Em meio à visita de Estado à Argentina, o presidente brasileiro Lula da Silva participou da VII Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) em 24 de janeiro de 2023, em Buenos Aires, Argentina. Fonte da imagem: Ricardo Stuckert/PR, disponível em https://www.flickr.com/photos/palaciodoplanalto/52646348527/, acesso em 17 mai. 2024, licença CC-BY-2.0.

Texto originalmente publicado pelo Centro de Estudios en Ciudadanía, Estado y Asuntos Políticos (CEAP) em 4 de abril de 2024.

Extensa agenda internacional de viagens. Diplomacia presidencial intensa. Isso se aplica tanto ao período 2003-2010 quando Luís Inácio Lula da Silva foi Presidente de Brasil, quanto para o pouco mais de um ano do terceiro mandato presidencial de Lula, iniciado em 1.º de janeiro de 2023.

Palavras como “recuperação“, “reverter”, “reconstrução”, “voltar”, “reinserir”, “retorno”, “retomar” estão presentes em muitas análises da atual política externa brasileira e transmitem uma noção de regresso a uma “normalidade”. Nessa linha foi o título “No hay dos sin tres: Desafíos y oportunidades para una nueva fase de disputa hegemónica en la región: el retorno de Lula” — dossiê publicado pelo CEAP com análises da conjuntura para o terceiro mandato que então começava. Passado o tempo e seguindo a ideia do dossiê, a proposta para o texto aqui é analisar a política externa nesses catorze meses iniciais.

As viagens presidenciais de Lula foram intensas nesse período, mas sem as mesmas contestações superficiais quanto à quantidade, tal como foi no período anterior — era comum o bordão jocoso “olha Lula indo, olha Lula vindo” que apontava ao céu em alusão ao avião presidencial. Mais que parte do perfil individual de Lula, as viagens estiveram motivadas pela constatação de que o Brasil perdeu sua credibilidade internacional. Esta preocupação esteve presente até mesmo no programa eleitoral de 2022 de Jair Bolsonaro, ainda que não assumisse a responsabilidade disso (Erthal; Pessoa, 2022).

Ao total, foram 15 viagens e 24 países visitados em 2023 (Poder360, 2023). Ainda que seja a mesma quantidade de viagens de 2003 e menos países que os 27 desse ano, foram muito mais reuniões multilaterais. Esse tipo de evento implica apresentar-se diante de mais países. Além disso, está vista a aposta em regiões e temas em detrimento de relações bilaterais específicas. Essas atuações (e escolhas) devem ser lidas sem perder de vista o contexto.

A noção de volta a uma “normalidade” não está desconexa da experiência histórica quando compreendemos a política externa brasileira das últimas décadas a partir das categorias de “autonomia pela distância”, “autonomia pela participação” e “autonomia pela diversificação” (Vigevanni; Cepaluni, 2007). Nesse sentido, a busca por algum dos caminhos da autonomia política foi uma da série de rupturas produzidas pelo governo Bolsonaro na política externa. Mais que subordinação à potência hegemônica, produziu movimentos de auto-isolamento geopolítico em seu entorno regional (Vazquez, 2023).

Percebemos melhor a distinção ou ruptura ao atentar às contestações ao interior do atual governo. Para isso, vale lembrar que ele resulta de uma coalizão heterogênea formada nas eleições e depois ampliada mais ainda — e de maneira pouco estável — para conseguir as aprovações pretendidas no Congresso Nacional. Por sinal, esta é justamente uma das “montanhas” a serem “movidas” pela “fé” do atual governo (Cetraro, 2023).

As contestações às viagens ocorreram não a elas em si, mas no sentido do custo-benefício, se certos discursos, esforços e posicionamentos retornavam com algum benefício ao país de forma direta e no curto prazo. Isso ilustra talvez as matizes entre “autonomia pela participação” e “autonomia pela diversificação” ou mesmo do “pêndulo latino-americano” entre a inserção autônoma e a subordinada (Paikin, 2022). Assim foi com os esforços para promover a paz e solução negociada de conflitos, ao ter se apresentado a contribuir para a mediação da Guerra Russo-Ucraniana e, em menor medida, da Guerra Israel-Hamas. Tais contestações apontam a ausência de “resultados concretos” ou “avanços mais significativos” (Estadão, 2023a). Ou ainda: a suposição da intromissão pelo Brasil nesses temas (Deutsche Welle, 2023).

Já o tema ambiental, da sustentabilidade, é visto como uma oportunidade em que o Brasil tem força internacionalmente para influir, trazer resultados (Deutsche Welle, 2023; Estadão, 2023a). Assim, Lula participou das Cúpulas do Clima de 2022 (ainda como presidente eleito) e de 2023 — além de ter apresentado Belém como sede para 2025 —; reativou e conseguiu novos aportes ao Fundo Amazônia; e convocou a Cúpula Amazônica convidando países megadiversos participantes da Cúpula das Três Bacias (Indonésia, República Democrática do Congo e República de Congo).

No entanto, neste tema também há disputa no interior da coalizão heterogênea e fora dela. A disputa ocorre com o setor do agronegócio (incluindo o energético), em função de seu poderio político e econômico, do atual vínculo com a extrema direita e do padrão histórico extrativista do país. Assim, também avança(ra)m no governo a proposta de prospecção/exploração petrolífera no Delta do rio Amazonas e o ingresso no fórum OPEP+.

