Imagem por Mercosur Social y Solidario.
Texto por Natanael Gomide Junior.
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCL/Ar). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: natanael.junior@unesp.br. Tem interesse nos seguintes temas: Regionalismo; Mercosul; ASEAN; Participação Social.
A vitória ao cargo de chefe do Executivo brasileiro por Luiz Inácio Lula da Silva, posto que ocupará a partir de janeiro de 2023, confirma a configuração de um novo cenário político na região marcadamente à esquerda, entendida como uma “nova onda rosa”. Aos pesquisadores que se debruçam a entender o regionalismo no Mercosul – principalmente a agenda social e participativa – as principais inquietações desde então têm sido as seguintes: a conformação deste novo cenário será capaz de produzir uma nova inflexão no Mercosul no que tange à agenda temática? E quais são os principais tipos de mudanças que poderão emergir?
É visível que a região está passando por um processo de mudanças políticas domésticas nos últimos anos com a emergência de governos de esquerda e centro-esquerda: na Argentina com Alberto Fernández em 2019; Luis Arce na Bolívia desde 2020; Pedro Castillo no Peru a partir de 2021 e no Chile com Gabriel Boric e Gustavo Petro na Colômbia, a partir de 2022. A expressão original “maré rosa” ou “onda rosa” se refere à uma guinada à esquerda a partir do começo dos anos 2000 na América Latina, que propiciou uma convergência nas políticas externas dos governos da região e levou à constituição de uma nova agenda temática no Mercosul; a criação da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) em 2004; as fundações da União das Nações Sul-americanas (UNASUL) em 2008 e da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) em 2010.
Quando analisadas de forma comparativa, podemos perceber que essa “nova onda rosa” tem desafios muito maiores a serem enfrentados em termos econômicos, políticos e sociais. O primeiro desafio é lidar com os efeitos econômicos adversos causados pela pandemia de Covid-19, que propiciou uma inflação galopante nos países da região e uma piora nas condições de vida das populações. Dados reunidos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO et. al. 2021) mostram que em somente um ano durante o contexto da pandemia, o número de pessoas que vivem em insegurança alimentar grave (fome) aumentou em 13,8 milhões, alcançando a marca de 59,7 milhões de pessoas na América Latina e Caribe. Segundo Sanahuja (2019), o fim do boom das commodities propiciado pelo crescimento chinês no começo dos anos 2000 é um fator importante que explica o baixo crescimento econômico na região em períodos recentes, o que dificulta com que políticas externas mais assertivas sejam levadas adiante. Em termos políticos, há uma necessidade da busca por uma concertação entre os países que permita com que um mínimo denominador comum possa ser encontrado, tendo em vista que na contemporaneidade, o Mercosul tem padecido diante da falta de uma convergência entre os líderes regionais na condução da agenda econômica e política no processo de integração regional.
No que tange à participação social no Mercosul no cenário mais contemporâneo do regionalismo, momento que é cunhado pela literatura especializada pelo conceito de “Regionalismo Líquido” (MARIANO et. al. 2021), e que se refere à segunda metade dos anos 2010, podemos perceber um cenário de paralisia e desmonte das políticas participativas. Diante da dificuldade da condução da agenda econômica, que foi fortemente tensionada a partir da chegada ao poder do atual presidente uruguaio Luis Alberto Lacalle Pou em 2020, a agenda participativa tem sido relegada no mínimo há um segundo plano. As Cúpulas Sociais, importantes espaços de diálogos entre a sociedade civil e os governos, que foi responsável por uma grande mobilização da sociedade civil regional no trato de diversas questões importantes que permeiam a região, teve a sua última edição realizada em 2015. De outro lado, a partir de 2018 o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH) reduziu para apenas uma a quantidade de consultas públicas realizadas anualmente. Uma outra instância importante de diálogo, responsável por propiciar uma maior interação entre os atores governamentais e a sociedade civil dentro do contexto doméstico brasileiro, foi a instituição do Programa Mercosul Social e Participativo em 2008, recentemente descontinuado e as informações encontradas datam que sua última edição também foi realizada em 2015 (BRASIL, 2015).
