A praça Murillo, em La Paz, abriga os palácios do Legislativo (à esquerda) e do Executivo (à direita)
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Há um entendimento comum de que eleições regulares são uma das características de regimes democráticos (Cheibub, Gandhi e Vreeland 2010). Entretanto, as eleições podem ser questionadas pelos atores políticos, cabendo à comunidade internacional o papel de validação dos processos. Isso posto, discute-se aqui o caso da observação eleitoral promovida pela OEA na Bolívia em 2019 e as consequências das denúncias de fraude, com o agendamento de novas eleições em 2020.

Apesar das orientações científicas em relação à pandemia do novo coronavírus contraindicarem as aglomerações de indivíduos e o compartilhamento de objetos, eleições foram marcadas ao longo de 2020. Isso ocorreu, por exemplo, em Belarus, Estados Unidos, Polônia, Rússia e Venezuela – ainda que com eventuais adiamentos das datas iniciais. De igual maneira, a Bolívia adiou o pleito previsto para o dia 3 de maio e o marcou para 6 de setembro. Aprovada pela Assembleia Legislativa e pelo Tribunal Superior Eleitoral, tal decisão foi impulsionada pelos atuais partidos da oposição – como a Comunidade Cidadã (CC) e o Movimento para o Socialismo (MAS) -, vinculados, respectivamente, aos ex-presidentes Carlos Mesa (2003-2005) e Evo Morales (2006-2019).

Entretanto, apesar de sancionar a lei das eleições, a atual presidenta boliviana Jeanine Áñez (Movimento Democrático Social) explicitou sua oposição às eleições, argumentando que ocasionaria riscos à saúde pública. Sendo assim, a pandemia se apresenta como um fator interveniente e imprevisto que pode ser instrumentalizado a favor do governo provisório, para influenciar o calendário eleitoral. Isso porque repetidas protelações tem um impacto direto na extensão dos mandatos das lideranças. Em La Paz, Áñez propôs suprir a vacância de poder de forma temporária, mas seu governo chegará a quase 1 ano. Além disso, ela pode responsabilizar a oposição pelas possíveis vítimas dos comícios nos próximos meses, politizando as tensões presentes entre a necessidade democrática e o risco sanitário. Convém recordar que, na história política boliviana com uma série de golpes, os presidentes costumam ter mandatos curtos, isto é, 1 ano como interina não estaria fora do padrão histórico.

Apesar do MAS haver perdido a presidência, o agendamento das eleições demonstra o poder que a oposição na Assembleia Legislativa Plurinacional ainda detém no país andino, em um embate de forças partidárias que será testado novamente nas eleições de 2020. O grupo político que depôs Morales e assumiu a presidência não tem o controle consolidado de todo o Estado. As pesquisas de intenção de voto demonstram que os resultados de 2019 podem se repetir, com Mesa em segundo lugar e o candidato do MAS como vencedor. Neste caso, Luis Arce (ex-ministro da Economia) será o candidato, devido ao exílio de Morales.

Frente ao exposto, cabe a reflexão sobre qual será o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA) e outras organizações regionais no acompanhamento das eleições. De modo sucinto, lembramos os acontecimentos do final de 2019. O então presidente Morales (MAS) foi reeleito para o quarto mandato, mas a vitória foi questionada pela OEA, chefiada por Luis Almagro (Ziccardi 2020). A organização entendeu que houve fraude, devido à variação estatística durante a contagem de votos. Após uma série de protestos violentos e ameaças da Polícia e das Forças Armadas contra o governo, que não aceitaram a convocação de novas eleições, Morales foi forçado a renunciar e buscou refúgio no México e na Argentina. Após alguns dias de acefalia presidencial devido à renúncia de 5 autoridades da linha sucessória, Áñez, segunda vice-presidenta do Senado, se autointitulou presidenta interina, sendo a segunda mulher a ocupar o cargo.

Isso posto, a OEA legitimou a deposição de Morales e a assunção de Áñez para o governo provisório. Também foi reconhecido por Washington, Moscou, Brasília, Bogotá, Berlim e Londres, entre outros. Ao fim e ao cabo, o Palácio Quemado foi melhor recebido por atores internacionais que tinham divergências com a administração do MAS e por outros arranjos regionais. Além disso, o governo provisório boliviano vem participando de encontros do Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (PROSUL) e do Grupo de Lima (este um instrumento para promoção do diálogo político latino-americano frente à situação venezuelana). Inclusive, alguns debates comparam Jeanine Áñez com Juan Guaidó, ainda que este não tenha assumido plenamente o controle do Estado venezuelano.

