Imagem: Presidência da República/Divulgação

O comércio internacional passa por uma nova tendência: a negociação de mega-acordos comerciais, sendo os mais notáveis a Parceria Econômica Regional Abrangente (Regional Comprehensive Economic Partnership – RCEP), o Acordo Amplo e Progressivo de Parceria Transpacífica (Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership – CPTPP) e a Zona de Comércio Livre Continental Africana (African Continental Free Trade Area – AfCFTA), seja pela relevância econômica dos signatários, pelo número deles, ou ainda pela profundidade do acordo (“Mega-Acordos Comerciais Regionais e seus Impactos sobre o Brasil”, 2022). 

Em uma primeira análise, a proliferação de mega-acordos internacionais e a concomitante multiplicação de pautas abarcadas por eles pode soar contrária ao movimento de desglobalização que assistimos já há alguns anos. Essa compreensão, no entanto, merece ser revisitada, uma vez que estes fenômenos podem ser reconhecidos como uma manifestação justamente desse processo de fragmentação.

Apesar de estarem ativamente engajados em consertos que envolvem cada vez mais Estados, estes arranjos não necessariamente se equalizam a um aprofundamento da solidariedade nem importam em um avanço em direção a uma possível governança global, mas tendem, por sua vez, a criar espaços e oportunidades de negociação entre agendas e interesses particulares de cada esfera política autônoma (POZZATTI e BASTOS, 2023). 

Essa migração de fóruns e instâncias mais gerais para o acerto de objetivos comuns à comunidade internacional e o desenvolvimento de aparato jurídica com a pretensão de concretizá-los a um nível global, já foi inclusive constatada pela Organização Mundial do Comércio (OMC) em sua página oficial, salientando seu impacto para o sistema multilateral de comércio quanto à convergência e coerência regulatória. Ao mesmo tempo em que a OMC é uma das instâncias de caráter geral esvaziadas em virtude da proliferação dos mega-acordos, sua paralisia, que já se estende por mais de 2 anos, pode ser também encarada como um dos fatores que contribuíram para o estabelecimento dessa tendência, uma vez que é natural que os Estados-membro busquem alternativas para dar continuidade às suas relações comerciais (“Mega-Acordos Comerciais Regionais e seus Impactos sobre o Brasil”, 2022).

A modificação significativa do escopo desses mega-acordos também está sendo instrumental para o fortalecimento dessa estratégia. Esses acordos não mais objetivam apenas a superar barreiras de comércio, mas também regular assuntos previamente encarados como de interesse exclusivamente doméstico, como políticas anti-corrupção, proteção do consumidor e de dados, propriedade intelectual, direito do trabalho e direito ambiental, efetivamente criando um arranjo geoestratégico, não exclusivamente comerciais.

Por abarcarem menos Estados do que os fóruns internacionais onde tradicionalmente se estabelecem as metas e parâmetros da política ambiental, além de tratarem concomitantemente de interesses comerciais mais específico, a inclusão da agenda ambiental nos mega-acordos pode ser uma boa oportunidade para alavancar a concretização de boas políticas e compromissos prévios que têm sua efetividade minimizada pela abertura de suas cláusulas, vagueza no planejamento tático, e ausência de sanções convincentes.

A rigor, previsões acerca da conservação do meio ambiente não são novidade. Ao menos a partir do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade – GATT), em 1947, passou-se a se incluir disposições de natureza ambiental em acordos comerciais ao prever exceções a medidas normalmente proibidas a nível doméstico quando necessárias para proteger a vida ou saúde humana, animal ou de plantas, desde que isso não importasse em uma discriminação injusta entre nações com condições similares, ou funcionasse como uma restrição comercial disfarçada  (MEIDINGER, 2019).

Tempos depois, o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (North American Free Trade Agreement – NAFTA), em 1994, inaugurou um sistema de previsões ambientais mais robusto, incluindo obrigações afirmativas que serviram de base para o texto do recente do Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership – CPTPP) (MEIDINGER, 2019).

Dentre os já citados mega-acordos mais relevantes desse novo período das relações comerciais (RCEP, CPTPP, e AfCFTA), o CPTPP é o único que dispõe expressamente sobre o meio ambiente (“Mega-Acordos Comerciais Regionais e seus Impactos sobre o Brasil”, 2022). Apesar de estabelecer um arranjo institucional considerado fraco no que concerne a disputas baseadas em violações ambientais, com razoáveis dúvidas sobre a efetividade deste aparato, essas violações seriam, em tese, puníveis por meio de sanções comerciais, o que já representa um importante passo adiante por atar política comercial a regulação ambiental.