Diante disto, podemos perceber um nítido esvaziamento da participação social no Mercosul nos últimos anos. A política participativa no Mercosul, enquanto uma política pública, está sujeita à reveses, tendo em vista que os agentes governamentais podem atuar no sentido de fortalecê-la ou enfraquecê-la. Analisado a partir desta ótica, podemos verificar que, paulatinamente, a participação da sociedade civil passou por um novo processo de agendamento, ou seja, novas priorizações foram realizadas (ZAHARIADIS, 2016). Este processo começou a ser conformado a partir de 2015 com a chegada ao poder do presidente argentino Mauricio Macri, que deixou clara sua busca pela priorização da dimensão comercial e econômica no processo de integração regional. Tal posição convergia com a do então presidente brasileiro Michel Temer (2016-2018), que buscou redução da Tarifa Externa Comum (TEC) e maior flexibilização das negociações comerciais realizadas com países terceiros ao bloco (BRICEÑO-RUIZ, 2021).
A busca por relegar a agenda social e participativa a um segundo plano no Mercosul tornou-se visível a partir da chegada ao poder do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, em 2019, encabeçada pelo chanceler Ernesto Araújo. O ex-chanceler afirmava que o Mercosul deveria retomar o que era outrora, tendo em vista que havia se perdido em diversas “avenidas paralelas” e teria caminhado rumo à “desintegração”. Fica claro, a partir do compêndio de discursos reunidos pela Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG, 2019), que o Brasil tinha o objetivo de perseguir, a partir de então, uma integração estritamente ancorada nas dimensões comerciais e econômicas.
Recentemente, o Conselho do Mercado Comum (CMC) adotou a Decisão nº 04/2022, que teve por objetivo atualizar a dinâmica de funcionamento dos mecanismos de participação social, estabelecendo que as Cúpulas Sociais seriam administradas e gerenciadas pela Secretaria do Mercosul (SM), tarefa que estava anteriormente atribuída à Unidade de Apoio à Participação Social (UPS), criada em 2010, e que cumpriu um importante papel no sentido de viabilizar o financiamento de diversas organizações sociais da região que não possuíam condições de arcar com os custos oriundos da participação no âmbito do Mercosul. Desta forma, podemos perceber indícios de uma busca pela reativação deste importante espaço de diálogo social. No entanto, transcorridos quase seis meses após a tomada desta decisão, nenhuma outra informação adicional foi encontrada sobre o referido assunto.
A ascensão ao Poder Executivo brasileiro a partir de 2023 por Luiz Inácio Lula da Silva, associado com este novo cenário político marcadamente à esquerda na região, tem sido visto por muitos como uma possibilidade de que a agenda temática do Mercosul sofra uma nova inflexão. O presidente eleito, em seu plano de governo, deixou claro a intenção de fortalecer novamente o Mercosul (PT, 2022). Apesar do Brasil ser o principal país do bloco e ter desempenhado um papel fundamental para que a agenda participativa ganhasse uma nova tônica no começo dos anos 2000, sabemos que o bloco é formado por quatro países, e para que uma agenda seja levada adiante, se faz necessário o assentimento de todos os países participantes. Neste sentido, o segundo país mais importante do bloco, a Argentina, passará por um processo eleitoral em 2023, o que pode produzir uma alteração neste cenário e impactar nos rumos do processo de integração.
Uma outra questão que pode se tornar um empecilho para que o governo brasileiro empreenda uma agenda de política externa mais assertiva em direção ao Mercosul, no que tange à agenda social e participativa, diz respeito aos custos políticos domésticos ocasionados por um eventual aprofundamento nas relações com os países da região, questão criticada pelas forças bolsonaristas, as quais têm demonstrado sua permanência e amplitude não somente como uma força política, mas como uma força social, dispersa entre a sociedade, demonstrando o seu vigor nas ruas e nas redes sociais. Não obstante, desde que confirmada a vitória nas urnas, o futuro chefe do Executivo brasileiro já tem trabalhado no sentido de reintroduzir o país em fóruns internacionais importantes, como exemplificado pela sua recente participação na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-27), realizado no Egito em novembro.
