. A China in Transition: The Rhetoric and Substance of Chinese Foreign Policy under Xi Jinping. In: Asian Security, Vol. 13, nº 2, 2017.
SORENSEN, Camilla T. N. The Significance of Xi Jinping’s “Chinese Dream” for Chinese Foreign Policy: From “Tao Guang Yang Hui” to “Fen Fa You Wei”. In: Journal of China and International Relations, Vol. 3, nº 1, 2015.
TSENG, Katherine Hui-Yi; LIM, Tai-Wai. The Belt and Road Initiative: Breaking Out from the Regionalization–Regionalism Complex and Non-Concentric Neighborhood. In: China and the World: Ancient and Modern Silk Road, Vol. 2, 2019.
XING, Li. Understanding the Multiple Facets of China’s “One Belt One Road” Initiative. In: XING, Li (ed). Mapping China’s ‘One Belt One Road’ Initiative. Londres: Pallgrave Macmillan, 2019.
YUAN, Feng. The One Belt One Road Initiative and China’s Multilayered Multilateralism. XING, Li (ed). Mapping China’s ‘One Belt One Road’ Initiative. Londres: Pallgrave Macmillan, 2019.
ZHANG, Liqing; TAO, Kunyu. The Benefits and Costs of Renminbi Internationalization. In: EICHENGREEN, Barry; KAWAI, Masahiro (Ed.). Renminbi Internationalization Achievements, Prospects, and Challenges. Washington: Brookings Institute Press, 2015.
[1] O investimento estrangeiro direto difere do investimento em portfólio, pois o primeiro é considerado um investimento produtivo, seja pela compra de ativos ou estabelecimento de uma nova empresa, enquanto o segundo é associado a atividades especulativas.
[2] Ainda que a maior parte das disputas de fronteiras terrestres tenham sido solucionadas, permanece o conflito nos territórios marinhos no Mar do Sul da China e com o Japão.
[3]  No início de 2018 a RPC divulgou o Livro Branco para o Ártico, cujo objetivo é garantir a presença da China nesta região visando a exploração econômica através da Rota Polar.

Emerson Junqueira

Escrito por

Emerson Junqueira

Graduado em relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP - UNICAMP - PUC-SP) na linha de pesquisa Economia Política Internacional. Bolsista pela CAPES, orientado pelo Professor Dr. Giuliano Contento de Oliveira e pesquisa as relações comerciais e de investimentos na relação Brasil e China.