Imagem: João Risi/Presidência da República.

Imagem: João Risi/Presidência da República.

As Cúpulas Sociais do Mercosul foram criadas em 2006 e institucionalizadas em 2012, dentro de um contexto no qual a agenda social e participativa foi valorizada no chamado “Regionalismo pós-hegemônico” (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012). Esses espaços se constituíram enquanto importantes ferramentas na relação entre os Estados e a sociedade civil no que diz respeito ao trato das questões que permeiam o processo de integração regional. 

Apesar de sua importância ao permitir um amplo engajamento da sociedade civil e o fortalecimento da participação social no âmbito do Mercosul, as Cúpulas Sociais foram descontinuadas a partir de 2016, momento no qual as relações regionais são enfraquecidas devido à emergência de um novo contexto político na região, notadamente a crise política no Brasil que culminou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff no ano subsequente e a ascensão ao poder de Michel Temer, bem como a ascensão do então presidente argentino Mauricio Macri em 2015. 

Tais fatores, associados com uma nova conjuntura social e econômica na região, permitiram uma reorientação política na condução do processo regional no Mercosul marcadamente à direita do espectro político. Esse momento é marcado por grande fluidez, baixo comprometimento com o regionalismo, volatilidade e pouca profundidade institucional, conceito designado pela literatura especializada como “Regionalismo Líquido” (MARIANO et al. 2021). 

Tendo em vista este cenário de retração das relações regionais e de crescentes divergências na condução do processo de integração regional, a agenda participativa sofreu com desmontes e paralisação, evidenciado, por exemplo, com a inatividade da Unidade de Participação Social (UPS), órgão central e essencial para a administração e gestão da participação social durante o contexto do Regionalismo pós-hegemônico.

Não obstante, em momentos mais recentes, nota-se um “reavivamento” da agenda participativa dentro do contexto do Mercosul, temática que é retomada principalmente a partir de 2023 (BAPTISTA; GOMIDE JUNIOR, 2023). Um fator determinante que contribuiu para a reemergência desta agenda no âmbito do Mercosul foi o início do terceiro mandato do governo brasileiro de Luiz Inácio Lula da Silva, que historicamente tem buscado promover um maior contato entre o Estado e a sociedade civil no âmbito da política doméstica e da política externa, associado com o último ano do mandato do ex-presidente argentino Alberto Fernández, que buscaram uma reaproximação e revalorização das relações bilaterais e regionais.

Durante a primeira reunião da presidência pro tempore argentina de 2023, em decisão conjunta dos Estados-membros do Mercosul, o Foro de Consulta e Concertação Política (FCCP) decidiu retomar a realização das Cúpulas Sociais, incorporando-as em seu programa de trabalho 2023-2024, conforme enunciado em uma das atas do FCCP: “Retomar la realización de la Cumbre Social, en formato virtual, durante la PPTA para volver a hacer del Mercosur un encuentro de sociedades”. Ainda nessa mesma reunião ficou decidido que o FCCP trabalharia em conjunto com a Secretaria e a Unidade de Comunicação e Informação do Mercosul para atualizar o registro das organizações e movimentos sociais do Mercosul, substituindo o papel desempenhado pela UPS (MERCOSUR, 2023a).

A retomada das Cúpulas Sociais durante a presidência rotativa argentina ocorreu no dia primeiro de junho de 2023, em formato virtual, que contou com a participação de diversos atores sociais e nos quais foram debatidas temáticas relacionadas à integração regional, como desenvolvimento sustentável e segurança alimentar; trabalho e economia social e solidária e direitos humanos. O então Ministro das Relações Exteriores da Argentina Santiago Cafiero destacou que o encontro realizado durante a Cúpula Social significava uma retomada da interação entre os povos da região para o fortalecimento da participação social enquanto componente indispensável da integração regional (ARGENTINA, 2023).

Não foram encontradas informações a respeito da quantidade de atores sociais que participaram, bem como das demandas levantadas  durante os debates que seriam sintetizados por meio de um documento final que seria entregue para os representantes governamentais, o que demonstra a dificuldade de acesso às informações, elemento essencial para conferir eficácia e transparência para o processo de integração regional. A única informação encontrada em relação ao encaminhamento da Cúpula Social está contido no comunicado conjunto dos Presidentes dos Estados-membros e Associados do Mercosul celebrado durante a 62ª Cúpula, no qual os atores governamentais expressam seu compromisso em continuar com a realização das mesmas, tendo em vista sua importância como espaço de expressão para os movimentos sociais, organizações não-governamentais e comunidades organizadas (MERCOSUR, 2023b).