Ainda que uma nova inflexão na agenda temática possa emergir a partir deste novo cenário político, ao se analisar a trajetória histórica trilhada pela participação social no Mercosul, podemos inferir que mudanças estruturais não serão realizadas, ou seja, a participação social deverá ficar relegada à mecanismos consultivos e sem poder decisório. Uma palavra-chave que aparece antes de “fortalecimento do Mercosul” no plano de governo do presidente eleito brasileiro é a “defesa da soberania” (PT, 2022, grifo nosso), o que marca a tônica do processo de integração regional no Mercosul: a busca pela preservação das soberanias nacionais por meio de uma estrutura intergovernamental e conduzida em uma lógica interpresidencialista (MALAMUD, 2003). No que se refere à participação social, o Mercosul realizou um “alargamento das bases” no contexto do Regionalismo Pós-hegemônico ao criar diversas institucionalidades que previam a participação da sociedade civil nas discussões de questões prementes para o processo de integração regional, no entanto, o topo da estrutura permaneceu “intacto”.
Apesar de todos os percalços, como a questão da falta de transparência em relação aos gastos para custeio das políticas participativas, um baixo nível de monitoramento do encaminhamento dado às sugestões levadas pelas organizações sociais, as dificuldades com as questões burocráticas e institucionais por parte das organizações sociais, salientamos que a participação da sociedade civil no processo de integração regional se constitui enquanto essencial ao permitir que o processo alcance um maior nível de democratização. Segundo Steffek e Nanz (2008), todas as propostas de democratização na esfera internacional devem levar em conta os cidadãos como partes interessadas na governança, permitindo um debate público sobre as questões que são tratadas no âmbito das instituições e organizações internacionais.
Desta forma, o envolvimento dos cidadãos no processo de integração regional no Mercosul se constitui enquanto um importante desafio a ser pensado e enfrentado, idealmente à longo prazo para impossibilitar ou ao menos obstaculizar que a política participativa fique totalmente dependente das vontades políticas circunstanciais.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Programa Mercosul Social e Participativo, 2015. Disponível em: 08.07.2015 – Programa Mercosul Social e Participativo — Português (Brasil) (www.gov.br)
BRICEÑO-RUIZ, José. O auge e a crise do “Novo Mercosul” no período pós-hegemônico (2013-2016). Lua Nova, vol. 112, p. 55-86, 2021.
FAO; FIDA; OPS; WFP; UNICEF. América Latina y el Caribe – Panorama regional de la seguridad alimentaria y nutricional 2021: estadísticas y tendencias, 2021. Disponível em: América Latina y el Caribe – Panorama regional de la seguridad alimentaria y nutricional 2021 (fao.org)
FUNAG. A nova política externa brasileira: seleção de discursos, artigos e entrevistas do Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2019. Disponível em: Biblioteca Digital da Fundação Alexandre de Gusmão (funag.gov.br)
MALAMUD, Andrés. Presidentialism and Mercosur: A Hidden Cause for a Successful Experience. In: LAURSEN, Finn (Org.). Comparative Regional Integration: Theoretical Perspectives, 2003. Aldershot: Ashgate, 2003.
MARIANO, Karina Lilia Pasquariello; BRESSAN, Regiane Nitsch; LUCIANO, Bruno Theodoro. Liquid Regionalism: a typology for regionalism in the Americas. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 64, n.2, p. 1-19, 2021.
PT. Diretrizes para o Programa de Reconstrução e Transformação do Brasil, 2022. Disponível em: 5_1659820284477.pdf (tse.jus.br)
SANAHUJA, José Antonio. La crisis de la integración y el regionalismo en América Latina: giro liberal-conservador y contestación normativa. In:
MESA, Manuela (Org.). Ascenso del nacionalismo y el autoritarismo en el sistema internacional. Madrid: Fundación Cultura de Paz, 2019.
STEFFEK, Jens; NANZ, Patrizia. Emergent Patterns of Civil Society Participation in Global and European Governance. In: STEFFEK, Jens;
KISSLING, Claudia; NANZ, Patrizia. Civil Society Participation in European and Global Governance: A Cure for the Democratic Deficit? New York: Palgrave Macmillan, p. 1-29, 2008.
ZAHARIADIS, Nikolaos. Setting the agenda on agenda setting: definitions, concepts, and controversies. In: ZAHARIADIS, Nikolaos (Org.). Handbook of Public Policy Agenda Setting. Massachusetts: Edward Elgar, 2016.