Imagem: Sede do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul em Assunção, Paraguai (Foto: André Leite Araujo)

 

A sociedade mundial pôde presenciar incontáveis avanços nos processos de integração regional ao redor do globo. No entanto, também foram vistas recorrentes crises, políticas, econômicas e sociais. Ao buscar explicações para esses fenômenos, os analistas encontram diversas causas e uma delas passa pela ausência de democratização das instituições criadas nos marcos dos regionalismos, isto é, as populações que se beneficiam ou que sofrem os resultados desses processos não participam das decisões nem possuem meios claros de acompanhar seus resultados. Portanto, surgem as questões: Quem decide? Quem se beneficia? Quem determina os rumos dos processos? Quem garante a legitimidade e a boa conduta dos mecanismos? Quem controla a integração?

Elemento basilar do sistema internacional desde o pós-2ª Guerra Mundial, os esquemas de regionalismo vigentes são resultados de iniciativas “de cima para baixo”, isto é, iniciadas por governos para serem implementados sobre as sociedades. Ainda que possam ter origem em interações sociais civis, como as resultantes do comércio ou de fluxos migratórios, a constituição dos arranjos regionais é de competência governamental, assim como a definição do formato das instituições de integração. Logo, os Estados assumem o protagonismo do processo decisório dos organismos regionais – o que é compreensível dada a evolução da organização política das sociedades ao longo dos últimos séculos. Entretanto, diferentemente dos sistemas domésticos (tomando as democracias liberais como modelo), nos quais há mecanismos de freios e contrapesos através da tripartição dos poderes, entre Executivo, Legislativo e Judiciário, o plano regional apresenta uma contundente centralidade dos Executivos.

Nesse contexto, cabe uma reflexão sobre o intergovernamentalismo. A estrutura que foi escolhida para formar uma série de organizações – inclusive na América Latina, como o Mercosul –  sustenta o princípio de negociações diretamente entre os Estados-membro, sem a criação de órgãos supranacionais. Sendo assim, a vantagem mais destacada desse modelo é que se preserva a autonomia de cada parte, ou seja, não há imposição de decisões vindas de fora, nem a submissão de um Estado a outro, preservando os interesses e os poderes de quem negocia. Contudo, isso faz com que a integração fique dependente das vontades políticas de cada governo vigente, com menor estrutura permanente que sobreviva ao longo das transições de presidentes.

Tomando o Mercosul como caso para nos aprofundarmos, o processo é centralizado em 3 órgãos: Conselho do Mercado Comum (CMC), Grupo Mercado Comum (GMC) e Comissão de Comércio do Mercosul (CCM) (MERCOSUR, 2018). A composição desses centros decisórios é decidida pelos Ministérios de Relações Exteriores e de Economia e dos Bancos Centrais, ou seja, órgãos dos Executivos nacionais. Portanto, os próprios governos federais criam as estruturas, indicam seus membros, tomam as decisões regionais e as incorporam aos ordenamentos jurídicos nacionais, comumente sem passar pelo crivo do Legislativo. A respeito desse último ponto, o levantamento de Rivas (2006) aponta que apenas 8,63% na Argentina, 0,72% no Brasil, 3,10% no Paraguai e 3,05% no Uruguai das normas que requerem internalização foram incorporadas por lei. O restante entrou em vigor nos respectivos países por medidas dos Executivos, como decretos ou portarias. Como ressalta Neves (2006), a ausência da participação de instituições domésticas, principalmente o Legislativo que – teoricamente – representa a população, diminui a legitimidade da ação internacional de um país.

De fato, o Mercosul possui um Tribunal (em funcionamento desde 2004) e um Parlamento (em funcionamento desde 2007), mas que foram criados posteriormente ao bloco fundado em 1991. Ademais, carecem de poder decisório efetivo, por tratarem-se sumamente de instituições consultivas. Desse modo, possuem competências limitadas para intervir no processo de condução do Mercosul, inclusive na supervisão dos atos dos demais órgãos, como o CMC e o GMC. Logo, carece de mecanismos de freios e contrapesos que regule o andamento do bloco e dê mais legitimidade à integração, por envolver mais atores políticos, ter mais debates de opiniões contrárias e ser mais transparente aos cidadãos. No entanto, como assinala Mariano (2013), a instância parlamentar por si só não é suficiente para superar o déficit democrático, pois apesar de criar mecanismos de participação, é necessário um esforço maior para que os interesses sociais de fato estejam representados e empoderados – um desafio que perpassa as democracias liberais há séculos e se mescla com as limitações do sistema econômico vigente. Além disso, não apenas há um déficit democrático, como há uma grande percepção de déficit democrático, isto é, a população se sente distante da integração, do seu processo decisório e de suas consequências.

Portanto, em um contexto de discussão sobre os rumos da integração no século XXI, após os acontecimentos recentes, deve-se pensar não apenas nos objetivos dos esquemas regionais, mas também nas suas formas. Em outros termos, o papel de instituições supranacionais e intergovernamentais, o peso dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de cada Estado e também o peso dos equivalentes regionais desses poderes. Nesse quadro, quais os instrumentos são necessários para que a população, com todos seus grupos sociais, sinta os impactos da integração, opine e decida sobre seus rumos?

Referências

MARIANO, Karina Lilia Pasquariello. Parlamento do Mercosul, Integração e Déficit Democrático. Século XXI, Porto Alegre, v. 4, n. 2, jul./dez. 2013.

MERCOSUR. Órganos Derivados de Textos Fundacionales. Disponível em: <http://www.mercosur.int/innovaportal/v/3878/2/innova.front/organos-derivados-de-textos-fundacionales>. Acesso em: 8 maio 2018.

NEVES, João Augusto de Castro. O Congresso Nacional e a política externa brasileira. In: ALTEMANI, Henrique; LESSA, Antônio Carlos (Org.). Relações internacionais do Brasil: temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 2006.

RIVAS, Eduardo. Adopción e internalización de la normativa comunitaria en el seno del MERCOSUR: Un repaso histórico. Comunicação & política, v. 24, n. 1, jan./abr. 2006.

Escrito por

André Leite Araujo

Pós-Doutorando na UNESP, doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Bolonha, mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP. É pesquisador do Observatório de Regionalismo, da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo e do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais. Seus estudos enfatizam a Política Externa Brasileira e o regionalismo da América Latina nos séculos XX e XXI, com ênfase nas pesquisas sobre Legislativos nacionais e Mercosul.