Manifestação contra o governo de Dina Boluarte nas ruas de Puno, Peru. Foto: Juan Carlos Cisneros/ AFP

Levantes da sociedade civil têm balançado a cena política sul-americana atualmente. De acordo com Quijano (2005), desde o levante Zapatista de janeiro de 1994 no México e os processos de refundação do Estado na Bolívia e do Equador na primeira década do século XXI, o futuro próximo latino-americano evidenciaria que as questões de maior reverberação que esses movimentos trariam estariam associadas às suas formas de relacionamento com o Estado-nação e com a democracia no atual padrão de poder. Passados dezessete anos, sua afirmação recobra importância e atualidade.

Os mais recentes atos golpistas e o ataque em Brasília, no Brasil, e os protestos iniciados no sul do país e que levaram à tomada de Lima, no Peru, suscitam debates e provocam embates entre direita e esquerda políticas, reascendendo questões como golpes de Estado e terrorismo na região. Embora tratem-se de manifestações populares de esquerda, no Peru, e de direita no Brasil, as formas violentas que assumiram nos dois casos tensionaram as relações políticas entre manifestantes e o Estado. O envolvimento de forças da segurança nacional com as formas violentas assumidas pelas manifestações em cada país – seja por omissão, seja por repressão -, deram sustentação às discussões (e decisões) sobre terrorismo em voga no momento. 

Dada a depredação a órgãos públicos federais no Brasil e a demanda por um golpe de estado que impedisse o exercício do governo do presidente eleito nas últimas eleições, os atos do dia 08 de janeiro foram considerados terroristas contra a democracia e as instituições pelo Supremo Tribunal Federal, resultando até o momento em 1.395 prisões e nenhuma morte. Já no Peru, o termo terrorismo tem sido alegadamente aplicado por parte do governo da presidenta Dina Boluarte como forma de criminalização das manifestações, que desde o dia 07 de dezembro de 2022 levaram o sul e a capital do país ao estado de emergência. Manifestantes demandam a renúncia de Dina Boluarte à presidência, a soltura do presidente Pedro Castillo, além do fim da repressão que já causou cerca de 60 mortes e tem aberto espaço para se falar em terrorismo de Estado no país. 

Argumentamos que o processo de democratização das sociedades brasileira e peruana nas últimas décadas, na direção da defesa dos Direitos Humanos e à diferença, associado  mais recentemente à deterioração das condições de vida no contexto de crises econômica e pandêmica, tem colocado o poder do Estado sob constante contestação e disputa por parte de frações políticas golpistas de direita, independentemente dos resultados eleitorais.

A identificação dos programas de governo dos últimos presidentes eleitos nos dois países com os setores populares da sociedade e, em particular, com demandas das populações mais empobrecidas, incluindo as indígenas e afrodescendentes – que adquiriram direitos, mas não poder -, constitui-se uma ameaça aos interesses regionalizados das direitas peruana e brasileira, que em 2019 estiveram em situação de governo e reunidas na criação do Grupo de Lima.

As experiências golpistas recentes no Brasil e no Peru expressam um tipo de reação ao fortalecimento do poder popular no interior destas sociedades, notadamente à construção da cidadania étnica, resultante dos processos de democratização dos Estados nacionais sul-americanos desde a década de 1980. A construção democrática nesses países, na medida em que implica na inclusão de cada vez maiores contingentes populacionais historicamente marginalizados dos processos políticos de condução do Estado, tende a desafiar os padrões históricos de desenvolvimento do capitalismo, com consequências internas e externas às suas sociedades e economias. 

Nestes termos, pode o povo, na sua diversidade, governar um Estado na América do Sul? Nossa reflexão é sobre o papel da maioria popular, considerada a sua diversidade, na construção da democracia no Brasil e no Peru no século XXI. A emergência de novos movimentos sociais e de governos progressistas na América do Sul no passado recente, assim como a contra-ofensiva subsequente da extrema direita denotam que este é um território político atualmente em disputa na região. 

 

Cidadania étnica na democratização do Brasil e do Peru

A ampliação dos mecanismos nacionais de proteção dos Direitos Humanos, da diversidade e da cidadania étnica, por meio de modificações constitucionais promovidas nos dois países a partir dos anos 1980, tem favorecido a participação e a busca por representatividade política junto a contingentes populacionais que, em sua diversidade, constituem maiorias. Nos atemos neste texto principalmente às populações indígenas e afrodescendentes. 

No Brasil, isto se deu em 1988, quando a nova constituição permitiu a introdução do conceito de diversidade cultural, o reconhecimento da multiculturalidade da nação e alguns direitos indígenas. Em 1989 também foi criada a chamada Lei do Racismo, destinada a punir preconceitos ou discriminação de qualquer tipo, sendo em 2010 alterada pelo Estatuto da Igualdade Racial, destinado ao combate às formas de intorlerância e discriminação étnica da população negra. O Brasil é o país com maior quantidade de etnias indígenas, totalizando 305 povos distintos, 70 dos quais se encontram em risco de desaparição física ou cultural (CEPAL, 2014).

