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Durante a crise migratória que ocorreu na Europa em 2015, um grupo de países recebeu grande destaque na mídia internacional: Visegrado ou V4. Composto pela Polônia, República Tcheca, Hungria e Eslováquia, o grupo recusou-se a aceitar as cotas obrigatórias de refugiados impostas pela União Europeia, suscitando intensa discussão sobre xenofobia, migração e a ascensão da extrema direita no continente. A inédita atenção recebida gerou dois resultados: por um lado, despertou o interesse do público geral em sua trajetória e em seu papel na dinâmica da integração europeia; em outra perspectiva, fortaleceu a percepção entre os membros do grupo de que suas ideias podem resolver os problemas europeus mais prementes e que devem participar ativamente dos rumos da integração.
Antes de prosseguir na análise dos eventos recentes, cabe retomar a origem do grupo e seus principais objetivos. Primeiramente, o grupo de Visegrado é uma aliança diplomática para cooperação entre seus membros e não possui estruturas formais, tendo sido criado em 1991 no contexto das incertezas geradas pelo colapso do comunismo. Ansiosos para se desvencilharem de seu passado soviético e consolidarem suas jovens democracias, os três países conceberam o grupo como uma estratégia para auxiliar o processo de entrada na então Comunidade Econômica Europeia (CEE – desde 1993, União Europeia) e na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). À época, tal agenda ficou conhecida como “retorno à Europa” (Latawski, 1993).
Dessa forma, em 15 de fevereiro de 1991 os presidentes Václav Havel (1989-1992) da Tchecoslováquia, Lech Walesa (1990-1995) da Polônia e o primeiro-ministro József Antall (1990-1993) da Hungria se reuniram na cidade de Visegrado, localidade que possui forte simbolismo histórico para os três países e que, por esse motivo, batizou o grupo de cooperação. Em 1993, com a dissolução pacífica da Tchecoslováquia, Visegrado incorporou a Eslováquia como novo membro.
Cabe ressaltar que os ideais democráticos permearam a criação de Visegrado, assim como uma forte oposição ao nacionalismo[1] (Rupnik, 2016) que poderia desestabilizar a Europa Central e dificultar a inserção desses países na política europeia mais ampla. Imbuído pelo espírito democrático e de solidariedade, o grupo de Visegrado atravessou a década de 1990 como importante fórum de discussão e resolução de conflitos entre seus membros, além de intercambiarem experiências para o preenchimento dos requisitos de ingresso na União Europeia. Ainda que o entusiasmo com o grupo tenha sofrido alguns reveses ao longo da sua trajetória, especialmente durante os três mandatos do primeiro-ministro eslovaco Vladimir Meciar (1990-1991, 1992-1994 e 1994-1998), que reacendeu o nacionalismo de seus conterrâneos, Visegrado se manteve coeso e obteve um importante marco no ano 2000, quando foi criado o Fundo Internacional de Visegrado. Com sede em Bratislava, na Eslováquia, a organização financia projetos nas áreas de educação, ciência, meio ambiente e defesa, oferecendo também bolsas de estudos para pesquisadores. Entre suas conquistas, é importante ressaltar que Visegrado colaborou para o incremento das relações entre seus membros e outros sub-grupos europeus homônimos, como a BENELUX (Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo) e o Conselho Nórdico (Suécia, Dinamarca, Noruega, Islândia e Finlândia).
A primeira vitória importante de Visegrado ocorreu em 1999, quando a República Tcheca, a Polônia e a Hungria ingressaram na OTAN. Nesse sentido, um dos principais objetivos de criação do grupo foi atingido, ainda que a Eslováquia tenha ficado de fora devido ao déficit democrático e a retórica nacionalista do presidente Meciar. O país seria admitido na organização apenas em 2004, mesmo ano em que Visegrado atingiu seu principal objetivo: a admissão conjunta na União Europeia (UE). A primeira década do século XXI encerrava, com sucesso, os desígnios perseguidos por Visegrado, que optou por manter a cooperação subregional mesmo depois do ingresso na UE e utilizar o grupo como um canal de interlocução entre seus membros e Bruxelas.
