Contexto eleitoral – acordos e desacordos
Em julho de 2024, as eleições presidenciais na Venezuela atraíram a atenção da comunidade internacional, em meio a denúncias de violações aos direitos humanos, perseguição à oposição e falta de transparência.
Como pano de fundo temos o projeto chavista de outrora, que rendeu sucessivas reeleições a Hugo Chávez, no período de 1999 a 2013, e que se vê agora depauperado por profundas crises econômica, política e social. Os baluartes bolivarianos de equidade, pluralismo e desenvolvimento deram lugar à crise humanitária, imigração em massa e violência política. Parece ser que os principais sustentáculos do governo já não são mais sua pauta igualitária e o apoio social, mas a própria infraestrutura estatal e a chancela das forças armadas do país.
A partir de 2013 o governo central venezuelano foi assumido por Nicolás Maduro que, em 2018, foi reeleito em controverso processo eleitoral. Naquela oportunidade Juan Guaidó, então líder da Assembleia Nacional, se autodeclarou presidente do país em virtude das acusações inidoneidade do pleito eleitoral, tendo, inclusive, recebido reconhecimento de parte da comunidade internacional. Com o passar do tempo e a falta de suporte interno e internacional, a intentona de Guaidó chegou ao fim, com a manutenção de Maduro no poder.
Com chegada de um novo pleito eleitoral, renovaram-se os intentos por eleições livres e justas na Venezuela. Negociações tomaram força com a iniciativa estadunidense. A ideia era flexibilizar as sanções e retomar contato com o país sul-americano, visando, em grande medida, assegurar abastecimento de petróleo aos Estados Unidos, para o controle da pressão inflacionária, de olho nas pretensões eleitorais dos “democratas” estadunidenses.
Com este intuito foi celebrado, com mediação da Noruega, o Acordo para Promoção dos Direitos Políticos e Garantias Eleitorais e para Garantia dos Interesses Vitais da Nação, em 17 de outubro, em Barbados (Acordo de Barbados), entre o governo Maduro, a oposição venezuelana e os Estados Unidos. Na ocasião houve libertação de oposicionistas presos pelo regime venezuelano, bem como o levantamento parcial, pelos Estados Unidos, de sanções impostas àquele país. Também foi assinalada a perspectiva de retirada completa das sanções sob o compromisso de Maduro de realizar eleições livres e abertas, com a presença de observadores internacionais, mirando um horizonte democrático.
Os termos do Acordo de Barbados, entretanto, foram aos poucos sendo mitigados, relativizados e mesmo esquecidos, cedendo lugar à truculência e opacidade na condução das eleições na Venezuela.
O dilema das atas e a chegada do Natal
A proximidade das eleições de 2024 trouxeram também a sensação, cada vez mais clara, de que os termos do Acordo de Barbados não seriam observados pelo governo Maduro. Como bem pontua João Roberto Fava Junior (2024), às vésperas das eleições foram detidos e presos diversos jornalistas e opositores políticos; em junho de 2024, a Suprema Corte venezuelana suspendeu a realização das primárias eleitorais da oposição; dois dos principais líderes da oposicionista, María Corina Machado e Henrique Capriles, foram declarados inelegíveis; inelegibilidade e impedidos de assumir cargos públicos, respectivamente em 2017 e 2023, acusados de fraude; houve ameaças de adiamento do pleito sob a alegação de interferência estrangeira; expulsão da delegação de observação eleitoral enviada pela União Europeia; reiteradas afirmações de que chegou a afirmar que não aceitaria uma derrota nas urnas, avisando que o país poderia passar por uma sangrenta Guerra Civil caso não fosse eleito; e dispensa dos comentários brasileiros sobre a necessidade de lisura e aceite dos resultados das eleições, bem como acusação de fraude no sistema eleitoral brasileiro.
A política do medo se fez presente por meio de fake news, desinformação, direcionamentos de conteúdos, presença massiva em veículos de comunicação, uso da infraestrutura estatal com fins eleitorais, e, no auge, a afirmação de Maduro de que, em caso de derrota nas urnas, haveria um “banho de sangue” no país (G1, 2024). Assim, as eleições ocorreram em um cenário de tensão generalizada.
Pesquisas eleitorais indicaram uma possível vitória do oposicionista e ex-diplomata Edmundo González, que ocupou o lugar de Maria Corina Machado, após a confirmação de sua inelegibilidade (Barrucho, 2024).
