No que tange à União Europeia, os impactos e influências de atores extrarregionais sobre o bloco são fatores geralmente pouco explorados. Isso se dá pois os principais avanços da integração observados na região se concentram na esfera econômica e essa evolução é considerada como melhor explicada por dinâmicas intrarregionais (KRAPOHL, 2020). Todavia, a relação entre os Estados Unidos da América (EUA) e a Europa e sua influência sobre a integração europeia são relevantes não apenas para entendermos as origens do processo, mas também para refletirmos sobre o próprio futuro do bloco.
Há muito as teorias neorrealistas em suas múltiplas vertentes apontam para o papel do “guarda-chuva de segurança” estadunidense como fator primordial para compreensão da gênese da integração europeia (MEARSHEIMER, 2001; 2010; WALTZ, 1979; 2000). Kenneth Waltz observa, por exemplo, que a integração de fato (para além da cooperação ad hoc) se viabiliza onde a “possibilidade de guerra entre Estados desaparece”, onde há prospecto de manutenção da paz entre as partes, já que assim “todos podem correr o risco de sofrer uma perda relativa mais livremente” (WALTZ, 1979, p. 71, tradução nossa)1)“all of them can more freely run the risk of suffering a relative loss”..
Tal cenário apenas ocorre na presença de uma grande potência hegemônica capaz de suprimir a lógica da anarquia e por consequência permitir aos Estados um modus operandi alternativo: “O balanceamento entre Estados não é inevitável. Como na Europa, uma potência hegemônica pode suprimi-lo. […] A aceitação da liderança de uma potência hegemônica previne o balanceamento de poder na Europa” (WALTZ, 2000, p. 26, tradução nossa)2)“Balancing among states is not inevitable. As in Europe, a hegemonic power may suppress it. […] Accepting the leadership of a hegemonic power prevents a balance of power from emerging in Europe”.. Do ponto de vista neorrealista, portanto, os EUA atuariam como “pacificador” das relações europeias, estabilizando a região e propiciando a terra fértil que teria permitido o florescimento da integração no continente.
Esse teria sido um efeito não necessariamente intencional por parte do hegemon, mas sim um produto da luta pela contenção da ameaça soviética, o que significava, na prática, um comprometimento inevitável por parte dos EUA à segurança europeia (MEARSHEIMER, 2001). Sendo a responsabilidade acerca da segurança das nações europeias essencialmente terceirizada aos EUA, através da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o país passa então a mediar a balança de poder da região, tornando a disputa de poder intrabloco algo inviável e, por consequência, dando maior margem para os países europeus focarem em sua recuperação econômica. Como diz Waltz (1979), “Vivendo à sombra da superpotência, Grã-Bretanha, França, Alemanha e Itália rapidamente perceberam que a guerra entre eles seria infrutífero e logo passaram a crê-la impossível” (WALTZ, 1979, p. 70, tradução nossa)3)“Living in the superpower’s shadow, Britain, France, Germany, and Italy quickly saw that war among them would be fruitless and soon began to believe it impossible”.
No entanto, os EUA não foram apenas contribuintes passivos para o desenvolvimento da integração europeia. Cini (2001) aponta que, pelo contrário, a fomentação da integração foi uma estratégia ativa por parte do governo estadunidense no pós-Guerra, em especial a partir de 1947 – ainda que naquele momento a forma prática da integração e os meios de se alcançá-la não estivessem claramente definidos. O interesse estadunidense em uma Europa integrada não teria surgido por questões ideológicas ou altruístas, mas sim pragmáticas. A integração foi vista como solução para certos receios do país, permitindo de uma só vez a retomada da recuperação econômica na Europa Ocidental, a reabilitação da Alemanha Ocidental necessária para essa retomada, e a amenização dos receios franceses relativos a essa reabilitação – afastando, assim, os perigos de instabilidades econômicas e políticas que pudessem enfraquecer os esforços estadunidenses e de seus aliados na luta contra os soviéticos.
Todavia, refletindo sobre esse processo Krapohl (2020) observa que
[Embora] os realistas [defendam] não ser possível compreender os primórdios da integração europeia sem levar em consideração a Guerra Fria e o “guarda-chuva” de segurança dos EUA [, e] Ainda que esses fatores sem dúvida tenham tido um impacto positivo sobre a integração europeia, é difícil argumentar que por si só possam explicar o desenvolvimento incrivelmente dinâmico da integração europeia desde uma união aduaneira a uma união monetária (KRAPOHL, 2020, p. 8, tradução nossa)4)“[Although] realists argue that the early times of European integration cannot be understood without taking the Cold War and the security umbrella of the USA into account [, and] Although these factors undoubtedly had a positive impact on European integration, it is hard to argue that they alone can explain the incredibly dynamic development of European integration from a customs union to an economic and monetary union”.