Mesmo assim, a falta de uma agenda específica colocou em xeque a continuidade de Visagrado e diversos analistas decretaram sua irrelevância. Relegado a uma influência circunscrita aos seus membros, recebeu pouca atenção da academia e da imprensa, situação que seria alterada durante a crise da imigração europeia ocorrida em 2015. O agravamento da guerra na Síria ocasionou um fluxo migratório de mais de um milhão de pessoas para a Europa, exigindo que a EU elaborasse um plano de emergência para realocar cerca de 160 mil refugiados entre seus membros através de uma cota. Essa proposta causou forte reação dos países centro-europeus, especialmente da Hungria, cujo território era rota de passagem de refugiados que se direcionavam para a Europa ocidental.
Liderada pelo nacionalista, conservador e eurocético Viktor Órban desde 2010, a Hungria criticou com veemência a política de cotas de realocação de refugiados da UE e foi o primeiro país a adotar medidas radicais em relação ao problema, construindo uma cerca de 175 km de extensão na fronteira com a Sérvia para impedir a entrada de imigrantes. A população húngara apoiou a medida e parece convencida de que seus principais problemas derivam da entrada de estrangeiros em seu território, visto que em 2018 reelegeu Órban para seu terceiro mandato consecutivo como primeiro-ministro. O aumento da xenofobia entre os húngaros também ficou evidente nos resultados da pesquisa “Migrant Acceptance Index” divulgada pela consultoria Gallup, em 2017, que mostrou a Hungria como o terceiro país menos receptivo para imigrantes no mundo. Sozinho, Órban já traria problemas para a UE com suas medidas domésticas e seu discurso eurocético; porém, a situação se agravou com o apoio de outro membro de Visegrado, a Polônia. A conservadora Beata Szydlo, primeira-ministra entre 2015 e 2017, rejeitou as cotas de realocação e fez diversas declarações polêmicas, relacionando a entrada de migrantes diretamente ao terrorismo.
A Eslováquia, governada pelo social-democrata Robert Fico (2012-2017), endossou a postura da Hungria e da Polônia e endureceu sua política migratória alegando diferenças religiosas e culturais, visto que é um país predominantemente cristão e os refugiados são muçulmanos. Por fim, a República Tcheca adotou a mesma postura de seus pares em relação ao problema, haja vista que o primeiro-ministro Andrej Babiš (2017-atual) fez diversas declarações contra a imigração. Da mesma forma, seu antecessor, Bohuslav Sobotka (2014-2017) igualmente criticava a política migratória da UE.
Visegrado voltou, assim, aos holofotes como um grupo de países que reforça a onda conservadora que desafia a UE nos últimos anos. Os discursos dos líderes dos quatro países estão impregnados de referências ao caráter cristão da Europa e a pretensa homogeneidade cultural e étnica do continente. Essas características, segundo esses países, devem ser defendidas das ameaças da globalização e do islamismo. A UE é ainda criticada por sua permissividade com os imigrantes e por forçar seus membros a acatarem cotas e outras políticas que atentam contra a soberania e segurança de seus Estados.
No que diz respeito às políticas domésticas dos membros de Visegrado, os princípios democráticos também tem sido violados, especialmente na Hungria e na Polônia, que adotaram medidas contra a liberdade de imprensa e violaram direitos dos pouquíssimos refugiados que chegam aos seus territórios, conforme apontam relatórios da Anistia Internacional de 2016. Em setembro de 2018, a UE deu início a um movimento de reação contra a deterioração do Estado de direito nos dois países e utilizou, pela primeira vez, o artigo 7º do Tratado da União Europeia para punir a Hungria pela perseguição contra jornalistas e organizações não governamentais de apoio aos refugiados, além de violar os direitos humanos dessa população.
