Nas últimas semanas, a notícia da aplicação de uma multa de 4,3 bilhões de Euros pela União Europeia ao Google tomou conta dos jornais no Brasil e no mundo. Conforme noticiado pela Folha de São Paulo, trata-se de punição imposta pela Comissão Europeia à prática ilegal de vincular a instalação do sistema de buscas e de navegação do Google ao acesso à loja de aplicativos da empresa – o Google Play[1].
Segundo Margrethe Vestager, comissária de competição da Comissão Europeia e responsável pela aplicação da multa, ao obrigar os fabricantes de celular a pré-instalar seus serviços e aplicativos no sistema operacional Android, o Google estaria impedindo os consumidores europeus de se beneficiar de uma competição efetiva no setor.
O episódio evidencia o componente regulador da União Europeia. Nesse sentido, em entrevista à Folha se São Paulo, Vestager afirmou que a defesa de um mercado justo é um dos elementos que fortalecem o papel da União Europeia, na medida em que julga importante que os cidadãos do bloco saibam que alguém está tomando conta do mercado[2].
Institucionalmente, embora as ideias de mercado justo, de equilíbrio nas trocas comerciais e de lealdade na concorrência, conforme estabelecem o preâmbulo e o artigo 3º do Tratado de Lisboa, vinculem todos os espaços da União Europeia, coube ao braço executivo do bloco – a Comissão Europeia – o protagonismo no tema.
Em linhas gerais, a atuação da Comissão se dá no sentido coibir toda e qualquer prática que limite a concorrência dentro do mercado europeu. Nesse sentido, o órgão supervisiona os acordos e fusões entre empresas, de modo a impedir a formação de cartéis, monopólios e demais práticas desleais; empreende esforços de liberalização de setores controlados por monopólios estatais, como transportes, energia, serviços postais e telecomunicações; inibe e pune empresas que utilizam de sua posição dominante para expulsar concorrentes e/ou impedir a entrada destes no mercado; e, fiscalizam apoios financeiros concedidos pelos Estados-membros da União Europeia ao setor privado, de modo a garantir que estes não produzam distorções que prejudiquem o bom funcionamento do mercado europeu[3].
Contudo, práticas da própria Comissão Europeia evidenciam uma contradição entre a defesa da competição e políticas que resultam em distorções comerciais, dentre as quais se destaca a Política Agrícola Comum (PAC), em vigor desde a década de 1960.
Juntamente à criação da união aduaneira e da Comunidade Europeia de Energia Atômica (EURATOM), a PAC foi elemento central para a fundação da Comunidade Econômica Europeia (CEE) pelo Tratado de Roma, em 1957. Pensada a partir do objetivo legítimo de garantir o abastecimento de gêneros alimentícios no continente, que havia sofrido com a fome durante as Grandes Guerras, foram criados mecanismos que visavam aumentar a produtividade agrícola, garantir um bom nível de vida à população agrícola, e assegurar preços razoáveis e estáveis no abastecimento ao consumidor final.
Atualmente, contudo, a PAC – sobretudo as políticas de preços mínimo e subsídios à produção – tem gerado discussões sobre distorções comerciais e produzido entraves aparentemente insuperáveis nas negociações internacionais, seja no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou em níveis bilaterais, como o caso das tratativas entre a União Europeia e o Mercosul.
Ora, se a defesa do mercado justo e da concorrência são valores a serem perseguidos e preservados pela União Europeia, há uma contradição quando nos deparamos com a PAC e suas políticas de subsídios. Nesse sentido, parece haver um tratamento desigual: para as gigantes multinacionais, como o Google, que de fato implementam medidas que apontam para uma tentativa de controlar e monopolizar o mercado, vale a defesa da concorrência e a intervenção da Comissão Europeia; para as políticas europeias que distorcem o mercado agrícola e beneficiam, em larga medida, grandes conglomerados do agronegócio europeu, justifica-se o protecionismo sobre a égide da soberania alimentar.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/07/uniao-europeia-multa-google-em-r-19-bi-por-pratica-anticompetitiva-com-android.shtml
[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/03/competicao-tem-de-mirar-consumidor-e-qualidade-do-servico.shtml
[3] http://ec.europa.eu/competition/consumers/what_pt.html
 

Escrito por

Guilherme Ferreira

Professor Adjunto da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus de Osasco. Doutor e Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/ UNICAMP/ PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - UNESP, campus de Franca, tendo realizado intercâmbio acadêmico de graduação no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. É pesquisador do Observatório de Regionalismo (ODR).