Imagem por: GERALDO MAGELA / AGÊNCIA SENADO

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Uma das características mais notórias da configuração de poder no Mercosul é a assimetria entre os Estados-membros dada a evidente discrepância populacional, econômica e geográfica entre os integrantes, gerando uma inegável concentração de poder, especialmente nas mãos do Brasil e Argentina, Estados considerados protagonistas do bloco. Esse protagonismo consolidado já era vislumbrado na própria origem do Mercosul, que surgiu como um acordo bilateral entre as duas nações, o Programa de Integração e Cooperação Econômica Brasil-Argentina (PICE) em 1986, objetivando o estabelecimento de um espaço econômico comum entre os dois países e acabou incorporando outras nações do Cone Sul. A concentração de poder entre os Estados é agravada quando colocada em perspectiva que esta é limitada ainda aos Poderes Executivos desses países.

O Mercosul é fundamentalmente composto por três órgãos, aos quais muitos outros são subordinados: o Conselho do Mercado Comum (CMC), o Grupo do Mercado Comum (GMC) e a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM). O CMC assume o topo da hierarquia mercosulina, acima do GMC e CCM, sendo composto pelos Ministros das Relações Exteriores e pelos Ministros da Economia dos países-membros. O Conselho é o maior responsável por conduzir politicamente o processo de integração e assegurar o cumprimento dos objetivos dispostos no Tratado de Assunção, além de tomar decisões dotadas de efeito vinculante e poder se reunir sempre que for oportuno, sendo obrigatória a presença dos Presidentes dos Estados-parte em reunião ao menos uma vez por semestre. 

Dentro da estrutura institucional do Mercosul existem também diversas instâncias, originárias ou não, criadas com o intuito de democratizar o bloco, fomentando a participação e a representação popular. Os órgãos mais simbólicos do enfrentamento ao déficit democrático do Mercosul são o Foro Consultivo Econômico-Social e o Parlamento do Mercosul. Algo que todas essas instâncias têm em comum, no entanto, é o seu caráter consultivo, e essa falta de poder de decisão dos órgãos democráticos acaba por sabotar a efetividade deles.

A participação da sociedade civil, mesmo quando organizada através de sindicatos, não costuma ser tão bem recebida (VENTURA, 20003) e mesmo o Parlamento do Mercosul, formado por representantes democraticamente constituídos, é frequentemente ignorado. Além das recomendações e projetos de lei enviados pelo Parlasul para apreciação do CMC não serem dotados de consequências práticas por si só, o CMC não costuma enviar seus próprios projetos para apreciação do Parlamento, e tampouco responder às suas solicitações de informação, apesar de haver um prazo máximo de seis meses para atender tal demanda (VENTURA, 2012).

A centralização do poder de decisão torna-se ainda mais preocupante em face do alargamento da competência material das organizações internacionais, especialmente dos blocos econômicos, em face da crise do Estado nacional. Assuntos que costumavam ser de interesse e competência exclusiva dos Estados passam gradativamente a pertencer também à esfera de influência e interesse de instâncias internacionais e supranacionais. (DRUMMOND, 2010). O processo de transferência de poder decisório é responsável, então, pela criação do que Habermas chama de “vazios de legitimidade”, caracterizados pela falta ou insuficiência de representação política nos espaços internacionais uma vez que o poder é exercido quase que exclusivamente pelos representantes do Poder Executivo (HABERMAS, 2001).

Para além do comprometimento da legitimidade das decisões, a concentração de poder político tem consequências também para a marcha do próprio processo de integração. Ao longo dos mais de 30 anos de existência do Mercosul, a região atravessou períodos de aceleração e desaceleração do processo integracionista, períodos que coincidem com a sucessão dos chefes de Poderes Executivos dos países membros, em especial daqueles que exercem maior poder de influência, variando de acordo com a vontade política de incentivar ou não esse processo. Essa alternância entre as disposições ora para um Mercosul Máximo, ora para um Mercosul Mínimo, é verdadeiro obstáculo à permanência, à continuidade e até mesmo a um planejamento coerente dos esforços de integração (MARIANO e MENEZES, 2021).