É interessante notar as peculiaridades do euroceticismo de Visegrado em relação a outras manifestações contra a UE no continente. Apesar das constantes críticas ao projeto de integração, não existe intenção, ao menos até o momento, de saída dos países de Visegrado da UE. Os líderes tem manifestado o desejo de reformar e alterar diversos dispositivos da integração europeia e suas principais propostas versam sobre o fortalecimento dos parlamentos nacionais, além da incorporação gradativa dos países dos Balcãs à UE como forma de contrabalancear o impacto econômico da saída do Reino Unido. Estimulados pelos líderes de extrema direita da Europa Ocidental e crescentemente inseridos na agenda política de Bruxelas nos últimos anos, o grupo de Visegrado ganhou protagonismo inédito e acredita que pode influenciar o futuro da integração europeia, indicando rumos para a solução de seus principais problemas.
Ainda assim, apesar de compartilharem a intenção de participar ativamente dos rumos da UE, pode-se observar uma crescente fratura entre os membros de Visegrado (Nič, 2016), visto que a República Tcheca e a Eslováquia adotam uma postura mais moderada quanto às críticas a Bruxelas e já demonstram preocupação com a imagem negativa de Visegrado entre os países da Europa Ocidental. É inegável também que esses dois países preservam suas respectivas democracias com mais zelo do que a Hungria e a Polônia e que querem ser vistos como iguais entre os demais membros da UE.
Em resumo, Visegrado foi um importante ator na transição de seus membros para a democracia e a economia de mercado, auxiliando-os a cooperarem e amplificarem suas vozes junto à União Europa. Seu papel na estabilidade da Europa Central também é relevante, tendo resolvido de forma pacífica e com sucesso diversas crises ao longo da década de 1990. Presume-se que Visegrado terá importância na redefinição da UE pós-Brexit, porém, resta saber se os demais países da UE concordarão com as soluções radicais propostas por Visegrado e se compartilham da visão de mundo desse subgrupo.
Visegrado e o Brasil
Curiosamente, apesar da distância geográfica e cultural entre os membros de Visegrado e o Brasil, após a eleição do presidente Bolsonaro ocorreu uma inédita aproximação entre esses países, especialmente com a Hungria e a Polônia. Como características comuns, podem-se apontar as tendências xenófobas, nacionalistas e anti-globalização, além da contestação quanto a interferência das organizações internacionais na soberania de seus Estados.
Durante o Fórum Econômico Mundial de realizado na Suíça, em janeiro de 2019, Bolsonaro se reuniu com o primeiro-ministro da República Tcheca, Andrej Babis e o presidente da Polônia, Andrzej Duda (2015-atual). O principal tópico, como esperado, foram as respectivas políticas migratórias e futuras oportunidades comerciais. Ainda em janeiro, Órban realizou visita oficial ao Brasil e encontrou Bolsonaro, que foi convidado a visitar os países de Visegrado para prospectar oportunidades de negócios. Apesar das simpatias iniciais, o alinhamento ideológico não bastará para aumentar a corrente comercial, visto que os países de Visegrado são os que menos exportam para fora da UE[2].O principal parceiro comercial do grupo, tanto para importações quanto para exportações é a Alemanha, seguido do comércio intragrupo de Visegrado. Resta saber se a inédita parceria Brasil-Visegrado se concretizará e quais benefícios trará aos envolvidos, para além da retórica.
Notas
[1] É importante lembrar que os quatro países de Visegrado fizeram parte do império Austro-Húngaro (1867-1918) e que o nacionalismo foi um elemento importante na independência desses povos. A ênfase no combate ao nacionalismo no momento da criação do grupo reflete a preocupação de que esse sentimento desestabilizasse a Europa Central após a dissolução da União Soviética.
[2] “The Visegrad Group countries export the least outside Europe”. Financial Observer, 27 de julho de 2017. Disponível em: https://financialobserver.eu/poland/the-visegrad-group-countries-export-the-least-outside-europe/
Referências Bibliográficas
Latawski, P. (1993). NATO’s “near abroad”: The Visegrad group and the Atlantic alliance. The RUSI Journal, 138(6), 39–43.
Rupnik, J. (2016). What is alive and what is dead in the Visegrád project. Visegrád Insight, 1, 58–60.
Nič, M. (2016). The VisegráD Group in the Eu: 2016 as a Turning-point? European View, 15(2), 281–290.doi:10.1007/s12290-016-0422-6