Imagem- Fonte: Europa.eu –

No próximo dia 25 de março, será celebrado o sexagésimo aniversário do Tratado de Roma, ainda em vigor e que instituiu as bases da Comunidade Europeia de Energia Atômica (EURATOM) e da Comunidade Econômica Europeia (CEE), que deu origem à atual União Europeia (UE). Diante da conjuntura contemporânea de discussão e revisão políticas dos projetos de integração regional, cabe ressaltar a história, os avanços e os desafios na Europa, cujo regionalismo é observado como modelo por outros blocos regionais.

Breve histórico

Assinado em 1957 por Alemanha Ocidental, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos, o Tratado somou as novas organizações regionais à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), que formaram as “Comunidades Europeias” que, apesar de articuladas entre si, não constituíam uma única instituição pluritemática. Desse modo, o processo de integração europeu reforçava sua preocupação com energia e recursos para o desenvolvimento econômico e industrial, após a 2ª Guerra Mundial, por meio da agenda de cooperação internacional em carvão, aço e energia atômica, aspectos importantes para as elites transnacionalizadas. Com governos orientados à contenção do comunismo e à reconstrução europeia pós-nazi-fascismo, apoiados financeiramente por Washington e à luz da ascensão do Estado de Bem-Estar social, o viés econômico marcou a construção do processo europeu. Dentro do que se convencionou chamar de 1ª onda de regionalismo, as políticas protecionistas identificaram as relações do arranjo regional com a comunidade internacional, visando fortalecer a liberalização dentro das Comunidades Europeias. Nesse contexto, a CEE assumiu a preponderância da integração. Primeiramente formulada como união aduaneira, objetivou a liberalização de tarifas e a circulação de bens entre seus membros e o estabelecimento da Tarifa Externa Comum.

Entre a assinatura do Tratado de Roma e o Tratado de Maastricht, em 1992, que criou a União Europeia, além do aprofundamento da integração, houve o alargamento da comunidade. Dinamarca, Irlanda e Reino Unido, em 1973, constituíram a primeira expansão, ao passo que a Grécia, em 1981, e Espanha e Portugal, em 1986, integraram os movimentos seguintes. Contudo, também houve períodos de estagnação da CEE, assim como o relançamento do processo, na década de 1980, que aprofundou os mecanismos econômicos liberalizantes na Europa.

No entanto, as comemorações do sexagésimo aniversário de assinatura do tratado que deu origem à UE coincidem com a maior crise econômica e política vivida pelo bloco, o que torna a data ainda mais relevante para um balanço dos resultados alcançados até agora.

Principais resultados

Um dos principais impactos da formação da UE e mais importante vocação do bloco foi o fim de disputas beligerantes entre seus membros, garantindo o mais longo período de paz na história do continente [1]. Trata-se de um feito notável em uma região na qual ocorreram guerras sucessivas durante séculos e que em meados de 1950 acabava de encerrar seu mais destrutivo conflito. O momento histórico da assinatura do Tratado de Roma, como vimos anteriormente, reunia diversos interesses comuns entre os países, como a contenção do comunismo e a reconstrução da Europa, propiciando o ambiente ideal para a cooperação e a reconciliação entre os antigos adversários da 2ª Guerra Mundial, especialmente França e Alemanha Ocidental. A disseminação e consolidação da democracia na Europa também contou com a contribuição da então CEE, movimento que teve início na década de 1980 com a incorporação de países que, à época, emergiam de regimes ditatoriais, como Espanha, Portugal e Grécia. Atualmente, a UE conta com 28 países democráticos e eleições diretas para o Parlamento Europeu. Diante desse contexto, a UE foi escolhida para receber o Prêmio Nobel da Paz em 2012 por sua contribuição à paz, democracia e promoção dos direitos humanos.

Em relação aos resultados econômicos alcançados pelo bloco, as cifras disponibilizadas pelo último relatório do “Centro de Estudos Estratégicos Europeu [2]” são igualmente notáveis. O total de exportações da UE representa 5,8 trilhões de euros, correspondendo a um terço das exportações mundiais. Para fins de comparação, esse valor significa duas vezes as exportações da China e três vezes as exportações dos Estados Unidos. Além disso, o relatório aponta que a UE é o principal parceiro comercial de 80 países e a maior fonte e destinação de investimento estrangeiro direto (IED).