Essa associação, no entanto, carrega uma grande promessa de efetividade e deve ser tratada com cautela. Desde o momento histórico do GATT, já havia a legítima preocupação com a instrumentalização da agenda ambiental para injusta discriminação entre nações,, ou que ela fosse usada indevidamente como restrição comercial disfarçada, conforme citado anteriormente. Esta preocupação ganha novos contornos hoje, quando os mega-acordos se fortalecem enquanto método preferencial de negociação comercial internacional, e ela já está sendo levantada em situações de conflito de interesses.

Recentemente, a postura desconfiada e crítica da União Europeia (UE) em meio às tratativas do acordo entre UE e Mercosul, em especial por parte da França em relação ao modo como o Brasil vem conduzindo seus esforços de preservação do meio ambiente, não tem sido bem recebida. Se, por um lado, a desconfiança com a concretização dos compromissos ambientais assumidos pelo Brasil tem sua legitimidade – uma vez que ela nasceu em um contexto de manifesta desídia em relação à sustentabilidade e à preservação do meio ambiente que foi o governo do Presidente Jair Bolsonaro –, também não se deve descartar definitivamente a já citada instrumentalização da agenda ambiental para propósitos comerciais.

Em que pese o texto já divulgado para o capítulo do tratado que versará sobre desenvolvimento sustentável pareça relativamente inócuo, uma vez que é possível perceber na maior parte dele a vagueza, que já é tradicional aos instrumentos internacionais, a ameaça de nova paralisação do Acordo entre UE e Mercosul voltou a pairar principalmente após o envio de uma carta adicional (“side letter”) por parte da União Europeia ao Brasil, alertando sobre o cumprimento do Acordo de Paris e sobre a sua não intenção de firmar pactos com países que não estejam comprometidos com a preservação ambiental (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2019).

O alerta foi repelido por vários membros do governo brasileiro que denunciaram que os países europeus também não estavam cumprindo com os termos do Acordo de Paris, e que esta preocupação demonstrada seria, em verdade, uma dissimulação do protecionismo francês com o seu setor agrícola, que se vulnerabilizaria significativamente com a concretização de um acordo de livre comércio com potências agrícolas como o Brasil e a Argentina.

Ainda que haja novos desdobramentos nesta negociação, a fim de melhor salvaguardar a reciprocidade e o equilíbrio na cobrança por melhores desempenhos na promoção da agenda ambiental, a real viabilidade e efetividade de atar mais intimamente as duas pautas continuam sujeitas ao teste da prática. A extensão do aparato idealizado para amparar as disposições relativas ao meio ambiente do CPTPP coloca-o naturalmente como paradigma para os próximos mega-acordos, e o modo como eventuais disputas motivadas por violações ambientais serão tratadas na prática, especialmente considerando a assimetria entre seus signatários, será um bom indicativo de se alguma esperança pode ser depositada na inclusão da pauta ambiental nos novos mega-acordos.

 

Referências:

AUGUSTO, T. UE propôs cláusulas abusivas em acordo do Mercosul, diz presidente do Ibama. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2023/06/13/rodrigo-agostinho-ibama-uol-entrevista-13-de-junho.htm>. Acesso em: 27 set. 2023.

Boletim de Economia e Política Internacional, Brasília, DF: Ipea, n. 35, jan./abr. 2023. ISSN 2237-6208. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/bepi35

Boletim de Economia e Política Internacional, Brasília, DF: Ipea, n. 32, jan./abr. 2022. ISSN 2176-9915. DOI: http://dx.doi.org/10.38116/bepi32

“Inaceitável”, diz Lula sobre proposta da UE para acordo com Mercosul. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-06/inaceitavel-diz-lula-sobre-proposta-da-ue-para-acordo-com-mercosul>. Acesso em: 27 set. 2023.

MEIDINGER, Errol. The TPP and environmental regulation. In: KINGSBURY, Benedict; MALONE, David M.; STEWART, Richard B., et al. (org.). Megaregulation Contested: Global Economic Ordering after TPP. 1 ed. Oxford: Oxford University Press, 2019. pp. 175-95. Disponível em: https://digitalcommons.law.buffalo.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1375&context=book_sections. Acesso em: 25 set. 2023.

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Acordo de Associação Mercosul-União Europeia. 2019. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/2019/texto-do-acordo-mercosul-uniao-europeia

POZZATTI, Ademar; BASTOS, Matheus Silva. A política do direito internacional (ambiental) na proposta de Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Revista InterAção, v. 14, n. 1, 2023.

UE envia alerta ao Brasil sobre cumprimento do Acordo de Paris. Disponível em: <https://exame.com/brasil/ue-envia-alerta-ao-brasil-sobre-cumprimento-do-acordo-de-paris/>. Acesso em: 27 set. 2023.

Escrito por

Suzana Ribeiro Souza

Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana, advogada e pesquisadora pelo GEDAI-UFC na linha de Direito da União Europeia. Áreas de Interesse: Política Econômica Internacional, Regionalismo Sul-Americano, Relações Sul-Sul e Direito Internacional Público.