Fonte da Imagem (Instagram do Ministério de Planejamento)

Durante a Cúpula do Mercosul, com reuniões da Cúpula Social, Conselho Mercado Comum e Cúpula de Líderes entre 4 a 7 de dezembro de 2023, sob a presidência pró-tempore brasileira, o governo brasileiro, em conjunto com a Ministra de Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, anunciou o lançamento de uma “nova” iniciativa de integração para a América do Sul. Baseado em cinco (5) rotas de integração: (1) Rota da Ilha das Guianas; (2) Rota Multimodal Manta-Manaus; (3) Rota do Quadrante Rondon; (4) Rota de Capricórnio e (5) Rota Porto Alegre-Coquimbo, a iniciativa brasileira “tem o papel duplo de incentivar e reforçar o comércio do Brasil com os países da América do Sul e reduzir o tempo e o custo do transporte de mercadorias entre o Brasil e seus vizinhos e a Ásia”.

Imagem 1 – Rotas de Integração da América do Sul

Fonte: Revista “O Empreiteiro”*
As rotas estão divididas em cinco eixos: Ilha das Guianas (Norte do Brasil com Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Venezuela); Multimodal Manta-Manaus (Norte do Brasil com Colômbia, Equador e Peru); Quadrante Rondon (Acre, Mato Grosso, Rondônia, Bolívia e Peru); Capricórnio (Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, Argentina, Chile e Paraguai); e Porto-Alegre-Coquimbo (Rio Grande do Sul, Argentina, Chile e Uruguai).

Denominado “Rotas de Integração”, o projeto prevê um investimento inicial de R$ 50 bilhões (US$ 10 bilhões) a serem aportados por diferentes instituições através da criação de um Fundo para a integração com gestão para a avaliação dos projetos, administração e liberação dos recursos para os governos nacionais e locais sul-americanos. De maneira detalhada, apontou-se que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) contribuirá com US$ 3,4 bilhões, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)[1] e o Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe (CAF) aportaram US$ 3 bilhões cada e o Banco de Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA), US$ 600 milhões. Além de contribuir com esses valores, as instituições multilaterais aportam ao projeto apoio técnico e recursos para a elaboração e avaliação dos projetos de infraestrutura.

Dentro do território brasileiro foram mapeadas 124 obras que, quando concluídas, se interligarão às cinco rotas de integração estabelecidas. De acordo com a Ministra Simone Tebet, tais obras já estão previstas no orçamento via Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e devem ser concluídas até 2027 dentro do planejamento do Plano PluriAnual (PPA) do Estado.

As diferentes notícias e declarações governamentais apontam que, além de buscar se reaproximar da América do Sul, reativando uma agenda de integração estagnada desde 2018, o projeto tem como foco a concretização de uma melhor infraestrutura física para interconectar o país à Ásia-Pacífico.

Essa agenda, apesar de ser apresentada como nova, foi lançada pelo governo brasileiro sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso (FHC) no ano de 2000, durante a I Reunião de Chefes de Estado da América do Sul. Através do Comunicado de Brasília – 2000, os países sul-americanos instituíram a criação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). Com o objetivo de conformar eixos para a integração e desenvolvimento econômico regional, o investimento em infraestrutura física seria um instrumento para a criação de um espaço econômico-comercial regional ampliado (BRASIL, 2000; NEVES, 2019).

Apesar de ter sido um projeto conjunto entre os países sul-americanos, a IIRSA foi estruturada a partir de estratégias de desenvolvimento nacional do Brasil, já presentes em seus PPAs de 1996-1999 (“Brasil em Ação”) e 2003-2007 (“Avança Brasil”) (MELO; NEVES, 2023). Os eixos de integração, por sua vez, foram estabelecidos a partir da ideia de Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (ENID), cuja estratégia nacional brasileira previa o desenvolvimento de eixos de integração e desenvolvimento para a inserção da economia brasileira de maneira mais competitiva na economia internacional (HONÓRIO, 2013; ACSELRAD, 2010). Pensados pelo engenheiro civil Eliézer Batista, os eixos – ou cinturões de desenvolvimento – direcionavam o mercado brasileiro à Ásia-Pacífico, através dos chamados “corredores de exportação”.

Imagem 2 – Eixos de integração IIRSA

Fonte: Agenda de Projetos Prioritários –  IIRSA.