As influências e as contribuições estadunidenses, ainda que importantes nos primórdios da integração, não teriam afetado de forma significativa a evolução da integração em si. Embora tal posição não possa ser recriminada quando nos limitamos aos aspectos econômicos da integração, não se mostra satisfatória quando nossas reflexões nos levam a transcender essa esfera. O próprio autor observa que não obstante os impressionantes resultados da integração europeia, “a cooperação regional permanece mais avançada em questões relacionadas à integração do mercado interno […] do que em áreas onde as questões econômicas são de importância secundária (como por exemplo, a Política Externa e de Segurança Comum)” (KRAPOHL, 2020, p. 4, tradução nossa)5)“regional cooperation remains much more advanced in issue areas which are related to internal market integration (for example, external trade policy) than in issue areas where economic issues are of secondary importance (for example the Common Foreign and Security Policy)”..
Para autores como Andrew Moravcsik (1998), essa dificuldade patente em expandir o “método comunitário” para outras esferas que não a econômica per se pode ser explicada pelo controle dos Estados sobre o ritmo e profundidade do avanço da integração (e sua relutância em ceder controle sobre questões de high politics às instituições regionais). De fato, a história nos revela uma resistência, ao menos inicial, dos países europeus em abraçarem processos integrativos limitadores de soberania no imediato pós-Guerra, frustrando os esforços estadunidenses nesse sentido (CINI, 2001), assim como o fracasso dos esquemas de integração não-econômicos elaborados nos primórdios do processo (SCHÜTZE, 2015). Todavia, não podemos desconsiderar explicações alternativas (ou complementares) que apontam as contribuições de atores extrarregionais para esse quadro.
Christopher Layne (2002), por exemplo, nos diz que
não obstante a posição oficial de Washington durante os últimos 50 anos de que apoia a criação de uma Europa forte e unida que possa ser um parceiro equânime dos Estados Unidos, o apoio estadunidense à integração europeia sempre foi condicionado à sua condução exclusiva no âmago de uma “Comunidade Atlântica” sobrejacente e liderada pelos Estados Unidos (LAYNE, 2002, p. 138, tradução nossa)6)“notwithstanding Washington’s official position of the past 50 years that it favors the emergence of a strong and united Europe that could be America’s equal partner, American support for European integration has always been conditioned on its taking place only within the framework of an overarching – and American-led – ‘Atlantic Community.’ ”..
Diferentemente de Mearsheimer (2001) e Waltz (2000), que consideram a continuidade da OTAN no pós-Guerra Fria como fenômeno anômalo, Layne (2002) interpreta esse comportamento como intencional. “[O]s Estados Unidos nunca quiseram que a Europa Ocidental fosse um pólo de poder independente, capaz de agir de forma autônoma nos campos de política externa e defesa” (LAYNE, 2002, p. 139, tradução nossa)7)“[T]he United States has never wanted Western Europe to be an independent pole of power able to act autonomously in the realms of foreign and defense policy”.. Isso porque uma Europa integrada e independente dos EUA representaria uma ameaça para os próprios interesses estadunidenses. Assim, “através da OTAN, Washington tem sistematicamente procurado preservar sua preponderância geopolítica na Europa e assim prevenir a Europa Ocidental de se tornar estrategicamente independente dos Estados Unidos” (LAYNE, 2002, p. 139, tradução nossa)8)“through the mechanism of NATO, Washington has sought consistently to maintain its geopolitical preponderance in Europe and thereby prevent Western Europe from becoming strategically independent of the United States”..
Essa conclusão era também partilhada por Charles De Gaulle (polêmico presidente francês, de 1959 – 1969), que via a tradição atlantista como incompatível com sua visão de uma Europa enquanto pólo independente nas relações internacionais (VOSKOPOULOS, 2006). Isso porque o atlantismo, enquanto doutrina política, coloca o cultivo de laços com os EUA como primaz e indispensável para a segurança da região e se choca frontalmente com a possibilidade de consolidação da integração para além do pilar econômico (VOSKOPOULOS, 2006). Nesse sentido, o Reino Unido (tanto hoje quanto então) constitui um dos mais fortes defensores dessa doutrina – com posições claramente contrárias a propostas que pudessem ameaçar os laços transatlânticos ao longo de toda sua participação na União Europeia. Nas palavras de Voskopoulos (2006),
Os esforços históricos da Europa rumo à integração política têm sido prejudicados diacronicamente pela clivagem ideológica do continente em duas tendências concorrentes e por vezes auto-paralisantes. […] Na prática, foi mais conveniente para os europeus permitir aos EUA a função de provedor de segurança da Europa […]. Dessa forma, o atlantismo se enraizou de forma gradual mas contínua, enquanto o europeísmo foi marginalizado em ambos níveis coletivo e nacional, fato este que reduziu a habilidade dos europeus de pensarem e agirem de forma independente e coletiva em crises (VOSKOPOULOS, 2006, p. 6 e 13, tradução nossa)9)“The historical efforts of Europe towards political integration [have] been hindered diachronically by Europe’s ideological split into two contending and at times self-paralyzing trends. […] Practically, it was convenient for European actors to allow the U.S. to be the security provider of Europe […]. Thus, Atlanticism was gradually but steadily rooted, while Europeanism was marginalized on both collective and national level, a fact that minimized the ability of Europeans to think and act independently and collectively in crises”..
