Javier Milei posa ao lado de Santiago Abascal, líder do partido espanhol Vox. Fonte da Imagem: Instagram de Javier Milei
O presidente argentino Javier Milei (2023-atualmente) nunca escondeu suas influências e inspirações intelectuais. Se frente à história mais longínqua da república platense, Milei reivindica a figuras intelectuais como a de Juan Bautista Alberdi, expoente representante do liberalismo latino-americano, e políticas como o ex-presidente Julio Argentino Roca (1880-1886; 1898-1904), maior representante da chamada “generación de 80” [1] e que salientou as bases econômico-políticas em que viveu a Argentina ao menos até a chegada de Hipólito Yrigoyen (1916-1920; 1928-1930) ao poder. Ante a história mais recente, é conhecida a admiração que o atual presidente tem pelo mandatário que marcou um antes e um depois na Argentina pós-redemocratização, Carlos Saúl Menem (1989-1999). Como disse o próprio Milei após a mediática inauguração de um busto ao ex-presidente – curiosamente – peronista na Casa Rosada, Menem “inspirou aos que crêem na liberdade a seguir seu exemplo”.
A admiração que Javier Milei nutre por Menem não é somente retórica, mas também ideológica. Como já reflete a citação de Milei, Menem, a despeito de seu pertencimento ao Partido Justicialista – também conhecido como peronista, por seu fundador Juán Domingo Perón (1945-1956) -, foi um destacado expoente do chamado neoliberalismo da década de 1990. Milei, afirma ser não somente um adepto do liberalismo econômico, mas também um “libertário” e – de modo mais radical ainda – um “anarco-capitalista”.
Não obstante, são semelhantes as políticas liberais levadas a cabo por Menem e as executadas atualmente pelo presidente Javier Milei? Ademais, podem levar as políticas de Milei aos mesmos resultados?
Se observamos o eixo política econômica – política externa, o presidente argentino atual visa repetir a “dobradinha” de Menem, calcada na instauração de um conjunto de políticas econômicas radicalmente liberais e uma estratégia de inserção internacional cujo cerne é o estabelecimento de uma relação privilegiada com os Estados Unidos. Apesar do contexto econômico global no qual opera o governo de Milei ser muito distinto em relação ao dos governos Menem, o problema econômico principal que aflige a Argentina atual é o mesmo que enfrentava a Argentina que tinha o justicialista no poder: a inflação.
Em 1989, o governo do radical Raúl Alfonsín (1983-1989) [2] teve de renunciar seis meses antes do fim do mandato face ao fracasso dos sucessivos ajustes representados pelos planos Austral (1986) e Primavera (1988). Eleito a partir das contraditórias promessas de “revolução produtiva” e “salariaço” (Rapoport, 2003) e contrariando às bases históricas do peronismo e do partido justicialista, Menem implementou um radical ajuste econômico que teve como norte a tríade dogmática do Consenso de Washington – desregulação, desburocratização e desestatização (Williamson, 1990). Desde o início do seu mandato, o peronista promoveu medidas de flexibilização de direitos laborais e um amplo ajuste fiscal, que promoveu privatizações, redução do dispêndio público e ao final teve um alto custo social (Rapoport, 2003).
O “cavalo de pau” dado pela política econômica de Menem não estaria completo sem a sua medida central: a Lei de Convertibilidade, que criou o peso conversível, equivalente a um dólar e cuja impressão estava proporcionalmente restrita a entrada da divisa norte-americana na economia argentina (Ayerbe, 1998). Pese a sua efetividade no combate inflacionário, a convertibilidade marcou um antes e um depois na política argentina, terminando na desastrosa crise de 2001 [3]. De modo similar, Milei quer promover um ajuste liberal de tom igualmente radical para frear novamente a hiperinflação, algo que teve parcial êxito nos últimos meses, com a inflação caindo dos 25% mensais a casa dos 8%. De fato, além das medidas de desestatização e de desregulação promovidas pelo que ficou conhecido como “lei ônibus” – mas cujo nome real é “Lei de Bases e Pontos para a Liberdade dos Argentinos” –, a principal promessa de campanha de Milei é a dolarização da economia argentina – em paralelismo à semi-dolarização promovida pelo regime de convertibilidade.