Após conturbada votação em 28 de julho de 2024, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão superior em matéria eleitoral, já em 02 de agosto, assinalou a vitória de Maduro, que, contrariando os prognósticos das mencionadas pesquisas, teria obtido pouco mais de 51% dos votos válidos, ante 43% de Gonzáles.
A divulgação do resultado gerou controvérsia na Venezuela e na comunidade internacional. Internamente a oposição pugnou pela apresentação das atas eleitorais (documentos oriundos das sessões de votação) e auditoria completada das eleições. Os oposicionistas alegaram, ainda, que as atas de que dispunhas (cerca de 80% do total de atas) demonstravam ampla vitória de seu candidato. Já na cena internacional, certos países reconheceram de plano a reeleição de Maduro, como a Rússia. Outros países, como Argentina e Uruguai, apontaram à vitória de Gonzáles. Já o grupo encabeçado por Brasil, Colômbia e México adotou uma postura mais comedida e pugnou pela apresentação das atas eleitorais pelos órgãos de estado da Venezuela, para a confirmação dos resultados do pleito.
Em 22 de agosto de 2024, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) da Venezuela, sem a disponibilização completa das tão faladas atas eleitorais e sem a apresentação de uma auditoria do processo, confirmou, por meio de decisão irrecorrível, a vitória de Maduro. A presidente do TSJ, Caryslia Rodríguez, anunciou que “boletins emitidos pelo CNE em relação à eleição presidencial de 2024 estão respaldados pelos atos de escrutínio emitidos por cada uma das máquinas de votação no processo eleitoral e, além disso, essas atas mantém plena coincidência com os registros das bases de dados dos centros nacionais de totalização” (Agencia Brasil, 2024).
Seguiram-se protestos, greves e mobilizações na Venezuela convocados pela oposição. Entretanto, com o passar o tempo a tendência é seu arrefecimento, com o recalque da indignação pública e a certeza da impotência da sociedade ante o regime governante. De se ressaltar, inobstante, que não é desprezível a parcela da população civil venezuelana que segue apoiando o governo Maduro e as bandeiras chavistas.
No intuito de apaziguar a sociedade e esmorecer o entusiasmo oposicionista, Maduro fez chegar o Natal na Venezuela. Em ato inusitado, mas não inédito, o governo anunciou o início dos festejos de natalinos para dia 1º de outubro em 2024, em “agradecimento ao povo venezuelano” pela vitória nas urnas.
Democracia e integração regional
O pleito eleitoral venezuelano de 2024 foi definido como não transparente pelo Centro Carter, instituto estadunidense de observação eleitoral que acompanhou as eleições no país.
Ademais, as decisões do CNE e do TSJ são questionadas sob a alegação de falta de isenção e independência dos órgãos. Cuida-se de mecanismo denominado como court packing, que visa o controle por parte de grupos de poder ou do governo, quanto aos tribunais e órgãos do Judiciário. Isto pode se dar por meio da nomeação de ministros às cortes (em seguimento à lei para recomposição do tribunal, bem como por meio da alteração legislativa ou do alargamento da corte), alteração de seu regimento interno, substituição de juízes, intimidação ou corrupção dos membros do Judiciário. O court packing rompe com o princípio da separação de poderes e suprime o sistema de freios e contrapesos, fundamental à ao regime democrático.
No mais, os protestos e manifestações contrarias ao governo ou aos resultados eleitorais vem sendo violentamente combatidas na Venezuela. A este respeito, a comunidade internacional vem se pronunciando no sentido de não reconhecer o êxito de Maduro e condenar as reiteradas violações aos direitos humanos no país. Vale mencionar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e sua Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE) condenam práticas de violência institucional no contexto do processo eleitoral venezuelano, assinalando que “o regime no poder está semeando o terror como ferramenta para silenciar a cidadania e perpetuar o regime autoritário oficialista no poder”. A CIDH recomendou, entre outras medidas, que a Venezuela cesse as práticas violadoras de direitos humanos, se abstenha do uso arbitrário da força, as suspenda as estratégias de perseguição digital a opositores, restabeleça a ordem democrática e o Estado de direito, bem como garanta o acesso à informação pública eleitoral mediante a publicação de todas as atas de votação, permitindo seu escrutínio independente, em respeito à vontade popular (OAS 2024).
Assim, parecem erodir as bases do princípio democrático na Venezuela. E enquanto o impasse político perdura, o governo Maduro segue exercendo o poder de fato no país e o debate internacional quanto à questão continua. Para o que nos cumpre no presente artigo, cabe observar mais de perto a questão da integração regional em vista do cenário traçado.