No Peru, o reconhecimento do caráter multiétnico e pluricultural da nação ocorreu em 1993, no processo de internalização da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reconhecendo diversos direitos, principalmente às populações indígenas, como educação bilíngue, terras, consulta, formas de participação, entre outros (BALDI, 2012), mas também abrindo caminhos de autoafirmação da população afroperuana. Apenas em 2015 este contingente populacional, que representa 3,6% da população do país, de acordo com a CEPAL (2021), foi convertido em foco específico da ação estatal. Em maio de 2022 o presidente Pedro Castillo promulgou a Política Nacional do Povo Afroperuano (PNPA), dando continuidade ao Plano Nacional de Desenvolvimento para a População Afroperuana, que vigorou entre 2016 e 2020.

Apesar destas salvaguardas legais fundamentais adquiridas no passado recente, tratam-se ainda de amplos contingentes populacionais que hoje têm direitos, mas que, na prática, não têm poder. E que o seguem reclamando, no campo e na cidade, através de lutas pela defesa de seus territórios, por trabalho, por terra, por moradia, por saúde ou mesmo por participação e/ou representação política. 

Isto se reflete, por exemplo, nos processos eleitorais, com quantidades cada vez mais expressivas de candidaturas indígenas e/ou negras ou a sua massiva base de apoio às candidatas/os a diversos cargos políticos, incluindo o de Presidência da República. Não foi diferente nos últimos processos eleitorais para presidência do Peru, em 2021, com a vitória de Pedro Castillo, e mais recentemente, em 2022, no Brasil, com a vitória de Lula da Silva, os dois candidatos que nos processos eleitorais mais receberam o apoio dessas populações. 

Posse do Presidente Lula/ Brasil. Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

 

Golpismo contemporâneo na América do Sul

Apesar das diferenças entre as manifestações em discussão, no Peru e no Brasil, destacam-se elementos comuns nas formas de ação da extrema direita nos dois países, ao exercerem a oposição às candidaturas, às vitórias eleitorais e aos governos democraticamente eleitos. Sua oposição assim realizada se volta contra os interesses de setores populares das sociedades, notadamente pobres, povos indígenas e afrodescendentes majoritariamente apoiadoras, mesmo que com ressalvas, dos presidentes Castillo e Lula. 

No Brasil, a extrema direita bolsonarista que protagonizou os atos golpistas recentes é constituída e financiada por empresas e políticos que têm o poder de mobilizar trabalhadores empobrecidos e contingentes populacionais étnicos, principalmente através de redes de desinformação vinculadas às igrejas evangélicas e às redes sociais. 

No Peru, a população trabalhadora camponesa, principalmente indígena aimará do sul do país, tomou as ruas e a cidade de Lima em protesto à prisão de Castillo naquele que tem sido considerado mais um caso de lawfare na região, que é uma tática de guerra não convencional empregada para desestabilizar e substituir governos; “o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo” (ZANIN; MARTINS; VALIM, 2020, p. 21). Tanto no Peru, contra Castillo, quanto no Brasil, contra o presidente Lula, o lawfare funciona como um instrumento de guerra híbrida. 

A guerra híbrida na América do Sul pode ser entendida como uma nova modalidade de disputa da influência dos Estados Unidos na região, nos marcos da competição estratégica com a China e, nesse contexto, com o Brasil (RODRIGUES, 2020). A Operação Lava Jato é peça importante nesta contenda geopolítica regional, e está na raiz da instabilidade sociopolítica e econômica recentes no Brasil e no Peru, relacionada à atuação das grandes empresas brasileiras e seus dirigentes, alvos de acusações de corrupção em associação com políticos, incluindo-se ex-presidentes que foram presos (DE JESUS, 2020).

 

Defender o resultado das eleições, construir a democracia

A mudança no padrão de desenvolvimento das sociedades latino-americanas na década de 1980, acompanhada de crescente abertura e internacionalização das economias nacionais nas décadas seguintes se deu concomitantemente com o avanço do Direito Internacional em matéria de Direitos Humanos e Culturais. Este avanço acelerou reformas constitucionais em países como Peru e Brasil capazes de abrigar a cidadania étnica de amplos contingentes populacionais indígenas e afrodescendentes que, na atualidade, reclamam o poder de autorrepresentação política, inclusive na Presidência da República (URQUIDI; TEIXEIRA; LANA, 2008). 

Se a (mal) chamada globalização econômica decorrente da abertura neoliberal das economias da região nos anos 1990 promoveu a integração, a exclusão e a segregação das culturas populares no seu interior (CANCLINI, 2002), ela impulsionou também o surgimento e/ou fortalecimento de novos movimentos sociais – movimentos étnicos, de gênero, entre outras minorias -, sendo sua consequência mais expressiva os governos progressistas sul-americanos da virada do século XX para o XXI. 

