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Filipe Philipps de Castilho
Doutorando do programa de Pós-Graduação em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná. Bolsista CAPES. Mestre em Ciência Política e membro do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NEPRI) pela UFPR. Email: philipps.filipe14@gmail.com
Em 1992, o Tratado de Maastricht deu contornos finais a um processo de integração em curso há quase quatro décadas. A Europa enfim definia de maneira mais elaborada o seu bloco regional, fincando os alicerces do que hoje conhecemos como União Europeia. Mas se por um lado essa consolidação significou um aprofundamento da integração, por outro fomentou um sentimento diametralmente oposto, contrário à centralização do poder em esfera supranacional, bem como fez nascer e crescer o receio de uma perda de soberania nacional. Dentro desse ideário, a União Europeia seria o álibi perfeito para explicar insucessos econômicos e financeiros ao longo dos anos, especialmente por parte da extrema-direita. O objetivo deste artigo é o de fazer uma pequena revisão histórica do euroceticismo como ideia e prática, procurando demonstrar, ainda que brevemente, o seu nascimento como princípio e conceito, locupletado por seu fomento catalisador, oriundo da crise econômica de 2008.
Segundo Bertoncini e Koeing (2014), podemos encontrar uma categorização com quatro raízes substantivas do euroceticismo como conceito: democracia; soberania nacional; liberalismo e identidade. Tomando por base esses quatro elementos, os eurocéticos criticam ou rejeitam a União Europeia (Bertoncini; Koeing, 2014). Por razões econômicas, migratórias ou político-ideológicas, o euroceticismo vem ganhando terreno em vários Estados-Membros da União Europeia. Segundo John Palmer (2015), os eurocéticos são cidadãos ou políticos que se apresentam como críticos ao bloco europeu que, segundo eles, retira os poderes do seu governo nacional, representando uma ameaça à soberania do Estado. Ao mesmo tempo em que o advento de uma comunidade europeia progrediu para a criação do bloco europeu após a Segunda Guerra Mundial, emergiram diferentes vertentes pessimistas contra a comunidade. O euroceticismo como conceito ganha popularidade após um célebre discurso da então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, realizado em Bruges, em 1988, cujo teor, que se opunha à Europa integrada, serviu como o alicerce do argumento eurocético (Palmer, 2015).
No campo acadêmico, o conceito ganhou contornos mais sólidos com o trabalho de Paul Taggart, no ano de 1998. A tipologia, então, se definiu em duas vertentes distintas: uma completamente contrária ao processo de integração e a própria união dos Estados como comunidade, e outra que não se opõe totalmente à integração, mas que mira com um olhar sensivelmente mais crítico o bloco regional e o projeto de construção unitária, muito embora, para Taggart (1998), todos os oponentes do bloco são, pelo menos, céticos. Dentro do discurso eurocético, as nações são assumidas como entidades primordiais, e a nacionalidade é identificada como a forma genuína de identidade política. Consequentemente, o “Estado-nação” é visto como sendo a forma natural e única de organização política; por outro lado, a União Europeia é vista como uma construção política artificial que vai contra uma suposta ordem lógica, carecendo do senso de identidade comum necessário para a ação coletiva (Hawkins, 2022).
O euroceticismo, portanto, pode ser definido como uma posição crítica ao processo de integração europeu (em geral) e à União Europeia (em particular). Segundo Szczerbiak e Taggart (2003), o euroceticismo pode ser classificado como duro (hard) ou brando (soft). O euroceticismo duro tem como mote uma rejeição dos princípios do projeto de integração e defende a saída peremptória da União Europeia, enquanto o brando é contrário a determinadas políticas comunitárias, propondo uma reforma das instituições europeias (Usherwood; Startin, 2013; Baker; Schnapper, 2015; Szucko, 2017).