Apesar das contestações a respeito do euro, a moeda única europeia é a segunda mais importante do mundo e está consolidada como reserva de divisas mundial. Por fim, o relatório ressalta o maciço investimento feito pela UE no desenvolvimento de novas tecnologias desde 1984, representando cerca de 200 bilhões de euros. Já no século XXI, foi lançado o projeto “Horizonte 2020”, que investirá 80 bilhões de euros para pesquisas tecnológicas até 2020, consolidando a UE como líder em inovação e responsável por um quarto dos gastos mundiais em pesquisas e um terço das requisições de patentes.

Estabelecida como um dos centros da economia mundial, os membros da UE concentram recursos financeiros, o que permite que a região sobressaia em rankings de indicadores socioeconômicos, garantindo a suas populações um dos maiores índices de qualidade de vida do mundo – o que não elimina as desigualdades entre os Estados-membro nem dentro de tais países.

Desafios

Ainda que tais resultados posicionem a UE como principal projeto de integração regional existente, os novos desafios enfrentados pelo bloco no início do século XXI têm colocado em xeque sua capacidade de responder aos problemas estruturais que, para alguns, ameaçam a continuidade da própria integração europeia, ao passo que segundo outros demonstram diferentes projetos de integração que entram em conflito. Nos últimos anos, percebeu-se a crise econômica, o aumento da quantidade de imigrantes, a ascensão do euroceticismo, o aprofundamento do déficit democrático e a dificuldade de solucionar essas questões com o arcabouço institucional atual.

Desde a eclosão da crise econômica mundial, em 2008, o modelo de crescimento representado pela zona do euro foi colocado em dúvida diante das dificuldades de solucionar os problemas econômicos, sociais e políticos em todas as sociedades do bloco. Apesar da configuração como projeto de união regional, algumas das propostas para atenuar os efeitos foram operadas em nível nacional, o que evidenciou as diferentes capacidades de cada membro. Por um lado, Alemanha, França e Reino Unido possuem mais recursos para lidar com a conjuntura, ao passo que os chamados “PIIGS” (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) sofreram de forma mais acentuada os efeitos da crise e demandaram mais auxílio da UE. Em 2015, o referendo grego acerca da proposta de resgate da UE e do FMI, no âmbito da crise da dívida pública grega, tornou-se um marco na divergência sobre o projeto de integração e o papel dos países mais ricos frente à situação dos demais. Ademais, evidenciou as diferenças entre políticas supranacionais, como a monetária, e as nacionais, como a fiscal, isto é, a convergência entre os 28 membros não é plena, o que ocasiona tais distorções e apresenta mais desafios sobre avançar ou retroceder na integração.

Cabe ressaltarmos que o contexto de crise econômica indelevelmente está vinculado a aspectos políticos. Entre outros, podemos destacar que os critérios de admissibilidade à zona do euro não são integralmente técnicos nem neutros, mas são discutidos com base em múltiplos interesses dos atores envolvidos e que resultam na escolha pela manutenção das assimetrias entre os países europeus. Portanto, a observância das instituições supranacionais não é o único elemento a ser analisado para a compreensão da realidade europeia, o que demanda o olhar sobre as bases socioeconômicas que alimentam os conteúdos dos projetos de integração, como as relações de disputa entre forças políticas, as relações entre Estado e sociedade e as relações entre os Estados. As decisões dessas interações possuem custos e benefícios diferentes para grupos diferentes.

Nesse cenário, a decisão democrática pelos modelos econômicos também é questionada. A discussão sobre a legitimidade das instituições regionais criadas na Europa, desde a entrada em vigor do Tratado de Roma, traz à tona a associação entre poder político e interesses econômicos, ao entender que o desenho institucional da UE reflete interesses de determinados grupos, mesmo construindo narrativas de participação democrática. A falta de representatividade está em pauta desde a década em 1970, quando instituiu-se um parlamento supranacional que operava na região, mas possuía representantes dos Estados-nacionais. Ademais, os debates realizados neste órgão não necessariamente acompanham as decisões tomadas em outros órgãos (Conselho de Ministros e Comissão Europeia), no que se pode considerar como uma imperfeição dos “freios e contrapesos” entre as instituições republicanas liberais. Até recentemente, com discurso tecnocrata, os resultados positivos na melhoria do padrão de vida buscavam justificar o processo com pouca participação, considerando os resultados como fonte de legitimidade e não a formulação da política pública (STERNBERG, 2015). Nesse sentido, a configuração da UE aumenta a distância entre os cidadãos e as instâncias decisórias supranacionais e intergovernamentais, gerando um déficit democrático que é percebido mais intensamente no cenário de crise.