É inegável que os laços transatlânticos constituem um de grande importância para a União Europeia. Seja na esfera econômica ou geopolítica, os EUA se mostram como um dos principais parceiros da Europa. Como diz Voskopoulos (2006, p. 14, tradução nossa), “Não obstante as críticas europeístas, os EUA atuaram como construtor de consenso entre seus aliados europeus”10)“Despite criticism on the part of Europeanists, the U.S. has operated as a consensus builder among European allies”. . No entanto, como vimos, o atlantismo e a atuação dos EUA na Europa também representam uma força fragmentadora, dificultando (se não impossibilitando) a consolidação da integração na esfera política. A dificuldade em se criar uma política de defesa independente, que por consequência impede a elaboração de uma política externa comum verdadeiramente autônoma, impõe limites às ações europeias e deixa o bloco vulnerável às políticas de seu protetor.
É notável que, em especial no pós-Guerra Fria, a relação entre os dois pólos tem demonstrado certo desgaste (VOSKOPOULOS, 2006), alcançando seu pico com a eleição de Donald Trump (2017 – 2021) à presidência dos EUA. Trump não só foi abertamente a favor do Brexit, apoiando a fragmentação do bloco e atacando o caráter supranacional da União Europeia, como também gerou grande preocupação entre os países europeus ao ameaçar encerrar o compromisso estadunidense com a segurança europeia. Indo além, não apenas travou uma guerra tarifária com o bloco devido à adoção de medidas protecionistas (SCHNEIDER-PETSINGER, 2019), como também minou os esforços dos europeus de normalização das relações com o Irã ao retirar os EUA do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA) – o país negociando hoje a portas fechadas com o Irã sem participação da UE.
Ainda que a Europa tenha recebido com alívio o governo de Joe Biden (2021 – presente), o cenário conturbado da conjuntura atual, com o crescente protecionismo estadunidense; a guerra na Ucrânia (causada em parte por uma intransigente e desastrosa política estadunidense, sem previsões para seu fim e com riscos de escalada); e o conflito Sino-Americano que se materializa no horizonte, tem produzido efeitos desastrosos para a Europa: crise econômica e energética que abala em especial a principal economia do bloco, aumentando a dependência energética do continente em relação aos EUA; medidas unilaterais por países do leste europeu bloqueando a importação de grãos ucranianos em clara contravenção às regras do mercado único, levando à descredibilização da Comissão Europeia, se não o bloco como um todo; riscos de desinvestimentos e deslocamento de grandes empresas para os EUA, assim como pressões para seguir Washington em suas sanções contra a China (um importante parceiro comercial europeu) são apenas alguns dos desafios que se apresentam à União Europeia hoje.
A dependência europeia em relação aos EUA e seu papel como “junior partner” estadunidense condicionam as respostas do bloco a essas adversidades. Mesmo que esse novo cenário tenha aberto os olhos dos europeus quanto à debilidade do continente e sua dependência frente aos EUA para lidar com os abalos do Sistema Internacional, o atlantismo se mostra ainda resiliente, tendo levado não à busca de um novo paradigma para as relações transatlânticas, mas ao fortalecimento da OTAN e do alinhamento europeu a Washington – veja que Emmanuel Macron (2017 – presente), hoje uma das vozes mais ativas a favor de uma autonomia estratégica e de uma posição independente nas relações internacionais, tem recebido duras críticas tanto por parte de Washington, como de uma parcela dos europeus.
Eis que dois caminhos se apresentam à União Europeia hoje (cada qual com seus riscos e benefícios): fazer como os britânicos, aceitando a preeminência estadunidense e sua posição enquanto parceiro coadjuvante vinculado aos EUA, e abandonando em termos práticos a busca por uma união política; ou como ansiava De Gaulle, construir uma Europa dotada de autonomia estratégica e capaz de traçar sua própria política externa, um polo alternativo independente dos desígnios das grandes potências mundiais. Nesse momento crucial, cabe agora aos europeus refletirem e decidirem sobre quais rumos desejam para o futuro do continente, ainda que, frente às divisões que atualmente cortam o bloco, tal dilema não seja facilmente resolvido.