Lauren McLaren (2015) defende que a onda eurocética estaria relacionada com a crescente insatisfação dos cidadãos europeus com o funcionamento de seus governos nacionais como um todo. Essa insatisfação é projetada contra a União Europeia e está atrelada, amiúde, com um desconhecimento sobre o bloco europeu. Geralmente os mais versados e instruídos (e aqueles que discutem política com maior frequência) tendem a ter uma atitude mais positiva sobre a integração europeia e suas instituições. As explicações que surgem para o crescente sentimento eurocético estariam em consonância com a falta de clareza sobre o papel das instituições da UE; com o receio dos Estados-Membros acerca da perda de símbolos e identidade nacionais; e com a relação de custos-benefícios pessoais resultantes do processo de integração europeia (McLaren, 2015).
Dentro dessa seara, diferentes tipos de partidos se utilizam do pensamento eurocético. Se compararmos os movimentos eurocéticos entre cada Estado, podemos ver que cada país guarda suas particularidades e seu próprio euroceticismo, em uma particularização definida pelo histórico e pela trajetória de cada localidade. Essa “direção histórica” determinará como um Estado será influenciado pelo conjunto de ideias que permeiam a sociedade. No entanto, mesmo com as particularidades de cada região, também existem fatores que são basilares para o conceito, e que são compartilhados entre os grupos contrários à integração (Santana et al, 2019). Tais fatores ficaram mais pronunciados no pós-2008.
Se era uma ideia até certo ponto vaga no contexto pós-Tratado de Maastricht, foi com a crise de 2008 que encontramos o aprofundamento do euroceticismo. A crise teve suas origens ainda em 2006, com o estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos, agravada pela ausência de mecanismos de regulação do mercado e do setor financeiro. Rapidamente alcançou escala global, deliberada tanto pela crise no sistema financeiro como pela desaceleração econômica global, que se reforçaram mutuamente, gerando contração econômica severa e níveis de débitos sem precedentes (Dhameja, 2010). Como consequência da crise, um rápido declínio no consumo foi seguido por um declínio de demanda de exportação e de investimentos, além de agravar questões sociais (Pecequilo, 2014).
A crise chegou à Europa em 2009, afetando primeiramente os países economicamente mais frágeis, que já possuíam dívidas e problemas econômicos, como Portugal, Itália, Irlanda, Espanha e Grécia. Essa conjuntura levou à uma crise na Zona do Euro, que explodiu em 2010 e agravou o cenário. Na ocasião, o bloco foi alvo de críticas pela demora na implementação de medidas efetivas para mitigar a crise, pela falta de coordenação entre a ação dos Estados, e pela pouca representatividade e engajamento popular nas tomadas de decisão. Com esse cenário, os partidos eurocéticos encontraram a fórmula ideal para aglutinar suas ideias (Blikstad, 2015).
Na Zona do Euro, o impacto e a forma de se lidar com a crise foram relativamente diferentes do resto do mundo, inclusive se compararmos com outros membros da UE que não adotaram a moeda (Palmer, 2015). Essa diferença se explica pela complexidade das instituições para se lidar com uma crise de tal magnitude, fator acrescido pelas discrepâncias entre as economias envolvidas. A crise impactou em duas ondas a UE: em 2008, o boom imobiliário nos Estados Unidos se espalhou por todo o mundo, em especial para a Europa; e em 2010, houve o choque financeiro das dívidas de títulos públicos dos países da Zona Euro. Nas duas situações tivemos uma ineficácia na atuação da União Europeia para resolver a situação de forma efetiva. Medidas austeras foram empregadas, mas não fluíram de acordo com o avanço da crise (Vasilopoulou, 2013). Estas incluíram transferências fiscais entre os Estados endividados e os Estados do Norte, maior coordenação de políticas macroeconômicas nacionais e reformas nos Tratados do bloco. Neste contexto foi lançado o programa “Transações Monetárias Definitivas” (TMD) para compra de títulos soberanos dos países em crise sem limites do tamanho de operações para resguardar e garantir estes títulos instáveis, e o Mecanismo Europeu de Estabilidade, criado para conceder auxílio financeiro por meio de empréstimos a Estados que não possuíam condições de fazer operações de salvamento financeiro nacional (Henriques, 2016; Blikstad, 2015; Gros, 2015).