Em termos de política exterior, Milei, como fez Menem há mais de 30 anos atrás, é partidário do estabelecimento de relações especiais com Washington. Menem, foi protagonista da política em relação aos Estados Unidos, que, segundo o infame termo usado por seu chanceler Guido di Tella (1991-1999), ficou conhecida como “relações carnais”, pois consistia em um alinhamento político quase automático para a obtenção de vantagens econômicas – como o investimento estrangeiro direto e, sobretudo, o apoio nos organismos multilaterais de crédito, necessários para o êxito do Plano de Convertibilidade. As “relações carnais” com os Estados Unidos, além de virem acompanhadas das políticas liberalizantes defendidas pelo pólo hegemônico central, era igualmente derivado das reflexões de um grupo de acadêmicos, cujo maior expoente foi Carlos Escudé e sua teoria do realismo periférico.
Escudé (1995) defendia uma teoria normativa da política exterior, denominada “realismo periférico”, que visava fornecer bases para uma política que encaixasse com as necessidades e demandas de um Estado periférico, isto é, sem muita relevância na disputa de poder internacional. Para ele, a boa política externa para esse tipo de estado era a que, a partir de uma ética cidadã-cêntrica, visasse sempre o crescimento econômico e, portanto, conseguisse benefícios econômicos materiais para melhorar a condição de vida de seus cidadãos. Para tal, um Estado tem sempre de avaliar os custos relativos de um enfrentamento com o pólo central de poder e assim evitá-lo sempre que possível. Em outras palavras, trata-se de aliar-se politicamente ao centro de poder e a seus valores dominantes para atingir benefícios palpáveis à sua população.
O realismo periférico de Menem acarretou de fato o estabelecimento de laços especiais com o Washington, representado pelo envio de tropas à Guerra do Golfo em 1991, o apoio às intervenções militares para pôr outra vez Jean Baptiste Aristide (1991-1996) no poder do Haiti, as votações quase idênticas aos estadunidenses na Organização das Nações Unidas (ONU) (Corigliano, 2003) e o constante anseio para entrar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que culminou com a aquisição argentina do status de aliado extra-OTAN em 1997. Ademais, o giro da política externa de Menem também se refletia no objetivo de fazer parte do chamado “primeiro mundo” ocidental, buscando ingressar em organismos internacionais que o representavam, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), bem como manter boas relações com potenciais europeias (Bernal-Meza, 2002). Este último objetivo derivou sobretudo na normalização de relações com o Reino-Unido após a Guerra das Malvinas (1982), com os Acordos de Madri (1991-1992), e na busca da firma de um acordo de livre-comércio com a União Europeia, que investiu pesado no país durante a onda de privatizações e com quem a Argentina manteve uma importante corrente de comércio durante os anos 1990. Em termos regionais, o realismo periférico foi o motor do fortalecimento das relações com o Chile e com Brasil – com este último sobretudo via Mercosul –, o que gerou benefícios materiais palpáveis aos argentinos na forma de constantes e importantes superávits comerciais (Busso et al, 2016).
Contudo, as “relações carnais” de Milei com os Estados Unidos, ainda que acompanhadas de umas medidas liberais de política econômica similares às de Menem, derivam de uma base muito distinta e não tão pragmática (em termos de benefícios materiais) como a de Menem, tendo resultados divergentes. Milei justifica seus laços com os Estados Unidos – como os vínculos tecidos com aliados dos norte-americanos, como Israel – pela intenção de redirecionar o eixo da política exterior argentina em direção ao “mundo livre”. Este, que carece de definição clara, é certamente avesso ao que presidente argentino define como “comunismo”, levando-o não a uma relação instrumental com potências econômicas ocidentais e sócios regionais fundamentais, mas sim a uma relação conflitiva com qualquer país em que governe um partido ideologicamente afiliado à esquerda. De fato, até mesmo com os Estados Unidos, de quem o argentino afirma ser aliado incondicional não importando quem esteja no poder, é clara sua preferência pela ala do partido republicado representada por Donald Trump (2016-2020). Ademais, é igualmente dentro desse marco que se insere os constantes embates com sócios regionais, como Brasil, Chile e Colômbia.
