Imagem por 대한민국 대통령실 (Gabinete Presidencial da Coreia do Sul).

As relações bilaterais entre Coreia do Sul e Japão experimentaram um intenso período de distanciamento, em especial, a partir de 2012 na segunda gestão do primeiro-ministro japonês Shinzō Abe (2007-2008/2012-2020). Nesse processo, Abe, de caráter conservador, nacionalista e, por vezes, revisionista, encontrou uma Coreia do Sul compenetrada em demandar que o Japão reconhecesse, de forma crítica e sincera, os graves efeitos da colonização nipônica na península coreana entre 1910 e 1945. Perante interpretações históricas, memórias e identidades nacionais divergentes e conflituosas entre si, instaurou-se um ambiente de atritos bilaterais, ocasionando desconfianças diplomáticas, empecilhos na área de defesa e até mesmo, em 2019, restrições econômicas estratégicas entre ambas nações asiáticas (DEACON, 2021; DIAS, 2022; SAKAKI, 2019).

Consequentemente, a cooperação trilateral entre Coreia do Sul, Japão e Estados Unidos também foi afetada nesse período de tensões bilaterais nipo-sul-coreanas, não possuindo avanços significativos. Entretanto, em um conjunto de fatores regionais e domésticos na Coreia do Sul e no Japão, desde maio de 2022, as discussões trilaterais estão em um processo de revitalização. Dessa maneira, com enfoque em ambos países asiáticos, esse artigo buscou identificar, primeiro, as mudanças conjunturais que promoveram a reorientação nipo-sul-coreana rumo à uma cooperação conjunta com os Estados Unidos e, em um segundo momento, refletir sobre a substancialidade da reaproximação entre Coreia do Sul e Japão que está sendo proporcionada.

Para começar essa análise, devemos nos atentar às lideranças políticas no poder desses países atualmente. No caso japonês, após a renúncia de Shinzō Abe ao cargo de primeiro-ministro em agosto de 2020 devido a problemas de saúde, o seu sucessor foi Yoshihide Suga (2020-2021). Sob o cargo de Secretário-Chefe do Gabinete entre 2012 e 2020, Suga foi uma figura emblemática no revisionismo histórico nipônico ao, no início do governo Abe, determinar a necessidade de revisão das Declarações Kōno (1993) e Murayama (1995), que reconhecem oficialmente as violências do Japão Imperial na Ásia, estando a primeira diretamente relacionada à questão das violências sexuais japonesas perpetradas às ex-mulheres de conforto coreanas (HUGHES, 2015).

Logo, mesmo com a saída de Abe, o embate nipo-sul-coreano com feridas vinculadas à colonização se perpetuou, tendo Suga, por exemplo, contribuído para o adiamento do 9º encontro trilateral entre Japão, Coreia do Sul e China no ano de 2020 ao negar a sua participação. Essa decisão foi justificada perante a manutenção sul-coreana de processos jurídicos relacionados aos coreanos forçados a trabalhar em empresas japonesas, como a Mitsubishi Heavy Industries e a Nippon Steel, durante os últimos anos da colonização. Até o presente momento essa reunião não aconteceu. 

Com a subida de Fumio Kishida (2021-atualmente), ao posto de primeiro-ministro do Japão em 2021, a resistência do governo japonês em proclamar, novamente, perdão a Seul se manteve. Dessa forma, apesar da diplomacia de Kishida ter uma tendência a priorizar relações com países do Pacífico Asiático, o ponto de virada para uma cooperação pragmática nipo-sul-coreana viria por meio do início do mandato do novo presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol (2022-atualmente), em maio de 2022.

Nesta questão, ao passo que a ex-presidente Park Geun-hye (2013-2017) determinou que o reconhecimento colonial e compensações japonesas seriam o ponto inicial das relações bilaterais com o Japão em seu mandato (SNYDER, 2016), e o ex-presidente Moon Jae-in (2017-2022) aprofundou a pauta da reivindicação colonial sul-coreana (TAMAKI, 2019; DIAS, 2022), Yoon Suk-yeol representou uma ruptura no posicionamento de Seul frente a Tóquio. Adotando a postura comum dos políticos conservadores sul-coreanos em relação ao arquipélago japonês, Yoon criticou a ênfase que as problemáticas históricas estavam recebendo às custas da relação bilateral e determinou o uso de uma abordagem pragmática pautada em questões práticas como, por exemplo, segurança internacional. 