A destituição e tentativa de destituição de presidentes legitimamente eleitos por meio de processos eleitorais levados a cabo em regimes formalmente democráticos como ocorreu, respectivamente, no Peru e no Brasil na atualidade são formas de expressão de guerras não convencionais, guerras híbridas, travadas na América Latina desde a década de 00. Podem ser mencionados os casos de Haiti (2004), Honduras (2009) e Paraguai (2012), (SOLER, 2015); Brasil (2016), (VERA, 2018); Bolívia (2019), (RODRÍGUEZ, 2021); e Peru (2022). 

Populações indígenas e afrodescendentes protagonizam as demandas e lutas sociais que hoje tensionam os limites da institucionalidade do Estado, provocando reações na extrema direita que atua no subcontinente articulada à extrema direita internacional, sobretudo a estadunidense de recorte trumpista

Enquanto a pressão geopolítica internacional promove o alargamento da fronteira e das disputas tecnológicas, ancoradas na indústria 4.0, países da América do Sul, como o Brasil e o Peru, provedores mundiais de recursos naturais estratégicos, disputam internamente a institucionalidade do Estado e os limites da democratização das sociedades e do poder.

 

Referências

BALDI, César Augusto. Do constitucionalismo moderno ao novo constitucionalismo latino-americano descolonizador. In: BELLO, Enzo (org.). Ensaios críticos sobre Direitos Humanos e constitucionalismo. EDUCS: Caxias do Sul, 2012. Disponível em: https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/Ensaios_criticos_sobre_direitos_humanos.pdf. Acesso em: 13 fev. 2023.

CANCLINI, Néstor Garcia. Latinoamericanos buscando lugar en este siglo. Paidós: Buenos Aires, 2002.

CEPAL. Afrodescendientes y la matriz de la desigualdad social en América Latina: retos para la inclusión. Síntesis. Documentos de Proyectos (LC/TS.2021/26), Santiago, 2021. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/46870/1/S2000929_es.pdf. Acesso: 13 fev. 2023.

DE JESUS, Samuel. Prólogo: a política externa peruana na administração Pedro Pablo Kucinsky (2017). In: DE JESUS, Samuel (org.). A integração sul-americana: o caso de Brasil e Peru. Dimensões históricas, políticas, culturais e ambientais. Editora UFMS: Campo Grande, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufms.br/handle/123456789/3539. Acesso: 16 fev. 2023.

RODRIGUES, Bernardo Salgado. Guerra híbrida na América do Sul: uma definição das ações políticas veladas. Sul Global, v. 1, n. 1, 2020, p. 139-168. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/sg/article/view/31949. Acesso: 16 fev, 2023.

QUIJANO, Aníbal. El “movimiento indígena”, la democracia y las cuestiones pendientes en América Latina. Polis Revista Latinoamericana. Online, 10, 2005. Publicado em 10 de novembro de 2012. Disponível em: https://journals.openedition.org/polis/7500. Acesso: 13 fev, 2023.

RODRÍGUEZ, Silvia Laura. El golpe de Estado en Bolivia. Entre la disputa hegemónica y la geopolítica de los minerales. In: LAJTMAN, Tamara et al. Bolivia y las implicaciones geopolíticas del golpe de Estado. CLACSO: Buenos Aires; UNAM: México, 2021. Disponível em: https://libros.iiec.unam.mx/tamara_silvina_monica_oscar_bolivia-las-implicaciones-geopoliticas-del-golpe-de-estado. Acesso: 16 fev. 2023.

SOLER, Lorena. Golpes de estado en el siglo XXI. Un ejercicio comparado Haiti (2004), Honduras (2009) y Paraguay (2012). Cadernos PROLAM/ USP, ano 14, v. 26, 2015, p. 77-89. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/prolam/article/view/103317/105950. Acesso: 16 fev. 2023.

URQUIDI, Viviane; TEIXEIRA, Vanessa; LANA, Eliana. Questão indígena na América Latina: direito internacional, novo constitucionalismo e organização dos movimentos indígenas. Cadernos PROLAM/ USP, ano 8, v. 1, 2008, p. 199-222. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/prolam/article/view/82316/85289. Acesso em 16 fev. 2023.

VERA, José Luis Ríos. Tres etapas del golpe “blando” en Brasil: hacia una rearticulación social del capital. Revista de Ciencias Sociales, DS-FCS, v. 31, n. 43, 2018, p. 183-204. Disponível em: http://www.scielo.edu.uy/pdf/rcs/v31n43/1688-4981-rcs-31-43-183.pdf. Acesso: 16 fev. 2023.

ZANIN, Cristiano; MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael. Lawfare: uma introdução. Contracorrente: São Paulo, 2020.

Escrito por

Marta Cerqueira Melo

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-Unicamp-PUC-SP). Mestra em Integração Contemporânea da América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Bacharela em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) e ao Observatório de Regionalismo(ODR). Pesquisa na área de Economia Política Internacional, com foco em Economia Política Latino-Americana e do Caribe, Integração Regional Sul-Americana, Infraestrutura Logística, Territorialização do Desenvolvimento Econômico e Dinâmicas Socioterritoriais.