Mais recentemente, insere-se neste marco também o conflito diplomático com a Espanha, que levou ao governo de Pedro Sánchez (2019-atualmente) a retirar sua embaixadora na Argentina. Tal episódio, iniciado após Milei afirmar que a esposa de Sánchez estava envolvida em um escândalo de corrupção, mostra bem a falta de pragmatismo e excesso de ideologização da política externa argentina, o que pode levar não à aquisição de benefícios econômicos – como visava o realismo periférico de Escudé –, mas sim à inviabilização de lograr os mesmos. Menem, durante seus dois mandatos, teve estrategicamente boas relações com a Espanha, fosse ela governada pelo socialista Felipe González (1982-1995) ou pelo conservador José María Aznar (1995-2004). Tal relação próxima com o país ibérico trouxe um aumento expressivo do investimento estrangeiro direto espanhol à Argentina e serviu como porta para abrir as negociações com a União Europeia (UE) – posto o fato que a Espanha é um dos grandes motores para a associação com a América Latina de modo geral dentro da organização (Arana, 2017). Queimar pontes com a Espanha, ainda uma das maiores interessadas no acordo de associação União Européia-Mercosul, é andar na contramão do pragmatismo, contraditoriamente indo em contra de um instrumento que poderia servir muito ao modelo de inserção comercial liberal visado por Milei, baseado no crescimento via aumento da exportação de matérias primas – vantagem comparativa do país frente o bloco europeu.
Deste modo, é possível dizer que, pese a similaridade das diretrizes do programa econômico implementado por Menem e por Milei, a estratégia de inserção externa de seus governos é díspar. Em outras palavras, ainda que economicamente o liberalismo de ambos se manifeste de modo similar, a racionalidade por detrás da política externa de Milei e Menem é muito distinta, podendo trazer resultados igualmente diversos ao atual presidente. Enquanto a política externa de Menem estava desenhada para obter vantagens econômicas ao aliar-se politicamente às potências ocidentais e aos sócios regionais de maior peso, a de Milei é muito mais ideológica e ao final em realidade deslocam possibilidades para obtenção de ganhos econômico-materiais – como fica claro em especial no caso do conflito com a Espanha. Até mesmo as relações próximas aos Estados Unidos, estão condicionadas à ideologia de seu governo. Ao fim e ao cabo, a política exterior de Milei parece desenhada somente para agradar aos setores nacionais – e internacionais – filiados à direita populista mundial (Mudde e Rovira Kaltwasser, 2018), de modo a servir somente a seus objetivos pessoais de colocar-se como um líder de tal movimento global.
Notas
[1] A geração de 1880 era um grupo de políticos, intelectuais e estancieiros que implantou as bases político-econômicas da elite agro-exportadora, período conhecido como República Conservadora (1880-1916) na Argentina. Politicamente, tratava-se da manutenção do Partido Autonomista Nacional (PAN) no poder através de eleições fraudulentas, com o controle político centrado em Buenos Aires sobre as províncias. O projeto econômico da geração de 80 era o de inserir a economia argentina no mundo através da produção de matérias-primas, sobretudo, de cereais e carne. Em termos de política externa, os governos do PAN teceram um laço especial da Argentina com o Reino-Unido.
[2] O adjetivo radical se refere a membro do partido União Cívica Radical (UCR).
[3] A crise de 2001 na Argentina foi de caráter econômico e social. Por um lado, a Argentina sofria com com a constantes déficits na balança comercial e na balança de pagamentos, o que a afetava particularmente dentro do sistema de convertibilidade, no qual a impressão de pesos estava sujeita ao ingresso de dólares no mercado argentino. Ademais, com o mercado de capitais aberto desde 1991 (Rapoport, 2003), as fugas de capitais afetavam particularmente o país neste sistema, dificultando em especial o pagamento da dívida externa. Com o objetivo de garantir dólares para evitar o default (pedido de moratória), Domingo Cavallo, ministro da economia do governo de Fernando De La Rúa (1999-2001) e anteriormente idealizador do plano de Convertibilidade, leva a cabo o chamado “corralito” – ou o confisco forzado de dólares de contas privadas, no qual pessoas físicas ficaram restritas a sacar somente até US$200 ou pesos por semana. A medida desatou em protestos e em uma crise social generalizada, que culminou na renúncia de De La Rúa em 21 de dezembro de 2001.
Referencias bibliográficas
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ARANA, Arantza Gomez. The European Union’s policy towards Mercosur: Responsive not strategic. Manchester University Press: Manchester, 2017
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