À esquerda política, os movimentos demandam fortalecer, enfatizar, reconstruir a integração regional (PCdoB, 2023). Essa agenda foi definida como prioritária por Lula, o qual fez da Argentina e Uruguai seu primeiro e segundo destino no exterior. A percepção da equipe de Lula é que o auto-isolamento geopolítico durante o governo anterior permitiu a transformação da América do Sul em palco da disputa hegemônica entre Estados Unidos, Rússia e China (Vazquez, 2023).

Dificultando atender aquelas demandas, somam-se outras percepções do cenário atual: a politização da migração venezuelana (Caldas, 2023), a “geopolitização e securitização de praticamente todos os temas da agenda internacional” (Batista; Pereira, 2023, p. 8, tradução própria) e a alimentação da polarização por Jair Bolsonaro para manter sua base social de apoio (Goldstein, 2023). Assim, Venezuela, Nicarágua e Cuba (assim como Israel) têm sido mobilizadas nas disputas, inclusive como parte de motivações para pedidos assinados por parlamentares para abertura de processos de impedimento de mandato contra Lula (Estadão, 2023b; O Globo, 2024). Desse modo, a integração regional sofre contestação vinda mais da extrema direita (com seu fantasma do comunismo).

As tais demandas por integração regional, a despeito da maior quantidade de presidentes sul-americanos de esquerda ou progressistas — se compararmos ao início do século —, esbarra nas mencionadas (geo)politização e polarização. Por isso que, na América do Sul depois da eleição de Lula, “a coloração se parece, a vocação também”, porém as aspirações dos líderes políticos sul-americanos estão moderadas por limitadas margens de atuação (Toer, 2023, p. 3, tradução própria).

No âmbito do Mercosul, ante as ameaças uruguaias de abandonar as negociações comerciais externas conjuntas, o atual governo apostou no acordo do Mercosul com a União Europeia (UE) e com outras contrapartes. Com Singapura um tratado de livre comércio foi assinado, mas o protecionismo agrícola da UE deteve os avanços pretendidos. Por outro lado, os comunicados conjuntos presidenciais do Mercosul após as cúpulas voltaram a ser assinados por todos os Estados-Parte ao fim da Presidência Pro Tempore conduzida pelo Brasil no segundo semestre de 2023. Este em específico se concentrou em assuntos econômicos: tarifa externa comum, regime de origem, comércio eletrônico, agenda digital, agendas externas, questões setoriais. Além disso, o congresso brasileiro aprovou o ingresso boliviano ao Mercosul, travado somente neste parlamento há vários anos.

O Brasil reingressou na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e, junto à Argentina e Colômbia, na União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Também convocou a Reunião de Presidentes dos Países da América do Sul, na qual propôs 10 pontos específicos/concretos para discussão, o que incluiu empregar recursos do banco brasileiro de desenvolvimento BNDES na integração regional, criar uma moeda para o comércio intrarregional (desdolarizá-lo), atualizar a carteira de projetos de integração física, reativar o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde e constituir um mercado sul-americano de energia (Brasil, 2023).

A diplomacia brasileira conseguiu reunir todos os presidentes (com exceção de Dina Boluarte, do Peru, por impedimentos legais), apesar dos conflitos diplomáticos em torno de Pedro Castillo, das contestações a Nicolás Maduro, dos atritos entre Luis Lacalle Pou e Alberto Fernández, do conflito territorial por Essequibo. Ao final, a UNASUL não foi citada no Consenso de Brasilia, o documento resultante da reunião. Porém, houve o estabelecimento de um grupo de contato para manter o diálogo e cooperação regional que haviam sido interrompidos (Agência Brasil, 2023). De fato, até agora, o Grupo de Contato do Consenso de Brasilia substituiu a UNASUL, com encontros tratando de saúde, financiamento do desenvolvimento, infraestrutura econômica, mudanças climáticas, defesa, desenvolvimento social, rechaço à violência no Equador em janeiro de 2024 e elaboração do Mapa do Caminho para a Integração da América do Sul (Brasil, 2024).

A proposição do entorno de Lula acerca de uma moeda comum sul-americana — o SUR, em caráter distinto do euro (Ruiz, 2023) — foi uma dos pontos propostas por Lula na Reunião de 2023. Seria inclusive de interesse da Argentina, ainda mais por seu problema atual com divisas, junto com a volta dos financiamentos pelo BNDES de serviços brasileiros de infraestrutura econômica na Argentina. Não obstante, as discussões sobre a desdolarização do comercio regional têm ganhado mais avanços no interior do BRICS. Por sinal, o atual presidente argentino Javier Milei decidiu não aceitar a Argentina ingressar no BRICS e sustenta sua proposta de dolarização da economia argentina, o que afasta ou esfria as relações brasilo-argentinas.

Portanto, a ideia de que o cenário regional pode ser lido “como uma partida de revanche, em que todos já se conhecem” (Toer, 2023, p. 4, tradução própria) é bastante válida. Boa parte das disputas aqui analisadas não são novas, o que faz a moderação o tom principal, em um cenário que também conta com (geo)politização e dificuldades diante da coalizão heterogênea e da extrema direita articulada globalmente. Para os próximos anos, soma-se que o próprio Lula considerou que conseguiu recuperar o prestigio internacional do Brasil e já declarou que 2024 será um ano de viagens internas. Então, a política externa brasileira daqui em diante será marcada por menos turnês presidenciais, e poderão destacar-se outras formas de lidar com os desafios e os resultados que não chegam na velocidade demandada.

Referências

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