No dia 22 de março foi comemorado o dia mundial da água. São múltiplos os desafios enfrentados para a sustentabilidade e a resiliência desse recurso finito e de importância vital. No presente artigo, abordaremos uma fonte hídrica que nem sempre é contemplada nas discussões, por, majoritariamente, encontrar-se “invisível” aos olhos, mas que é detentora do maior volume de água doce do planeta, as águas subterrâneas.
A Associação Brasileira de Água Subterrânea (ABAS, [2021]) define a água subterrânea como “toda a água que ocorre abaixo da superfície da Terra, preenchendo os poros ou vazios intergranulares das rochas sedimentares, ou as fraturas, falhas e fissuras das rochas compactas”. A água subterrânea tem papel importantíssimo na gestão dos recursos hídricos, uma vez que os aquíferos são uma importante fonte de abastecimento de água potável, irrigação agrícola e produção industrial. Embora muitas facetas da gestão de recursos hídricos superficiais não pertençam às águas subterrâneas, como a navegação, a pesca e a geração de energia, o impacto das medidas de construção relacionadas ao regime de águas superficiais, como represas ou canais de irrigação, pode ter um grande impacto sobre as fontes subterrâneas (WHYMAP, [2021]).
A água é elemento estratégico para os países. Seus usos são múltiplos, mas como destacado em artigo anterior publicado no site do Observatório de Regionalismo sobre cooperação hídrica (TELAROLLI 2020), a água possui distribuição desigual no globo terrestre, o que traz potenciais desafios para os países e regiões. Ainda, entre os usos fundamentais da água, seu papel na higiene, especialmente em contexto de pandemia, na qual a lavagem das mãos é elemento primordial para conter o contágio, o uso desse recurso se encontra ainda mais pressionado.
Além da distribuição desigual, a disponibilidade da água doce traz ainda mais complexidade para o cenário. Da somatória total de água disponível no planeta, apenas 2,5% é referente à água doce e se encontra na forma de geleiras, rios e, principalmente, em fontes hídricas subterrâneas (ANA, [2020]). O uso e as práticas insustentáveis tornam crescente a pressão sobre as fontes hídricas- e esta situação é agravada pela aceleração das mudanças climáticas. Em 2025, prevê-se que 1,8 bilhão de pessoas viverão em regiões com problemas urgentes de escassez de água e, portanto, é vital que todos os recursos de água doce sejam administrados de forma eficaz. Esta é uma tarefa cada vez mais desafiadora (WHYMAP, [2021]). Ademais, “a escassez deste bem universal tende a aumentar até 2050 devido à procura do setor industrial e doméstico das economias emergentes e devido ao aumento da população mundial” (UNRIC, [2021]), o que trará maior pressão no uso das águas subterrâneas; na Ásia, por exemplo, um terço da sua população já faz uso das águas subterrâneas.
É necessário ressaltar que grande parte das águas subterrâneas são compartilhadas por mais de um país, sendo estimada a existência de 366 aquíferos transfronteiriços e 226 “corpos d’água subterrâneos” transfronteiriços, subjacentes a quase todos os países (IGRAC, [2021]). Portanto, é premente que existam instrumentos de gestão conjunta desse recurso. Os blocos regionais constituem esfera interessante para a prospecção desses mecanismos, uma vez que as questões ambientais, ao ultrapassarem as fronteiras nacionais, são elemento naturalmente integrador entre as unidades políticas próximas, o que lhes impõe um desafio comum.
A União Europeia (U.E) constitui um exemplo importante para a tratativa dessa questão devido à Diretiva Quadro Água (2000/60/CE). No contexto da Diretiva, as águas subterrâneas tornaram-se parte integrante do sistema de gestão da água, nos planos de gestão de região hidrográfica e define marcos claros para as massas de águas (subterrâneas) em termos de delineação, análise econômica, caracterização, acompanhamento e formulação de programas com medidas que visem sua resiliência e sustentabilidade(European Community, 2000).