Ou seja, embora a cicatrização das feridas coloniais tenha uma importância latente para a própria identidade sul-coreana, essa questão teria menor importância no âmbito diplomático, como desejado pelo Japão que almeja uma estável “diplomacia orientada para o futuro”. Depois de quase uma década, constatou-se uma maior consonância de posturas e abordagens diplomáticas entre os líderes políticos da Coreia do Sul e do Japão, o que, consequentemente, reestruturou as bases para a cooperação trilateral com os Estados Unidos, bem quista tanto por Yoon como Kishida.  

A partir disso, acompanhado pelos interesses estadunidenses de aumentar a sua influência na Ásia por meio de seus tradicionais aliados no continente e conter o crescimento da China, o impulso que acelerou a retomada da cooperação trilateral foi uma conjuntura de insegurança regional causada, principalmente, pela Coreia do Norte. Ao longo de 2022, o Estado norte-coreano realizou o lançamento de cerca de 100 testes balísticos de mísseis, incluindo o Hwasong-17, cuja capacidade de alcance intercontinental pode atingir os Estados Unidos. 

Como resultado, surgiram esforços para o aprofundamento dos laços da cooperação trilateral. Nesse sentido, em nome da segurança e da prosperidade compartilhada, atividades militares trilaterais, que não eram realizadas desde 2017, foram colocadas em prática, tais como o exercício de defesa balístico coordenado no Havaí em agosto de 2022 e, no mês seguinte, a simulação de prevenção a ataques submarinos na costa leste da península coreana.   

Ademais, em encontro oficial entre Kishida, Yoon e o presidente estadunidense Joe Biden (2021-atualmente), no Camboja, em novembro de 2022, constatou-se que a agenda da cooperação trilateral pretende ir além da ameaça norte-coreana. Através da Declaração de Phnom Penh, os três países concordaram na: 1) importância de promover a segurança do Indo-Pacífico e demais regiões, reafirmando compromissos de desnuclearizar a Coreia do Norte, apoiar a Ucrânia contra a Rússia e manter a estabilidade no estreito de Taiwan; 2) na maior integração regional com a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), tendo inclusive condenado o regime militar em curso em Myanmar desde 2021, e parcerias com países ilhas no Pacífico; 3) e, por fim, na promoção da segurança econômica e liderança tecnológica.          

No entanto, especialmente quando o foco não for mais apenas a Coreia do Norte, não será tão simples encontrar um alinhamento comum entre essas três nações, devido a percepções diferenciadas de ameaça. A título de exemplo, o Japão e os Estados Unidos compartilham preocupações similares em relação à China e à Coreia do Norte, considerando ambas grandes ameaças, enquanto a Coreia do Sul estima uma relação mais equilibrada com Pequim, sua grande parceira comercial, e se atenta mais para os movimentos de Pyongyang (GILBERT; HAN; IMAI, 2022). Já para o fortalecimento econômico e tecnológico, Tóquio e Seul precisam retornar, uma à outra, às suas respectivas listas de parceiros comerciais preferenciais, o que não ocorre desde 2019, e alinhar com maior clareza com Washington a exigência estadunidense em restringir a exportação de equipamentos e chips de computação avançados para a China. Portanto, posições sensíveis e estratégicas devem ser calibradas e discutidas.

A caráter de conclusão, como o bem estar da cooperação trilateral depende de relações estáveis entre Coreia do Sul e Japão, questiona-se, afinal, qual seria a qualidade da reaproximação nipo-sul-coreana que está sendo traçada? É inegável que seja considerado um avanço, se comparado às gestões anteriores, que Kishida e Yoon estejam conseguindo restabelecer, pragmaticamente, laços diplomáticos e estratégicos antes rompidos por intensas desavenças históricas, coloniais e de memória. Essa aproximação permitiu maior contato entre ambas nações e o posicionamento de seus líderes políticos, impulsionados pelo enfoque na ameaça norte-coreana, quanto à urgência do desenvolvimento das relações nipo-sul-coreanas.  

Todavia, destaca-se que esse singelo reatamento diplomático ainda é muito frágil, com as feridas coloniais se mantendo em segundo plano nos espaços de discussões e, tradicionalmente, sendo visualizadas pelo Japão como disputas históricas pautadas pelo direito internacional e pela Coreia do Sul como uma justiça de transição. Considerando as declarações de Kishida e de Yoon relacionadas à promessa de solucionar as disputas históricas, tem-se o receio de que, em um movimento pragmático acelerado, essas lideranças cometam o mesmo erro de Park Geun-hye, Shinzō Abe e do próprio Kishida (nesse caso como ministro das relações exteriores) no Acordo das Mulheres de Conforto de 2015. 

