Imagem: Bandeira e Cores da União Africana (UA)

Existe alguma relação entre o histórico colonial, a independência dos países africanos e a criação de blocos regionais? Se sim, qual é? São essas as duas perguntas que o presente texto procura responder. De antemão, adiantamos que um debate introdutório sobre o tema já foi proposto por Clarissa Ribeiro em análise aqui no ODR, a qual afirma o seguinte sobre as instituições regionais africanas: “[…] atualmente são também o resultado da tensão entre os processos continentais, os coloniais e os regionais, transformando as conexões entre os países em um emaranhado de organizações em situação de sobreposição.” (RIBEIRO, 2016).

Logo, respondemos o primeiro questionamento de forma assertiva e procuramos em sequência verificar exatamente como se desenvolve esse processo de relacionamento no binômio “colonização-integração”. Historicamente a África foi ocupada por fenícios, gregos, romanos e árabes. Todavia, entre os séculos XV e XXI a ocupação deu-se sobremaneira pelos europeus e por volta dos anos de 1900 cerca de 90% do continente estava sob controle do colonialismo de países como Portugal, Reino Unido, França, Holanda, Bélgica, Espanha, Itália e Alemanha.

Conforme apontam Ali Mazrui e Christophe Wondji (2010), três desdobramentos ocorridos no século passado foram fundamentais para explicar a descolonização africana. Em primeiro lugar, a ocorrência das duas grandes guerras mundiais. Um dos grandes fundamentos para o conflito que durou entre 1914 e 1918 foi a famosa “partilha da África”, na qual os europeus disputaram e colocaram em cheque seus interesses em prol de territórios nas antigas colônias. Tais divergências também fundamentaram o embate dos anos 1939 a 1945, terminando com uma Europa arrasada no pós-guerra. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e a inclusão do Conselho de Tutela em seu organograma podem ser apontados como segundo fator da descolonização apontado pelos autores citados, gerando o princípio de autodeterminação dos povos que foi muito importante para a independência africana. Por fim e de modo mais destacado, o aparecimento da ideia de Pan-Africanismo foi determinante para o processo de descolonização, o qual pode ser entendido como um movimento político e cultural que considera a África, os africanos e descendentes como um único conjunto cujo objetivo é unificar e estimular a solidariedade entre os mesmos (ESEDEBE, 1994 apud BARBOSA, 2016).

O Pan-Africanismo possui três fases: colonial (1935-1957), independentista (1957-1970) e integracionista (1970-atual). A primeira conforma acontecimentos importantes como a Conferência de Bandung (1955) ocorrida na Indonésia em que países africanos e asiáticos objetivaram combater a ótica racista e neocolonialista europeia. Já a segunda engloba a independência de 29 novos países em meio ao estímulo da ideia de “Terceiro Mundo” como projeto político (PRASHAD, 2007), à I Cúpula do Movimento dos Não Alinhados (1961) e à criação do G77 (1964) justamente para favorecer países menos desenvolvidos. Quando chegamos às décadas de 1970 e 1980, a África entrou em um dilema: continuaria a ser subjugada e inferiorizada ou começaria a estimular a integração para libertar-se da ótica pós-colonial? Escolheu o segundo caminho, inaugurando a terceira etapa pan-africana.

Nos anos de 1990 houve um grande incentivo ao desenvolvimento institucional da integração africana notadamente conhecido pelo Tratado de Abuja (1991) na estipulação das Comunidades Econômicas Regionais Africanas (CER) e na criação da Comunidade Econômica Africana (CEA). Nesse período houve, nos dizeres de Jacqueline Haffner e Genivone Viana (2013), eliminação dos últimos resquícios de colonização, fim do regime racista na África do Sul, pacificação de alguns países afetados por guerras civis (Angola e Moçambique) e avanços na democracia e nas novas lideranças regionais, trazendo importantes desdobramentos à integração regional.

Como consequência existiu um estímulo imenso na consecução de blocos regionais africanos, gerando multiplicidade de arranjos integracionistas (HARTMANN, 2016). Hodiernamente, existem aproximadamente 15 blocos regionais no continente, destacando-se os casos da União Africana (UA), Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS), Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), Mercado Comum da África Austral e Oriental (COMESA) e Comunidade da África Oriental (EAC). Conforme exposto, não poderíamos deixar de mencionar o caso da UA criada em 2002, possuindo 55 membros e tendo uma estrutura organizacional focada em matérias de paz, segurança, desenvolvimento e comércio. É a maior instituição regional do continente possuindo estrutura institucional similar à União Europeia (UE) e simbolizando o marco contemporâneo do Pan-Africanismo (FIORAMONTI; MATTHEIS, 2016).

Em definitivo, existe uma clara relação entre a (des)colonização africana e suas instâncias regionais. E qual é? Se pudéssemos resumir tal analogia em uma palavra, ela seria o Pan-Africanismo, propriamente dito. A ideia de “África Unida” passou pelos sistemas de colonização e independência e, agora, representa a integração regional no continente. “A Europa subdesenvolveu a África”, dizia Walter Rodney (1975). Sendo isso verdade, o regionalismo africano representa uma das grandes vias para deixar esse passado para trás e estimular as riquezas naturais e humanas do continente.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Muryatan Santana. Pan-africanismo e relações internacionais: uma herança (quase) esquecida. Carta Internacional, v. 11, n. 1, 2016, pp. 144-162.
FIORAMONTI, Lorenzo; MATTHEIS, Frank. Is Africa really following Europe? An integrated framework for Comparative Regionalism. JCMS, v. 54, n. 3, 2016, pp. 674- 690.
HAFFNER, Jacqueline; VIANA, Genivone Etmy. União Africana (U.A): desafios e oportunidades da integração. Revista Conjuntura Austral, v. 4, n. 20, out/nov 2013, pp. 69-94.
HARTMANN, Christof. Sub-Saharan Africa. In: BÖRZEL, Tanja; RISSE, Thomas. The Oxford Handbook of Comparative Regionalism. Oxford: Oxford University Press, 2016, pp. 271-303.
MAZRUI, Ali; WONDJI, Christophe (Eds). História Geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010.
PRASHAD, Vijay. The Darker Nations. A People’s History of the Third World. Nova Iorque: The New Press, 2007.
RIBEIRO, Clarissa Correa Neto. O Regionalismo Africano: discussões introdutórias. Disponível em: < https://observatorio.repri.org/artigos/o-regionalismo-africano-discussoes-introdutorias/> Acesso em 17 jun. 2018.
RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. Lisboa: Editora Seara Nova, 1975.
 

Escrito por

Cairo Junqueira

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe (DRI/UFS). Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Mestre em Relações Internacionais, com ênfase em Política Internacional e Comparada, pela Universidade de Brasília - Instituto de Relações Internacionais (UnB/IREL). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (UNESP/FCHS). Foi Pesquisador Visitante junto à Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires (UBA) - PPCP/Mercosul/CAPES. Atualmente é membro do Observatório de Regionalismo (ODR) vinculado à Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPPs), além de ser colaborador do Projeto de Extensão "Internacionalização Descentralizada em Foco" (IDeF). Por fim, é coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Política Internacional e Sul-Americana (GP-SUL) com as seguintes linhas de interesse: Instituições Internacionais, Integração Regional e Paradiplomacia.