A Venezuela, membro do Mercosul desde 2012, teve sua participação no bloco suspensa em 2017, por meio de decisão dos Estados Partes, em aplicação do Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, de 1998, que pugna pela plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento do processo de integração (MERCOSUL, 2024). A tendencia é que a suspensão se mantenha até a alteração do cenário sociopolítico na Venezuela. O bloco se vê alijado de importante membro; entretanto, mantém seu compromisso com a formação de um ambiente democrático entre seus pares.
Outrossim, o pleito venezuelano para ingressar nos BRICS foi rejeitado na cúpula do grupo realizada em outubro de 2024, em Kazan (Rússia). Muito embora o grupo esteja em franca expansão e a presidência rotativa do Brasil se aproxime (terá início em 1º de janeiro de 2025), compreendeu-se não ser o momento mais oportuno para contar com o aporte venezuelano no grupo. Os BRICS formalizaram, outrossim, o convite para ingresso de 13 países no grupo, quais sejam Turquia, Indonésia, Argélia, Belarus, Cuba, Bolívia, Malásia, Uzbequistão, Cazaquistão, Tailândia, Vietnã, Nigéria e Uganda (BRICS, 2024).
No âmbito das relações bilaterais, países como Brasil e Colômbia optaram por não romper relações diplomáticas com Caracas. A questão é bastante delicada, pois envolve extensas fronteiras, fluxos migratórios, comunidades originárias que se espalham para além dos limites territoriais dos países, a grave crise humanitária na Venezuela, bem como a busca por uma solução que passe pela atuação dos atores da região.
Muito embora não reconheça a vitória de Maduro, o Brasil tende a buscar um processo de diálogo entre as forças políticas venezuelanas com vistas à suspensão de todas as sanções, ao reestabelecimento da democracia e à defesa dos direitos humanos (MRE, 2023).
Nota-se a complexidade da situação, que envolve imigração, povos e comunidades transfronteiriços, questões territoriais, recursos naturais de importância geoestratégica (a este respeito vale lembrar que a Venezuela possui a maior reserva de petróleo conhecida no mundo), relevância demográfica e integração regional. É contraproducente qualquer simplificação maniqueísta sobre o tema. Por certo que a democracia venezuelana segue em acelerada erosão, enquanto a crise humanitária no país também se agrava. As situações políticas de fato devem ser compreendidas e o diálogo ainda se afigura como a alternativa mais viável no plano internacional na busca por uma solução para a questão política e, sobretudo, para a garantia de direitos fundamentais à população.
Referências
Agência Brasil. Supremo da Venezuela ratifica reeleição de Maduro em decisão final. Disponível em agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2024-08/supremo-da-venezuela-ratifica-reeleicao-de-maduro-em-decisao-final. Acesso em 25 out 2024.
Barrucho, L. (2024) “Eleição na Venezuela: Maduro corre risco de perder o poder?”. BBC News Brasil, notícia [on-line], 24 jul. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cmm2r2gv1pjo. Acesso 22 out 2024.
BRICS, 2024. Kazan Declaration Adopted at BRICS Summit. Disponível em infobrics.org/post/42563/. Acesso em 24 out 2024.
FAVA JUNIOR, João Roberto, 2023. Crise na Venezuela, Eleições e o Futuro da Democracia Regional. Observatório de Regionalismo. Disponível em observatorio.repri.org/2024/07/30/crise-na-venezuela-eleicoes-e-o-futuro-da-democracia-regional/. Acesso em 21 out 2024.
G1, 2024.Nicolás Maduro diz que pode haver ‘banho de sangue’ e ‘guerra civil’ na Venezuela caso ele não vença as eleições. Disponível em g1.globo.com/mundo/noticia/2024/07/18/nicolas-maduro-diz-que-pode-haver-banho-de-sangue-e-guerra-civil-na-venezuela-caos-ele-nao-venca-as-eleicoes.ghtml. Acesso em 21 out 2024.
MERCOSUL, 2017. Decisão sobre a suspensão da Venezuela no MERCOSUL. Disponível em
https://www.mercosur.int/pt-br/decisao-sobre-a-suspensao-da-republica-bolivariana-da-venezuela-no-mercosul/. Aceso em 10 out 2024.
MRE, 2023. Acordos de Barbados sobre o diálogo político na Venezuela. Disponível em www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/acordos-de-barbados-sobre-o-dialogo-politico-na-venezuela. Acesso em 22 out 2024.
OAS. CIDH e RELE condenam práticas de terrorismo de Estado na Venezuela. Disponível em www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2024/184.asp. Acesso em 22 out 2024.