Referências Bibliográficas
CINI, Michelle. From the Marshall Plan to EEC: Direct and Indirect Influences. In: SCHAIN, Martin (Ed.). The Marshall Plan: Fifty Years After. Nova Iorque: Palgrave Macmillan US, 2001, p. 13-37.
KRAPOHL, Sebastian. Games Regional Actors Play: Dependency, Regionalism, and Integration Theory for Global South. Journal of International Relations and Development, vol. 23, p. 840-870, 2020. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1057/s41268-019-00178-4. Acesso em: 20 set. 2023.
LAYNE, Christopher. The “Poster Child for Offensive Realism”: America as a Global Hegemon. Security Studies, vol.12, n.2, pp.120-164, 2002. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09636410212120011. Acesso em: 23 set. 2023.
MEARSHEIMER, John. The Tragedy of Great Power Politics. Nova Iorque: W.W. Norton & Company, Inc., 2001.
MEARSHEIMER, John. Why is Europe Peaceful Today?. European Political Science, vol.9, n.3, pp.387-397, 2010. Disponível em: https://www.mearsheimer.com/wp-content/uploads/2019/06/Why-Is-Europe-Peaceful-Today.pdf. Acesso em: 23 set. 2023.
MORAVCSIK, Andrew. The Choice for Europe: Social Purpose & State Power from Messina to Maastricht. Oxon: Routledge, 1998.
SCHNEIDER-PETSINGER, Marianne. US–EU Trade Relations in the Trump Era: Which Way Forward?. US and the Americas Programme, Chatham House, 2019. Disponível em: https://www.chathamhouse.org/sites/default/files/publications/research/2019-03-08US-EUTradeRelations2.pdf. Acesso em: 23 set. 2023.
VOSKOPOULOS, George. European Integration: From Gaullism to Atlanticism and Europeanism. Proceedings, vol. 45, Livro 4, Rousse University, 2006. Disponível em: https://shorturl.at/adyD1. Acesso em: 23 set. 2023.
WALTZ, Kenneth. Theory of International Politics. Nova Iorque: McGraw-Hill, 1979.
WALTZ, Kenneth. Structural Realism after the Cold War. International Security, vol.25, n.1, pp.5-41, 2000. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2626772. Acesso em: 23 set. 2023.
Notas
1. | ↑ | “all of them can more freely run the risk of suffering a relative loss”. |
2. | ↑ | “Balancing among states is not inevitable. As in Europe, a hegemonic power may suppress it. […] Accepting the leadership of a hegemonic power prevents a balance of power from emerging in Europe”. |
3. | ↑ | “Living in the superpower’s shadow, Britain, France, Germany, and Italy quickly saw that war among them would be fruitless and soon began to believe it impossible” |
4. | ↑ | “[Although] realists argue that the early times of European integration cannot be understood without taking the Cold War and the security umbrella of the USA into account [, and] Although these factors undoubtedly had a positive impact on European integration, it is hard to argue that they alone can explain the incredibly dynamic development of European integration from a customs union to an economic and monetary union” |
5. | ↑ | “regional cooperation remains much more advanced in issue areas which are related to internal market integration (for example, external trade policy) than in issue areas where economic issues are of secondary importance (for example the Common Foreign and Security Policy)”. |
6. | ↑ | “notwithstanding Washington’s official position of the past 50 years that it favors the emergence of a strong and united Europe that could be America’s equal partner, American support for European integration has always been conditioned on its taking place only within the framework of an overarching – and American-led – ‘Atlantic Community.’ ”. |
7. | ↑ | “[T]he United States has never wanted Western Europe to be an independent pole of power able to act autonomously in the realms of foreign and defense policy”. |
8. | ↑ | “through the mechanism of NATO, Washington has sought consistently to maintain its geopolitical preponderance in Europe and thereby prevent Western Europe from becoming strategically independent of the United States”. |
9. | ↑ | “The historical efforts of Europe towards political integration [have] been hindered diachronically by Europe’s ideological split into two contending and at times self-paralyzing trends. […] Practically, it was convenient for European actors to allow the U.S. to be the security provider of Europe […]. Thus, Atlanticism was gradually but steadily rooted, while Europeanism was marginalized on both collective and national level, a fact that minimized the ability of Europeans to think and act independently and collectively in crises”. |
10. | ↑ | “Despite criticism on the part of Europeanists, the U.S. has operated as a consensus builder among European allies”. |