Base Brown, administrada pela Argentina na Antártida

Fonte: https://cancilleria.gob.ar/es/iniciativas/dna/antartida-argentina/bases/brown

Como se dá a cooperação regional fora da região? Os países que compartilham a presença em um bloco regional podem realizar ações de coordenação de sua ação externa. Isso pode produzir benefícios para tais atores, bem como projetar uma imagem de unidade daquela região frente ao sistema internacional.

Neste artigo, olhamos para a Antártida e como ocorre a cooperação entre Argentina e Chile. Os dois países austrais têm reinvindicações sobre o território do continente, bem como possuem instalações permanentes ali. Ambos estão presentes com a lógica de domínio territorial, considerando como extensão de sua área continental, há mais tempo do que muitos outros países que focaram na governança compartilhada, através de acordos internacionais. Tanto Buenos Aires quanto Santiago reclamam porções da Antártida como seu território, o que causa uma sobreposição de reclamos já que abrangem praticamente a mesma área. Não são os únicos países latino-americanos que possuem operações na Antártida, mas são os dois que clamam por soberania territorial[1]. Isso se vê também nas projeções cartográficas, pois usualmente Argentina e Chile mostram o território antártico nos seus mapas, como parte de seus Estados.

A Antártida é importante ambos os países também por questões econômicas. Entre outros exemplos, a manutenção das condições ambientais contribui para manter a normalidade dos fluxos migratórios de peixes – o que é especialmente relevante considerando a indústria de pescado nos dois países. Um eventual desequilíbrio na Antártida afetaria as condições climáticas e ambientais nos territórios austrais desses países. Ademais, há estimativas de grandes recursos minerais e de petróleo no subsolo antártico, ainda que a exploração esteja restrita atualmente.

Historicamente, houve conflitos entre os dois Estados latino-americanos pela delimitação de fronteiras no extremo sul do continente. O período mais acentuado de contestação foi a disputa em torno do Canal Beagle, com risco bélico em 1980[2]. Apesar das tensões entre os vizinhos que mostram uma lógica de competição ao longo da História, a coexistência no mesmo território da Antártida mostra como o Direito Internacional pode regular e estimular a cooperação internacional. Principalmente a partir dos processos de redemocratização da América Latina, houve redução das disputas entre ambos, o que incrementou o respeito aos tratados internacionais, permitindo ações conjuntas como as vistas neste texto.

Considerando que nenhum Estado exerce a soberania sobre o território antártico, trata-se de um exemplo de região que é inteiramente regulada por acordos multilaterais, sob gestão compartilhada. Isso cria um caso excepcional que não é usualmente estudado sob o viés do Regionalismo. Ali há diferenças em relação ao Ártico, principalmente no aspecto de que na região setentrional há populações residindo há milhares de anos, o que mantém um contato mais frequente com os países que rodeiam o Polo Norte (e que conformam o Conselho Ártico).

Primeiramente, convém lembrar que o Tratado da Antártida – firmado em 1959 – regulamenta internacionalmente as atividades, dando ênfase à execução de pesquisas científicas, bem como proibindo atividades militares ofensivas, ações nucleares e novas reinvindicações territoriais, ao mesmo tempo em que protege o delicado meio ambiente naquela parte do globo. O Direito Internacional estabelece que a Antártida seja utilizada apenas para propósitos pacíficos, o que inclui operações científicas e proteção ambiental – controlando o uso de armamentos. Trata-se de um caso de sucesso formalizado durante as disputas da Guerra Fria sobre uma área que não era regularmente ocupada – algo que não foi alcançado com as expedições à Lua, por exemplo.

No entanto, a atual regulamentação tem vigência até 2048. Após esse período, é possível que muitos países estejam prontos para começar explorações de recursos ali – a construção de novas bases mais sofisticadas pode ser um sinal nessa direção. O acordo pode ser negociado para que seja prorrogado, mas também pode ser negociado para que seu conteúdo e limitações sejam flexibilizados. No contexto de agravamento da crise climática previsto para as próximas décadas, o Direito pode ser usado para a continuidade da preservação daquele ecossistema.

Podemos olhar para a Antártida como uma região, no sentido de que é um continente no qual vários Estados estão presentes, ainda que não seja parte de sua integridade territorial. Para a cooperação internacional nos temas vigentes, existe uma instituição internacional que opera ao redor do Sistema do Tratado da Antártica (STA). Para o cumprimento do Tratado – com um sistema jurídico que abrange outras convenções e protocolo –, existe uma Secretaria sediada em Buenos Aires. Contudo, é uma organização que possui desafios, na medida em que tem poucas capacidades para efetivar os objetivos do Tratado. A governança se mantém principalmente nos programas científicos de cada país na região, que possuem interesses específicos.

No início, doze países assinaram o Tratado e, atualmente, 55 são signatários do principal documento que organiza o futuro do continente[3]. Entre estes, há sete que reivindicam soberania sobre o território: Argentina, Austrália, Chile, França, Nova Zelândia, Noruega e Reino Unido. Os dois latino-americanos contam com órgãos dedicados para atuar nos temas da Antártida: Instituto Antártico Chileno e Instituto Antártico Argentino. Ambos estão vinculados ao Ministério das Relações Exteriores de cada país, ou seja, trata-se de questões internas, mas também envolve a política externa para a região da Antártida.