À época, como um esforço à cooperação, inclusive marcado por pressão estadunidense, a Coreia do Sul e o Japão determinaram como encerrada a discussão das ex-mulheres de conforto, que foram violentadas sexualmente pelos agentes do império japonês durante a colonização, sem considerar as opiniões públicas e nem mesmo as pessoas vitimadas em vida ou suas famílias. Ao contrário do pretendido, acabou-se por contribuir para o desmoronamento das relações bilaterais perante a aversão popular sul-coreana (DIAS, 2022). 

Por fim, compreende-se que as bases para a relação bilateral nipo-sul-coreana estão sendo reestruturadas e que sua estabilidade dependerá de como Kishida e Yoon irão abordar, em especial, a questão histórica sem ocasionar atritos profundos. Decisões cautelosas, atenção às pessoas vitimadas afetadas e um olhar crítico histórico são determinantes para o florescimento das relações entre Coreia do Sul e Japão e, consequentemente, para a cooperação trilateral com os Estados Unidos. 

 

Referências bibliográficas

CHUN, Jahyun; KU, Yangmo. Clashing Geostrategic Choices in East Asia, 2009-2015: Rebalancing, Wedge Strategy, and Hedging. The Korean Journal of International Studies, Seul, v. 18, n. 1, p. 33-57, 2020.

DEACON, Chris. (Re)producing the ‘history problem’: memory, identity and the Japan-South Korea trade dispute. The Pacific Review, [S.l.], p. 1-32, 2021.

DIAS, Maurício Luiz Borges Ramos. A política externa japonesa de Shinzō Abe para a Coreia do Sul (2012-2020): um retrospecto histórico-identitário das feridas coloniais na contemporaneidade. 2022. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, São Paulo, 2022. 209 f. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/238624. Acesso em: 24 fev. 2023.

GILBERT, Lauren; HAN, Sanghyun; IMAI, Kyodo. A Next-Generation Agenda for US-ROK-Japan Trilateral Cooperation. Atlantic Council – Scowcroft Center for Strategy and Security, 2022.

HUGHES, Christopher W. Japan´s Foreign and Security Policy Under the “Abe Doctrine”: New Dynamism or New Dead End? Nova York: Palgrave Macmillan, 2015. 

SAKAKI, Alexandra. Japan-South Korea Relations – A Downward Spiral: More than “Just” Historical Issues. SWP Comment, Berlim, n. 35, p. 1-7, 2019.

SNYDER, Scott A. South Korean Identity Under Park Geun-hye: Crosscurrents & Choppy Waters. In: ROZMAN, Gilbert (Ed.). Joint U.S.-Korea Academic Studies: Rethinking Asia in Transition: Security Intentions, Value Gaps, and Evolving Economic Relations. Washington: Korea Economic Institute of America, 2016, p. 103-112. Disponível em: http://keia.org/sites/default/files/publications/joint_us-korea_2016_-_sk_identity.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020. 

TAMAKI, Taku. It takes two to Tango: the difficult Japan-South Korea relations as clash of realities. Japanese Journal of Political Science, [S.l.], v. 21, n. 1 p. 1-18, 2019.

Escrito por

Mauricio Dias

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP - UNICAMP - PUC-SP) em Relações Internacionais e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) com período de mobilidade acadêmica na Universidad de San Buenaventura, Colômbia. Foi estagiário docente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2021. Na área da pesquisa, é membro do Grupo de Estudos de Índia e Ásia Oriental - GesIAO desde 2016, do Observatório de Regionalismo (ODR) a partir de 2020, assim como, desde 2021, da Curadoria de Assuntos do Japão e do Observatório de Conflitos. Possui como agenda de interesse: política externa do Japão e da Coreia do Sul, xintoísmo, construção de identidade nacional, política de memória, regionalismo e meio ambiente. No Japão, representou o Brasil no programa intercultural do governo japonês denominado como Ship for World Youth (SWY) em 2020 e atualmente é Secretário-Geral da SWYAA Brasil.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4060044353605116
Academia.edu: https://unicamp.academia.edu/Maur%C3%ADcioDias