Se comparamos os objetivos da IIRSA e as propostas da “nova” rota de integração para a América do Sul, notam-se as semelhanças não somente em relação aos eixos priorizados, mas também à liderança e projeção do Brasil no impulsionamento do desenvolvimento de infraestrutura no continente e o direcionamento do mercado e produção nacional à Ásia-Pacífico. Essas observações, por sua vez, levantam preocupações. 

Em seus dez anos de existência, a IIRSA, apesar de poucas obras concretizadas, teve entre suas principais conquistas: a reunião dos doze países sul-americanos para pensar a integração da infraestrutura de maneira conjunta e continuada; o estabelecimento de uma agenda de integração comum; a identificação de mais de 500 obras de infraestrutura; além de ter proporcionado um espaço de diálogo e consenso não somente entre os países, mas também deles com os principais mecanismos de financiamento da região: BID, CAF e FONPLATA.

Com as mudanças governamentais em meados dos anos 2000 na América do Sul, a IIRSA foi incorporada ao Conselho de Infraestrutura e Planejamento Sul-Americano (COSIPLAN) da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) em 2011, propondo superar a lógica do regionalismo aberto de construir corredores de exportação sem deixar de lado os avanços alcançados até então pela iniciativa, incorporando-a, junto da importante participação dos bancos multilaterais, como Foro Técnico do novo Conselho (NEVES, 2019).

O avanço do COSIPLAN ao longo dos anos 2010, até sua paralisação em 2018, foi positiva não somente em número de obras concretizadas (120 obras) mas também para a atração de investimentos aos países da região (mais de US$ 16 bilhões investidos). Entretanto, entre as principais críticas em relação às limitações enfrentadas pelo COSIPLAN se dirigem à manutenção da lógica comercial das obras de infraestrutura executadas, estas, que reproduzem a lógica de uma produção nacional e regional dirigida ao exterior, reforçando o processo de reprimarização das economias latino e sul-americanas (BRAGATTI; SOUZA, 2016).

Além disso, devido à baixa institucionalização da Unasul, quando do advento da crise do regionalismo no continente, a fragmentação e desmantelamento do bloco resultou na descontinuidade de um espaço comum para se pensar o desenvolvimento da infraestrutura de maneira conjunta e agregada. Entretanto, apesar desse cenário de descrédito e crise, diversas obras da carteira IIRSA/COSIPLAN foram continuadas a partir de uma dinâmica de investimento nacional, regional e extrarregional (NEVES, 2023). 

No âmbito nacional, para além de obras que foram continuadas devido aos interesses dos atores nacionais de cada país sul-americano, destacaram-se a projeção e andamento das obras do Corredor Bioceânico entre Brasil, Paraguai, Argentina e Chile. No âmbito regional, o núcleo de instituições técnicas já presentes desde a criação da IIRSA – no Comitê Coordenador Técnico (CCT) -, BID, CAF e FONPLATA, criaram a Aliança para a Integração e Desenvolvimento da América Latina e o Caribe (ILAT). 

Buscando dar continuidade à agenda de infraestrutura regional, as instituições multilaterais retomaram parte da agenda de integração da infraestrutura regional, financiando projetos através de um novo espaço no qual tivessem maior autonomia, para não depender tanto dos países e, consequentemente, diminuir os riscos atrelados às tensões e desacordos entre eles, como ocorrido na Unasul (NEVES, 2023).

Por fim, no âmbito extrarregional, muitas das obras da Carteira de Projetos IIRSA/COSIPLAN tiveram continuidade devido ao investimento e realização de infraestrutura por parte de atores e investimentos extrarregionais, em especial do governo Chinês. 

Esse cenário, apesar de demonstrar continuidades em diferentes níveis (nacional, regional e extrarregional), destaca a fragmentação dos esforços regionais no qual a infraestrutura passou a responder a diferentes interesses, não necessariamente dirigidos à uma maior integração e desenvolvimento regional pensado a partir da América do Sul.

A retomada das rotas de integração pelo governo brasileiro, apesar de importante – tendo na infraestrutura uma das chaves para o desenvolvimento econômico regional (MELO; NEVES, 2023) – se estruturam em um cenário de descontinuidade dos espaços de diálogo e cooperação regional. A Unasul, apesar de estar em processo de retomada, ainda não conta com todos seus membros fundadores [2]. Ao mesmo tempo, as rotas de integração retomam um esforço dirigido ao desenvolvimento de um mercado exportador para fora do continente, dirigido à Ásia-Pacífico.