Cerca de 75% dos residentes da U.E dependem da água subterrânea para o seu abastecimento, além do uso industrial e para a agricultura. Ademais, seu papel na manutenção de ecossistemas não é desconsiderado, uma vez que 50% do caudal anual- quantidade de água que passa durante o ano em dada secção de um rio- de muitos rios europeus provém de água subterrânea. Em períodos de baixo caudal, esta contribuição chega a mais de 90% (European Community, 2000).
A regulação e gestão das águas subterrâneas na União Europeia é feita através de um conjunto de diretivas, destinadas a harmonizar as estruturas jurídicas dos diferentes países, que serão incorporadas na legislação e no quadro regulamentar de cada membro, após serem aprovadas pelo parlamento do país. O objetivo primordial é “harmonizar a política de água europeia existente e melhorar a qualidade da água em todos os ambientes aquáticos da Europa” (KAIKA 2003, p.314). A DQA inicialmente exigia que todos os estados membros identificassem as massas de água subterrâneas, bem como as áreas protegidas e habitats dependentes das águas subterrâneas; também é exigência identificar pressões antropogênicas, quantificá-las e desenvolver planos de gestão para sua sustentabilidade de longo prazo (como parte dos planos de bacias hidrográficas) até o final de 2004. Previa-se que isso fosse concluído no final de 2009, com uma revisão planejada em 2015 e, depois, a cada seis anos.
A Diretiva da água se concentra em três pontos: a sustentabilidade, a racionalização da utilização e os cuidados compartilhados, parte subsidiada nos marcos internacionais para a temática. Também, o documento agrupa em um único texto toda a legislação europeia para o gerenciamento dos recursos hídricos, a fim de simplificar e dotar de efetividade o sistema (CORTE; SANTIN, 2013; ROSADO, 2002). Portanto, abrangem-se em uma só norma as regras gerais a serem cumpridas pelos países parte da U.E. A Diretiva da Água consolidou a maioria das leis relacionadas ao tema no âmbito europeu, o que pressupõe passo importante na regulação única de um bem comum (MARÍN; MÁRIN, 2002).
A escassez de água nos países europeus tende a ser localizada, mas é crescente, assim como a competição entre as demandas e os usuários está aumentando. Os países do sul experimentam uma diminuição geral mais contínua na oferta, enquanto os países do norte desfrutam de mais recursos hídricos subterrâneos per capita (DOSI; TONIN, 2001).
O uso de fertilizantes e pesticidas na agricultura é um problema na maioria dos países, com a poluição difusa representando o maior problema para as águas subterrâneas em países como França e Dinamarca. A poluição tradicional dos corpos hídricos subterrâneos é um problema comum em todo o sul da Europa. Países como a Grécia enfrentam pressões adicionais em alguns aquíferos decorrentes do conflito sobre a alocação de água subterrânea para diferentes usuários, nesse caso, o turismo e a agricultura.
Durante anos, nem todas as políticas da UE se moveram na mesma direção, uma vez que os objetivos gerais da política da PAC (Política Agrícola Comum), que incentivou e apoiou financeiramente a agricultura intensiva e a extração de águas subterrâneas, estavam em conflito com os objetivos de desenvolvimento ambiental e sustentável (CHILTON; SMIDT, 2014)Uma das principais preocupações entre os membros do Sul da União Europeia em relação às águas subterrâneas é o rápido aumento do número de usuários, podendo ser um obstáculo social e político a ser superado se se deseja alcançar uma boa gestão dos aquíferos. Por sua vez, a regulação de poços apresenta diferenças consideráveis em toda a Europa, com monitoramento e fiscalização variando de acordo com a região e o país.