Com o aprofundamento da crise econômica, encontramos também uma crise política, dada a perda sensível de apoio popular aos governos nacionais de alguns países. A crise de legitimidade se baseou tanto nos problemas econômicos e nas repercussões sociais dessa situação, quanto na retomada da sensação de impotência e isolamento da população em relação às tomadas de decisões institucionais, gerando uma sensação de déficit democrático (Henriques, 2016).
Entre 2009 e 2024, diversas eleições ocorreram no âmbito nacional e regional nos Estados-membros da UE, e os resultados dos pleitos mostraram não apenas mudanças não esperadas, como também polarizações e o surgimento de novos partidos com grande força (Santana et al, 2019). Ao observarmos as eleições para o Parlamento Europeu de 2014, por exemplo, em uma conjuntura com a crise já arrefecendo e com diversas mudanças eleitorais, notamos um aumento de 18% no total de assentos no Parlamento para partidos eurocéticos, se comparados aos resultados de 2009, com 135 dos 751 assentos preenchidos por partidos contrários ao bloco. Ao analisarmos o recorte com maior ênfase, encontramos uma homogeneidade ideológica nos partidos eurocéticos, com um viés populista e de extrema-direita (Emanuele; Maggini; Marino, 2016). Já nas eleições para o Parlamento em 2019, os números não mostraram tanta alteração: se em 2014, 27% dos eurodeputados pertenciam ao grupo parlamentar que se opunha à União Europeia, o quadro em 2019 mostrou que, incluídos os não-inscritos, 31% dos eurodeputados poderiam ser considerados eurocéticos. O número de eurocéticos brandos diminuiu, enquanto a representação de eurocéticos radicais aumentou. Já para as eleições de 2024, o aumento dos parlamentares eurocéticos não atingiu os níveis previstos em algumas projeções, mas voltou a ser a parcela política com maior crescimento no Parlamento; ao todo, pelo menos 202 políticos eurocéticos foram eleitos, o que totalizou 28% dos eurodeputados (Quesado, 2024).
Em suma, podemos dizer que o contexto pós-Segunda Guerra foi o solo propício para o fomento de uma Europa integrada e, à exceção dos britânicos, o ideal conjunto caminhou de maneira consonante para as principais economias da parte ocidental do continente. Mas com a consolidação do projeto institucional, com o Tratado de Maastricht em 1992, encontramos um dualismo: um aprofundamento da integração, acompanhado por um sentimento eurocético tímido, que cresceria ao longo do tempo.
Após a crise de 2008, o crescente euroceticismo nos países do bloco saiu das fronteiras nacionais, passando a ocupar um papel de destaque no seio da própria União Europeia. As estruturas do cenário político advindas do contexto de crise econômica e financeira acabaram por contribuir de maneira muito pungente para que o euroceticismo saísse do domínio nacional para se afirmar e consolidar na esfera supranacional, sobretudo no Parlamento Europeu, muito pelo fato de o Parlamento ser o único órgão sujeito ao voto popular direto dentro do bloco, através das eleições europeias. Isso favoreceu a eleição de representantes eurocéticos, em uma tendência que se intensificou no cenário pós-crise. Se em um primeiro momento o sentimento eurocético nasce como uma contestação de natureza cooperativa, após os desdobramentos da crise, o ideal passa a ser acompanhado por uma contestação mais radical, com o potencial para promover a desintegração, como visto no Brexit. Esta alteração no tipo de contestação deliberou para que o fenômeno se alastrasse para além das fronteiras nacionais.
O artigo pretendeu fazer uma pequena revisão histórica e conceitual do ideal eurocético em solo europeu, procurando mostrar o desenvolvimento do ceticismo ao bloco regional ao longo do tempo, identificando sua gênese e seus fatores exponenciais. O aprofundamento do euroceticismo em 2008 não foi meramente pontual. Encontramos um forte crescimento eurocético nas eleições para o Parlamento Europeu no pós-crise de 2008, com os pleitos de 2009, 2014, 2019 e 2024 mostrando que a vertente de extrema-direita contrária ao regionalismo não apenas ganhou força, como parece ter se calcificado em parte do eleitorado europeu, devendo ser analisada com acuidade e continuidade ao longo do tempo.
REFERÊNCIAS
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