Em contrapartida, outros governos – como Montevidéu, Manágua, Caracas e Havana – não reconheceram Áñez e classificaram a saída de Morales como um golpe de Estado. Ademais, a adesão boliviana ao Mercosul não encontra andamento enquanto não há eleições. Áñez também enfrenta resistências com a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (ALBA-TCP) e a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL). Sendo assim, em linhas gerais, o atual governo tem relações mais tensas com presidentes que eram aliados de Morales, bem como com organizações regionais que floresceram durante a chamada “Onda Rosa”, no começo do século XXI.

Com a proximidade de novas eleições, a missão de observação eleitoral da OEA provavelmente acompanhará o pleito e emitirá seu parecer a respeito da validade dos resultados. Assim, o que se discute é a influência política das observações eleitorais, na medida em que podem conceder ou retirar legitimidade dos ganhadores ou perdedores das eleições. Indubitavelmente, a OEA não é o único bloco que realiza esse tipo de atividade e o faz desde 1962 em diversos países do continente. Já as realizou no Brasil em 2018, no Paraguai em 2013 e na Venezuela em 1999[1] para citar alguns exemplos. Nos últimos tempos, conferiu seu caráter certificador a países que nunca haviam recebido uma missão da OEA, como os Estados Unidos.

Enfatizando o caso venezuelano, a OEA interrompeu suas observações no país, após conflitos com o governo, depois de anos validando as diversas eleições no período chavista. Portanto, não aportou mais relatórios específicos, mas a UNASUL acompanhou as eleições e certificou a legitimidade dos pleitos, apesar de críticas oposicionistas (Planchuelo 2017). Dessa forma, pode haver variações entre os órgãos de monitoramento eleitoral, aportando distintos impactos políticos.

Considerando que as missões eleitorais são convidadas pelo país que celebra o pleito, há interesse por parte do governo que finaliza seu mandato em contar com a assessoria técnica e com a legitimação conferida pela esfera internacional aos processos domésticos. Isso posto, as missões eleitorais não implicaram necessariamente em um processo de transição de regimes autoritários para democráticos, mas podem influenciar na consolidação de práticas eleitorais bem vistas pela OEA. Um exemplo é o Paraguai, que não recebeu nenhuma missão durante a ditadura de Alfredo Stroessner, mas passou a convidar frequentemente a organização a partir de 1991.

Alguns aspectos importantes das ações de monitoramento são o grau de independência que a missão possui para acompanhar o pleito (por exemplo, poder acessar distintos locais de votação e não apenas alguns específicos), bem como a neutralidade dos agentes em relação aos resultados. Ademais, no âmbito do princípio de não intervenção, uma das características da observação é acompanhar a legislação eleitoral nacional vigente, i.e., como ela é e não como poderia ser.

Diante do exposto, a atuação da OEA na Bolívia foi um elemento decisivo para a deslegitimação das eleições de outubro e a consequente queda de Morales. A crise política e a ascensão da oposição alteraram a história boliviana recente, contradizendo o resultado do pleito. Até setembro, esse interstício vem gerando mudanças na estrutura do país – como eliminação de ministérios, fechamento de embaixadas, o enfrentamento à pandemia e mudanças simbólicas, entre elas a oficialização da bandeira com a flor do patujú. Nos próximos meses, poderemos acompanhar os desdobramentos da campanha eleitoral e a possível missão de observação da OEA para inferir os impactos, já sem a candidatura de Morales.

 

Referências

Cheibub, José Antonio, Jennifer Gandhi, e James Raymond Vreeland. 2010. “Democracy and dictatorship revisited.” Public Choice (143): 67-101. Acesso em 10 de julho de 2020. doi:10.1007/s11127-009-9491-2.

Planchuelo, Víctor Carlos Pascual. 2017. “La “observación” electoral de la OEA vs. el “acompañamiento” de UNASUR en las recientes elecciones de Venezuela.” América Latina Hoy (Universidad de Salamanca) (75): 127-148. Acesso em 7 de julho de 2020. doi:https://doi.org/10.14201/alh201775127148.

Ziccardi, Natalia Saltalamacchia. 2020. “La OEA en la elección presidencial de Bolivia: problemas de credibilidad.” Análisis Carolina (Fundación Carolina) (13): 1-11.

Notas

[1] Enfatizando o caso venezuelano, a OEA interrompeu suas observações no país, devido a conflitos com o governo, depois de anos validando as diversas eleições no período chavista. Portanto, não aportou mais relatórios específicos, mas a UNASUL acompanhou as eleições e certificou a legitimidade dos pleitos, apesar de críticas oposicionistas (Planchuelo 2017). Dessa forma, pode haver variações entre os órgãos de monitoramento eleitoral, aportando distintos impactos políticos.

Escrito por

André Leite Araujo

Pós-Doutorando na UNESP, doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Bolonha, mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP. É pesquisador do Observatório de Regionalismo, da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo e do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais. Seus estudos enfatizam a Política Externa Brasileira e o regionalismo da América Latina nos séculos XX e XXI, com ênfase nas pesquisas sobre Legislativos nacionais e Mercosul.