Apesar de que, no século XX, os partidos de centro-direita e centro-esquerda estiveram nos governos europeus e elaboraram a presente estrutura, no século XXI notou-se a ascensão de partidos de direita e de esquerda que criticam o projeto construído nos últimos 60 anos. Tais movimentos são denominados eurocéticos e são compostos por amplo espectro ideológico, porém com recente predominância da extrema-direita. Uma das principais bandeiras destes últimos é a contenção da imigração, vista como negativa para o sistema social europeu e associada ao terrorismo devido às origens dos imigrantes (predominantemente oriundos da Síria, Iraque e Afeganistão, países de maioria muçulmana). Desde 2015, com o agravamento da guerra na Síria, estima-se que mais de um milhão de pessoas ingressaram ilegalmente na Europa, principalmente através de rotas na Grécia, Espanha, Itália e Hungria, países considerados a porta de entrada do fluxo migratório. A divisão desproporcional dos imigrantes entre os membros da UE gera tensões, o que os levou a criar uma controversa cota de realocação de refugiados. Outro ponto questionado pelos nacionalistas e eurocéticos é o livre trânsito de pessoas estabelecido pela zona de Schengen, especialmente após o ataque terrorista perpetrado em Paris no ano de 2015.

A somatória de questões tão complexas e o recrudescimento da retórica nacionalista culminaram na primeira decisão de sair do bloco, contrariando o princípio de “ever-closer union” especificado no preâmbulo do Tratado de 1957. No ano passado, a população do Reino Unido votou pelo “Brexit” – processo ainda em andamento – que surpreendeu as partes envolvidas e reacendeu debates sobre o estado da integração europeia e as opções que podem ser tomadas e os impactos delas, tanto para os britânicos quanto para as outras sociedades europeias. Paralelamente, a decisão tomada pode ser lida junto a fatores como a ascensão da direita eurocética, a xenofobia e o aumento do fluxo de imigrantes de dentro da Europa e de fora da Europa, além das capacidades dos governos nacionais e do bloco regional lidarem com essas questões, mantendo a participação e a representatividade democráticas.  Para as comemorações do 60º aniversário do Tratado de Roma, com 27 membros sem o Reino Unido, a chanceler alemã Angela Merkel (2005-atual) propôs que a União Europeia tivesse diferentes velocidades, “that not all will participate every time in all steps of integration” (MERKEL, 2017). Visando acomodar as diferenças entre os projetos de desenvolvimento e as economias domésticas, essa proposta pretende impedir mais deserções do bloco.

NOTAS

[1] Período conhecido como “Pax Europaea”. Refere-se apenas aos países membros da UE, sem considerar as guerras da desintegração da Iugoslávia na década de 1990 e as recentes tensões entre Rússia e Ucrânia.

[2] European Political Strategy Center. Relatório disponível aqui

PARA MAIS INFORMAÇÕES (REFERÊNCIAS)

APELDOORN, Bastiaan van. Transnational Capitalism and the Struggle over European Integration. Routledge, 2002.

MERKEL, Angela. Merkel says Europe’s future could be two-speed. The Local, Feb. 2017. 

MORAVCSIK, Andrew. Europe After the Crisis. Foreign Affairs, May/June, 2012.

STERNBERG, Claudia (2015). Political legitimacy between democracy and effectiveness: trade-offs, interdependencies, and discursive constructions by the EU institutions. European Political Science Review, 7.

Escrito por

André Leite Araujo

Pós-Doutorando na UNESP, doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade de Bolonha, mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP. É pesquisador do Observatório de Regionalismo, da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo e do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais. Seus estudos enfatizam a Política Externa Brasileira e o regionalismo da América Latina nos séculos XX e XXI, com ênfase nas pesquisas sobre Legislativos nacionais e Mercosul.