A infraestrutura como meio para a integração, na ausência de espaços regionais fortalecidos e contínuos, parece deixar “[…] de corroborar com os projetos e objetivos de integração existentes, para impulsionar a construção de infraestruturas que visam ao acesso e barateamento dos custos de transporte das matérias primas da região a esses países” (NEVES, 2023, p. 317).

As novas/velhas rotas de integração, por sua vez, têm a oportunidade de retomar os espaços de diálogo e cooperação regionais, porém sem cometer os mesmos erros vistos na trajetória da IIRSA/COSIPLAN. Além de ser necessário prezar por maior transparência nos dados e informações sobre as obras planejadas e executadas pelos países sul-americanos, é imprescindível que os projetos de infraestrutura reflitam um objetivo conjunto dos países para seus desenvolvimentos e/ou demandas econômico-comerciais e, principalmente, sócio-ambientais.

A instabilidade e polarização da região continua crescente, como destacado nas eleições argentinas e subida ao poder do governo de extrema-direita de Javier Milei. Por sua vez, a infraestrutura como instrumento para a integração e desenvolvimento não deve ser de partidos políticos, mas sim de e para a sociedade sul-americana. Pensar as “novas” rotas de integração regional, implica pensarmos também os objetivos compartilhados entre os países da região na construção de tais obras, mas, mais importante, refletir sobre os impactos e oportunidades dessas obras para a sociedade e meio-ambiente regional, de maneira clara e compartilhada, construída em conjunto.

 

Notas

[1] É importante destacar que esta é a primeira vez, desde 2016, que o BNDES financia obras de infraestrutura após os escândalos de corrupção, lavagem de dinheiro e sobrepreço de obras desveladas com a Operação Lava Jato.

[2] Permanecem/regressaram como membros da Unasul ao final de 2023: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, continuando sem regressar ao bloco Chile, Paraguai e Uruguai. 

Referências Bibliográficas

ACSELRAD, H. Eixos de Articulação Territorial e Sustentabilidade do Desenvolvimento no Brasil. Projeto Brasil Sustentável e Democrático: Fase. Série Cadernos Temáticos, n. 10, 2010.

BRAGATTI, M. C.; SOUZA, N. A. UNASUL: Iniciativa de Integração Regional? Instituição  de Regionalismo pós-liberal ou contrahegemônico? Concertación ou Coordenação de Interesses Comuns? (Os debates conceituais sobre um processo em construção). Conjuntura Austral, Porto Alegre, v.7, n. 35, p.43-51, abr./mai. 2016.

BRASIL. Comunicado de Brasília. 2000. Documentos IIRSA. Disponível em: http://www.iirsa.org/admin_iirsa_web/Uploads/Documents/comunicado_brasilia_esp.pdf. Acesso em 01 dez. 2018.

HONÓRIO, K. dos S. 2013. 135 f. O significado da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA) no regionalismo sul-americano (2000-2012): um estudo sobre a iniciativa e a participação do Brasil. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Programa San Tiago Dantas de Pós-graduação em Relações Internacionais, São Paulo, 2013.

MELO; Marta Cerqueira; NEVES, Bárbara Carvalho. Infraestructura, desarrollo económico e integración regional en América Latina y el Caribe: ¿una cuestión estratégica en el siglo XXI?. Pensamiento Propio, CRIES, n. 57, v. 28, enero-julio, 2023.

NEVES, B. C. Política externa brasileira e a integração da infraestrutura na América do Sul: uma análise a partir dos mecanismos IIRSA/COSIPLAN. Master’s Thesis—São Paulo: Relações Internacionais (UNESP – UNICAMP – PUC-SP) – FFC, 2019.

NEVES, B. C. Regionalismo e integração da infraestrutura na América do Sul: uma análise diante da crise regional (2014-2022). Tese de Doutorado – São Paulo: Relações Internacionais (UNESP – UNICAMP – PUC-SP) – FFC, 2023.

Escrito por

Bárbara Carvalho Neves

Doutora e Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais - San Tiago Dantas. Bolsista FAPESP (20/04348-5).
Colaboradora do Laboratório de Novas Tecnologias de Pesquisa em Relações Internacionais (LANTRI), do Grupo Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo (REPRI) e do Grupo de Reflexión sobre Desarrollo y Integración en América Latina y Europa (GRIDALE).
Áreas de Interesse: Política Externa Brasileira, Regionalismo Sul-Americano, Instituições Regionais, Integração em Infraestrutura, IIRSA e COSIPLAN.
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