Como exemplo das atividades desenvolvidas na Antártida, está a obtenção de dados a respeito das mudanças climáticas, que afetam regiões distante a milhares de quilômetros[4]. Com a América do Sul, a questão geográfica é ainda mais relacionada na medida em que, há milhões de anos, formavam um único espaço. Sendo assim, as investigações conduzidas permitem entender a evolução do clima, da fauna e da flora ao longo do tempo.

A cooperação entre os países que atuam na Antártida tanto se dá no nível do intercâmbio de conhecimentos, mas também em temas logísticos. Usualmente, cinco cidades são consideradas polos de conexão entre a Antártida e o restante do globo: Christchurch (Nova Zelândia), Hobart (Austrália), Cidade do Cabo (África do Sul), Ushuaia (Argentina) e Punta Arenas (Chile). Desse modo, duas localidades na Patagônia austral servem de base para as estações estabelecidas no Polo Sul, o que oferece uma vantagem geográfica para o relacionamento da América do Sul com as atividades antárticas. De fato, o próprio Instituto Antártico Chileno está sediado em Punta Arenas, capital da região de Magallanes.

Após o fim das ditaduras militares, Argentina e Chile impulsionaram a cooperação política para a Antártida. Na iniciativa mais recente, apoiada pelos presidentes Gabriel Boric e Alberto Fernández, ambos os países integram a Comissão Binacional em Matéria Antártica[5], que possui origens em outro espaço de diálogo criado em 2012. Trata-se uma associação estratégica com articulação para ações a respeito de conservação de recursos marinhos, cooperação científica e logística. Uma das ações que são conduzidas de forma conjunta são inspeções a bases de outros países na Antártida.

Ademais, a Patrulha Antártica Naval Combinada é um resultado da coordenação entre as Marinhas da Argentina e do Chile[6]. Desde a década de 1990, essa operação conjunta busca proteger as águas na região, evitando acidentes de contaminação ambiental e acidentes que colocam em risco a vida de tripulantes – em especial no clima hostil daquele continente. Isso é particularmente importante durante o verão, já que há um aumento do número de pessoas e barcos que circulam por ali, inclusive com fins turísticos.

A cooperação bilateral tem desdobramentos para a região latino-americana como o auxílio oferecido ao Brasil quando houve o incêndio da Estação Comandante Ferraz, em 2012. Os ocupantes foram transferidos para a base chilena e depois resgatados pela Força Aérea Argentina[7]. Posteriormente, para recomposição do programa antártico brasileiro, a Argentina também auxiliou com navio para transporte logístico, que permitiu a instalação de módulos de pesquisa[8].

Os dois países têm forte presença ali, simbolizada pelo expressivo número de bases, tanto permanentes quanto temporárias[9]. A Argentina administra 13 bases, enquanto o Chile possui 9 bases – o único outro país que se compara na quantidade é a Rússia, com 9 estações. No entanto, convém sinalizar que alguns países, como os Estados Unidos, têm número menor de estações, mas que são maiores e mais complexas.

Pela localização geográfica, o relacionamento bilateral entre Argentina e Chile também é conveniente também para discutir a questão das Ilhas Malvinas[10], garantindo apoio ao processo de descolonização e reconhecimento da soberania argentina nesse espaço subantártico. A esse respeito, a reivindicação do Reino Unido sobre a Antártica se sobrepõe ao território reivindicado pela Argentina, precisamente pela disputa em torno das Malvinas.

Diante do que foi apresentado, entende-se que a lógica conflitiva, ainda durante a Guerra Fria, pode ser substituída pela cooperação e regulamentada no nível de acordos internacionais, como foi visto nas disputas territoriais sobre a Antártida e que hoje está restrito às operações pacíficas. Trata-se de um continente inteiro que opera sob mecanismos de governança compartilhada, aceitando restrições mútuas nos exercícios naquela região. Ademais, nota-se uma cooperação especial entre os dois países latino-americanos analisados aqui, pois coordenam suas ações apesar de reclamarem o mesmo território.


 

O autor agradece os comentários de Beatriz Lalli que contribuíram para a versão final deste texto.

[1] https://repositoriosdigitales.mincyt.gob.ar/vufind/Record/CONICETDig_70b6db35c2a3355199c9a45009fa3f8b

[2] https://app.uff.br/riuff/handle/1/24867

[3] https://www.marinha.mil.br/secirm/pt-br/proantar/tratado-antartica

[4] https://new.express.adobe.com/webpage/RXN9x6qPeMszJ

[5] https://cancilleria.gob.ar/es/actualidad/noticias/argentina-y-chile-avanzan-en-la-coordinacion-antartica

[6] https://www.armada.cl/antartica-chilena/xxii-version-de-la-patrulla-antartica-naval-combinada

[7] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/02/120225_incendio_antartida_rn

[8] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2013/02/05/interna_mundo,347782/um-ano-apos-incendio-em-estacao-brasileiros-voltam-a-antartida.shtml

[9] https://www.comnap.aq/our-members

[10] https://cancilleria.gob.ar/es/actualidad/noticias/de-visita-oficial-en-chile-el-secretario-carmona-destaco-la-importancia-del

Escrito por

André Leite Araujo

Pós-Doutorando na UNESP, doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Bolonha, mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP. É pesquisador do Observatório de Regionalismo, da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo e do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais. Seus estudos enfatizam a Política Externa Brasileira e o regionalismo da América Latina nos séculos XX e XXI, com ênfase nas pesquisas sobre Legislativos nacionais e Mercosul.