Para além deste encontro, uma outra Cúpula Social foi realizada, dessa vez presencialmente, em dezembro de 2023 na cidade do Rio de Janeiro. O evento contou com a participação de mais de 300 representantes da sociedade civil da região e entre as principais temáticas debatidas estavam o enfrentamento à fome e à pobreza, cidadania e direitos humanos, desenvolvimento e meio ambiente. Na ocasião, o governo brasileiro chegou a criar uma página web para divulgar as informações e notícias referentes ao encontro (BRASIL, 2023a).

Para Gisela Padovan, Secretária de América Latina e Caribe do Ministério das Relações Exteriores: “O Mercosul precisa da sociedade, não pode ser um processo fechado e conduzido apenas pelo governo”. Já Mauro Vieira, Ministro das Relações Exteriores, em um discurso proferido na ocasião, enfatizou que “essa edição da Cúpula Social marcará a retomada de uma participação social mais estruturada e regular nas atividades do Mercosul. Esperamos que as Presidências Pro Tempore do Paraguai e Uruguai possam seguir apoiando esse esforço” (BRASIL, 2023b).

Após a realização dos debates, os atores sociais participantes da Cúpula divulgaram uma declaração conjunta no qual demandavam, entre outras coisas, a paralisação das negociações do Acordo Mercosul-União Europeia e o fortalecimento do compromisso do Mercosul com a questão democrática. Em relação especificamente à participação social, convém destacar a demanda em torno da necessidade de avaliar e avançar na construção de processos de participação social no Mercosul, garantindo a sua institucionalização e financiamento adequado para assegurar uma participação efetiva e mais plural.

Desta forma, a partir do exposto, podemos perceber que a participação social voltou novamente para a agenda do Mercosul a partir de 2023, sendo que dois fatores contribuíram para a reemergência desta temática: a nova assunção de Lula da Silva ao cargo de Chefe do Executivo no Brasil, em consonância com o último ano do mandato presidencial de Alberto Fernández na Argentina, que propiciaram um “clima” político favorável para que as Cúpulas Sociais pudessem ser retomadas.

Nota-se que o restabelecimento deste canal de participação social foi possível, principalmente, devido à convergência e vontade política dos dois principais países pertencentes ao bloco, que foram decisivos para trazer o retorno de tal temática durante as suas respectivas presidências rotativas. Atualmente (abril de 2024), o país que ocupa a Presidência pro tempore do Mercosul é o Paraguai. Realizamos uma pesquisa no website do Mercosul e no website do Ministério das Relações Exteriores do referido país buscando encontrar algum posicionamento ou menção da questão da participação social e pudemos perceber que não há até o momento nenhuma movimentação política para a continuidade deste canal de participação social. Encontramos um documento onde o país expressa que entre uma de suas prioridades durante o exercício da presidência rotativa é o de “fortalecimento do processo de integração regional”, mas não há nenhuma menção explícita quanto à questão participativa (PARAGUAY, 2024). 

Apesar do compromisso formalizado entre os atores governamentais de que as Cúpulas Sociais teriam continuidade, a tradição interpresidencialista (MALAMUD, 2003) na condução dos negócios regionais é um obstáculo que se constitui para a manutenção desse canal de interação entre o Estado e a sociedade civil no trato das questões regionais, algo visível na fala do Ministro das Relações Exteriores brasileiro Mauro Vieira, quando enuncia que espera que tal iniciativa pudesse ser mantida na agenda pelo Paraguai e Uruguai.

Se em 2023 a convergência política entre os dois principais países do bloco permitiram que a agenda participativa pudesse ser retomada no âmbito do Mercosul, o cenário agora é bem mais desafiador diante da pouca afinidade política entre o presidente brasileiro e o novo presidente argentino Javier Milei, um libertário de extrema-direita que não tem o Mercosul como uma de suas prioridades. Para além de Milei, há pouca e/ou nenhuma convergência política entre os posicionamentos de Lula e dos outros dois Estados-membros do Mercosul: o Paraguai de Santiago Peña e o Uruguai de Luis Lacalle Pou, que estão situados mais à direita do espectro político.