A necessidade de redistribuição do poder dentro do Mercosul, portanto, diz respeito não apenas à continuidade do projeto, mas deve ser encarada como uma resposta aos “vazios de legitimação” abertos pela expansão de competências em um sistema pouco democratizado. No entanto, as medidas já adotadas pelo bloco que se propõem a enfrentar o déficit democrático se mostraram incapazes ou insuficientes de efetivamente modificar a estrutura de poder, e as propostas de reforma mais profundas e ousadas, não encontraram apoio.

Episódios emblemáticos desse estado das coisas são as circunstâncias do surgimento do Parlamento, substituindo a Comissão Parlamentar Conjunta, e as negociações que antecederam o Acordo Político para a Consolidação do Mercosul e Proposições Correspondentes. A aprovação do Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul pelo Conselho do Mercado Comum em 2005 foi muito ensaiada pela própria Comissão Parlamentar, que apesar de desejar a parlamentarização, temia que a ideia fosse considerada inaceitável pelas instâncias decisórias. O cenário só mudou quando os então presidentes do Brasil e Argentina, Lula da Silva e Néstor Kirchner, se manifestaram publicamente em favor da criação do Parlamento (PIETRAFESA, 2011).

Já em 2009, com a momentânea reunião das condições políticas para uma reforma do Mercosul, a bancada uruguaia começou a pressionar pela aceleração das discussões, em face da aproximação das eleições no Uruguai e Argentina. O Brasil se mostrou disposto a discutir questões como a proporcionalidade da composição do Parlamento e o voto direto, enquanto o Paraguai defendia uma reconfiguração institucional profunda com a criação de um tribunal supranacional e a atribuição de poder de decisão ao Parlamento, pautas que foram incluídas no Acordo apenas como sugestões. Mesmo dentre as medidas defendidas pelo Brasil, que foram aprovadas pelo Conselho de Mercado Comum, a mais drástica, o voto direto, acabou por ser ignorada nos anos seguintes por todos os outros países exceto o Paraguai (DRUMMOND, 2010).

Apesar de serem encaradas com certa resistência pelos Estados-membros do Mercosul que se apegam à ideia do intergovernamentalismo, são propostas como as apresentadas pelo Paraguai as que verdadeiramente guardam o potencial de dar mais autonomia, democratizar e dinamizar o bloco. No entanto, pela história do bloco se depreende que estas somente são possíveis com a presença da vontade política dos países que exercem o protagonismo do bloco: a Argentina, e, principalmente, o Brasil. A redistribuição do poder dentro da institucionalidade do Mercosul surge então como uma responsabilidade destes países-protagonistas para evitar que a solidez dos avanços mercosulinos permaneçam sujeitos a uma próxima troca de mandatos e que se esvazie a legitimidade democrática das decisões tomadas dentro do bloco.

REFERÊNCIAS

DRUMMOND, Maria Claudia. A democracia desconstruída: o déficit democrático nas relações internacionais e os parlamentos da integração. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010.

HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Tradução de Márcio Seligmann Silva. São Paulo: Littera mundi, 2001.

MARIANO, Karina L. Pasquariello; MENEZES, Roberto Goulart. Três décadas de Mercosul: Institucionalidade, capacidade estatal e baixa intensidade da integração. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, p. 147-179, 2021.

PIETRAFESA, Pedro Araújo. Parlamento do Mercosul: formação, características e desafios. Universitas: Relações Internacionais, v. 9, n. 1, 2011.

VENTURA, Deisy. As assimetrias entre o Mercosul e a União Europeia: os desafios de uma associação inter-regional. Barueri: Manole, 2003.

VENTURA, Deisy. ONUKI, Janina. MEDEIROS, Marcelo et alli. Internalização das normas do MERCOSUL. Série Pensando o Direito, vol. 45. Brasília: Ministério da Justiça, 2012.

Escrito por

Suzana Ribeiro Souza

Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana, advogada e pesquisadora pelo GEDAI-UFC na linha de Direito da União Europeia. Áreas de Interesse: Política Econômica Internacional, Regionalismo Sul-Americano, Relações Sul-Sul e Direito Internacional Público.