Um terço dos recursos renováveis se encontram na América do Sul. Contudo, a abundância não é o mesmo que distribuição igualitária ou ausência de potencial conflitivo. No caso das águas subterrâneas é sabido que na América do Sul existem 29 aquíferos transfronteiriços, entre eles, o Aquífero Guarani e o Alter do Chão, dois casos que figuram entre os aquíferos transfronteiriços de maiores proporções do mundo, porém, dentre o total de aquíferos sul americanos compartilhados por mais de um país, 15 ainda demandam estudos básicos (ISARM, 2015).
No caso do Mercosul, o bloco, por se tratar de uma iniciativa intergovernamental, não possui políticas comunitárias entre seus membros. O bloco conta com o Subgrupo de Trabalho 6 (SGT-6) e com a Reunião de Ministros do Meio Ambiente (RMMA) para tratar dos temas ambientais em seus aspectos políticos e técnicos, mas sem abordar especificamente a água de forma mais ampla e, consequentemente, as águas subterrâneas. Essas instâncias ambientais se encontram vinculadas ao Grupo de Mercado Comum e ao Conselho de Mercado Comum, formados pelos órgãos executivos dos países membros do Mercosul, logo, não possuem autonomia sobre suas discussões e propostas.
Foi somente no início da primeira década do século XXI que as águas subterrâneas se tornaram fulcro de interesse do bloco, devido ao Projeto de Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aquífero Guarani (PSAG), projeto esse realizado pelos Estados detentores do aquífero, coincidentemente, os membros fundadores do Mercosul, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. O PSAG foi uma realização ambiciosa e contou com o financiamento do Global Environmental Facility, implementação do Banco Mundial e a Organização dos Estados Americanos (OEA) foi executora regional. Entre seus objetivos estava a formulação de um modelo de gestão conjunta para a conservação e a preservação do Aquífero Guarani (OEA, 2009).
O Mercosul, por meio da criação do Grupo Ad Hoc Alto Nível do Aquífero Guarani, passa a ser sede para a formulação de um acordo, o Guarani. O Grupo teve duração entre os anos de 2004 e 2005. A partir desse momento, as águas subterrâneas passam a ser objeto de interesse e debate nas instâncias ambientais mercosulinas, ao longo da década. Em 2010, em Reunião dos Presidentes do Mercosul, foi assinado o Acordo do Aquífero Guarani, mas sem que em seus artigos fosse feita alguma indicação sobre o Mercosul como potencial esfera para projetos conjuntos entre os países parte do Acordo, sendo pensado o Comitê Intergovernamental da Bacia do Prata como possível instância para formar uma comissão para o Aquífero Guarani. A ratificação do Acordo foi demasiadamente morosa, demorando 10 anos entre os processos internos de ratificação dos países e sua entrada em vigor, somente em novembro de 2020 (LEITE, 2018).
Apesar de propostas e debates nas instâncias ambientais do Mercosul, nenhuma ação concreta relacionada à tratativa das águas subterrâneas pode ser apontada, exceto iniciativas como as realizadas pelo Parlamento do Mercosul de fazer um seminário sobre o Aquífero Guarani e seu valor estratégico ou tentativas de pressão ao Paraguai pela finalização de seu processo de ratificação (LEITE, 2018).
O texto do Acordo para o Aquífero Guarani, conforme ressalta Villar (2010, p.6), enfatiza “a soberania dos Estados sobre sua porção do aquífero”, não havendo estratégias de gestão conjunta, especialmente para as áreas de recarga ou aquelas áreas de fronteira nas quais as águas são efetivamente compartilhadas e possuem crescente potencial conflitivo, como é o caso de Salto (Uruguai) e Concórdia (Argentina), bem como o caso de Santana do Livramento (Brasil) e Rivera (Uruguai).
Há o reforço da gestão nos moldes do direito nacional de cada um dos países do bloco. De acordo com Corte e Santin (2013), o artigo 6°, que estabelece a prevenção e a precaução para evitar danos ambientais, o artigo 7º, sobre gestão dos riscos e o 8°, sobre troca de informações entre os países trazem similaridades com o Acordo Quadro Sobre Meio Ambiente do Mercosul de 2001.