Dessa forma, a partir do que foi discutido, podemos observar que, apesar do protagonismo brasileiro em impulsionar a agenda participativa no Mercosul em anos recentes, não há garantias de que as Cúpulas Sociais possam ter a sua continuidade garantida, tendo em vista a pouca convergência política existente entre os Presidentes. Mais uma vez, a agenda participativa, apesar de sua importância ao permitir que diversos atores sociais possam expressar suas demandas e reivindicações em relação ao processo de integração regional, fica totalmente dependente das vontades políticas circunstanciais. 

A participação da sociedade civil no âmbito do Mercosul se constitui como essencial para a democratização do processo de integração, bem como contribui para um maior enraizamento nas sociedades dos Estados-membros, elemento essencial para que o processo possa ganhar maior visibilidade e legitimidade política. A realização de agendas pontuais sem a alteração de elementos estruturais do processo impedem com que a agenda participativa possa permanecer minimamente coesa ao longo da trajetória histórica.

Referências bibliográficas

ARGENTINA. Cumbre Social del Mercosur: Cafiero destacó la participación de la sociedad civil “como componente indispensable de la integración regional”, 2023. Disponível em: <https://www.cancilleria.gob.ar/es/actualidad/noticias/cumbre-social-del-mercosur-cafiero-destaco-la-participacion-de-la-sociedad-civil>. Acesso em: 20 mar. 2024.

BAPTISTA, J. V. da M.; GOMIDE JUNIOR, N. From Post-Hegemonic Regionalism to the Liquid: An Assessment of Social Participation in Mercosur. Pensamiento Propio, vol. 28, n. 57, p. 14-40, 2023.

BRASIL. Cúpula Social do Mercosul é retomada após sete anos, 2023a. Disponível em: <https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2023/dezembro/cupula-social-do-mercosul-e-retomada-apos-sete-anos>. Acesso em: 20 mar. 2024.

BRASIL. Discurso do Ministro Mauro Vieira na sessão ampliada com Estados Associados do Mercosul, 2023b. Disponível em: <https://www.gov.br/mre/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/discursos-artigos-e-entrevistas/ministro-das-relacoes-exteriores/discursos-mre/mauro-vieira/discurso-do-ministro-mauro-vieira-na-sessao-ampliada-com-estados-associados-do-mercosul>. Acesso em: 20 mar. 2024.

MALAMUD, A. Presidentialism and Mercosur: A Hidden Cause for a Successful Experience. In: LAURSEN, F. (Org.). Comparative Regional Integration: Theoretical Perspectives. Aldershot: Ashgate, 2003.

MARIANO, K. L. P.; BRESSAN, R. N.; LUCIANO, B. T.. Liquid Regionalism: a typology for regionalism in the Americas. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 64, n.2, p. 1-19, 2021.

MERCOSUR. Cumbre Social Mercosur, 2023a. Disponível em: <https://www.mercosur.int/cumbre-social-mercosur-2023>. Acesso em: 20 mar. 2024.

MERCOSUR. Comunicado Conjunto de los Presidentes de los Estados Partes del Mercosur y Estados Asociados, 2023b. Disponível em: <https://www.mercosur.int/wp-content/uploads/2023/07/Comunicado-Conjunto-Presidentes-EP-EA-ES.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2024.

PARAGUAY. ​Cancilleres abordan prioridades de Paraguay en el ejercicio de la presidencia pro tempore del Mercosur, 2024. Disponível em: <https://www.mre.gov.py/index.php/noticias-de-embajadas-y-consulados/cancilleres-del-mercosur-y-bolivia-abordan-situacion-actual-y-perspectivas-futuro-del-bloque>. Acesso em: 20 mar. 2024.

RIGGIROZZI, P.; TUSSIE, D. The Rise of Post-hegemonic Regionalism: the Case of Latin America. London: Springer, 2012.

Escrito por

Natanael Gomide Junior

Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP/FCL/Ar), com financiamento pelo CNPq. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), na linha de pesquisa de Política Externa e Instituições Internacionais. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com ênfase em Ciência Política e Sociologia. Tem experiência e interesse nas áreas de Ciência Política e Relações Internacionais, principalmente nos seguintes temas: Organizações Internacionais, Regionalismo, Mercosul, ASEAN e Participação Social.