Percebe-se que os casos da União Europeia e do Mercosul possuem significativas diferenças no tratamento das águas subterrâneas, é perceptível que a legislação formulada no âmbito da União Europeia é distinta das iniciativas intergovernamentais mercosulinas, são projetos com objetivos e estruturas diferentes; contudo, é inegável o avanço que a Diretiva Quadro da Água possui para uma gestão e governança sobre as águas subterrâneas no âmbito nacional e também para os casos transfronteiriços, apesar de ainda haver diversos desafios, como a pressão sobre as fontes subterrâneas, a assimetria legal, o conflito de uso, entre outros, no continente europeu.
O gerenciamento das águas subterrâneas do Aquífero Guarani ainda é muito deficitário, sendo submetido aos instrumentos nacionais de cada um dos Estados detentores. Dada a importância estratégica do Guarani, bem como, os potenciais conflitos acerca de sua gestão nas áreas transfronteiriças, é premente a necessidade de adequação de mecanismos para uma gestão compartilhada para esses casos, bem como, é necessário avanço nas pesquisas e monitoramento após o Acordo realizado em 2010, que se trata do caso mais avançado na região para a abordagem dos aquíferos transfronteiriços.
Referências Bibliográficas
CHILTON, J.; SMIDT, E. Diagnostic report UNECE region (2nd draft). Groundwater governance – A global framework for action, GEF, UNESCO-IHP, FAO, World Bank and IAH, 2014. http://www.groundwatergovernance.org
CORTE, T.D; SANTIN, J.R. Soberania ambiental: o direito das águas subterrâneas no mercosul e na união europeia. In: Anais do II Congresso de Direito Ambiental e Ecologia Política,UFSM, Santa Maria,2013.Disponível em: http://coral.ufsm.br/gpds/anais/wp-content/uploads/2014/12/13.SOBERANIA-AMBIENTAL-O-DIREITO-DAS-%C3%81GUAS-SUBTERR%C3%82NEAS-NO-MERCOSUL-E-NA-UNI%C3%83O-EUROPEIA.pdf
DOSI C., TONIN S. Freshwater Availability and Groundwater Use in Southern Europe. In: Dosi C. (eds) Agricultural Use of Groundwater. Fondazione Eni Enrico Mattei (FEEM) Series on Economics, Energy and Environment, vol 17, 2001.
European Community (EC). Directive 2000/60/EC of the European Parliament and of the Council establishing a framework for community action in the field of water policy [Water Framework Directive], 23 October 2000.
ISARM. TBA´s of the World 2015. Disponível em: https://www.un-igrac.org/sites/default/files/resources/files/TBAmap_2015.pdf. Acesso em: 03 de agosto de 2018.
KAIKA, M. The EU Water Framework Directive: part 1. European policy‐making and the changing topography of lobbying. Environmental Policy and Governance, v.13, Issue 6, 2003, p. 314-327.
LEITE, M.L.T.A. Acordo do Aquífero Guarani e a ótica da integração regional. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, São Paulo,2018.
OEA. Aquífero Guarani: Programa estratégico de ação (2009). Disponível em: http://www.ana.gov.br/bibliotecavirtual/arquivos/20100223172711_PEA_GUARANI_Port_Esp.pdf
ROSADO,A.S. A integração ecológica europeia: O caso da convenção para a protecção e aproveitamento sustentáveis das águas das bacias hidrográficas luso-espanholas de 30 de novembro de1998 e a nova política de águas da EU. In: ALISEDA, Julián Mora; JAQUENOD Silvia (Orgs.). Ambiente y dessarrollo sostenible. Cáceres: Universidad de Extremadura, 2002.
VILLAR, P.C. Gestão das águas subterrâneas e o Aquífero Guarani. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPPAS, V, 2010, Florianópolis. Anais da ANPPAS. Florianópolis: ANPPAS, 2011.