Crédito da foto: El Financiero [adaptada]

 Após as convenções dos partidos, realizadas entre meados e final do mês de agosto passado, a eleição presidencial de 2020 nos Estados Unidos se aproxima da reta final. Elas oficializaram as candidaturas respectivamente à presidência e à vice-presidência de Joe Biden e Kamala Harris, pelo Partido Democrata, e Donald Trump e Mike Pence, pelo Partido Republicano. Ainda estão previstos alguns debates e a votação, que deve ocorrer no dia 3 de novembro. Seja como for, o processo eleitoral tem sido abordado em muitas análises como um fenômeno, por muitos aspectos, decisivo, com significados para a conformação do futuro próximo de todo o sistema internacional e, particularmente, para os países latino-americanos e caribenhos – neste caso, no marco das políticas estadunidenses para o Hemisfério Ocidental.

De acordo com a professora dra. Cristina Soreanu Pecequilo, durante sua exposição no XX Fórum de Análise de Conjuntura sobre o impacto regional da eleição presidencial dos Estados Unidos (EUA), dito processo eleitoral sinaliza para vários países da América Latina – e, neles, para várias tendências políticas – uma possibilidade de mudança ou de continuidade em relação à forma tática como as concepções estratégicas do país serão operadas na região.

Enquanto possibilidade de variações táticas, o professor dr. Carlos Eduardo Martins destaca, em texto publicado na edição de setembro de 2020 do Jornal dos Economistas, que a eleição de 2020 nos Estados Unidos divide-se em dois projetos distintos. De um lado, o projeto de Donald Trump e da extrema direita, cuja projeção na América Latina é acompanhada da ameaça de intervenções militares diretas ou indiretas, além de golpes de Estado. De outro, o projeto do Partido Democrata, liderado por Joe Biden e Kamala Harris, que tenderá para a retomada do consenso universalista neoliberal do país – incluindo, na América Latina, o possível desmonte do embargo a Cuba – e a evitar intervenções militares diretas, sem que com isso desarticule, necessariamente, as guerras híbridas e os cercos através dos quais poderá assegurar a hegemonia do país na região, particularmente no caso da Venezuela.

Se desde 2018 já se observava uma proeminência incomum da América Latina nas eleições estadunidenses, a situação torna-se ainda mais inusual, com o fato de que pela primeira vez na história, a população latina será a minoria étnico-racial com maior poder de voto em um processo eleitoral no país, superando a população negra. Somado a isso, tem-se que a intensificação das parcerias de países latino-americanos com Rússia e China promoveu indiretamente a retomada da agenda política de Washington para a região, especialmente na América do Sul, voltada para países como Venezuela e Brasil – este último gozando de posição estratégica, visto que além de aliado dos Estados Unidos, possui interlocução com Rússia através do Brics, e com a China, por meio dos canais econômicos que aproximam os dois países.

Do ponto de vista estratégico, a professora Pecequilo aponta que, ao fim e ao cabo, se trata de uma possibilidade de mudança ou continuidade relativamente ao modo como a Doutrina Monroe foi reivindicada e instrumentalizada no bojo do governo do presidente Donald Trump (2017 – atual). E isto se deu sob o primado de dois princípios básicos, a saber o de preservação da América Latina como zona de governança democrática estável – que, por seu desenvolvimento interno, não ameace a segurança estadunidense (particularmente em questões como imigração, tráfico de drogas e parcerias extrarregionais) – e, ao mesmo tempo, o de “América para os americanos”, segundo o qual a América Latina é tratada como uma extensão geopolítica e geoeconômica natural dos Estados Unidos.

Este segundo princípio significa, nesta perspectiva, impedir o fortalecimento de poderes internos na região que expresse projetos de Estado não condizentes com o interesse estadunidense; impedir que seja promovida na América Latina uma integração política autônoma – vide os desdobramentos dos “projetos políticos de Brasil e Venezuela para a América do Sul do século XXI” (PEDROSO, 2014); e impedir o fortalecimento de parcerias extrarregionais. “América para os americanos” nada mais seria, assim, do que uma concepção estratégica de sistema interamericano diretamente alinhada com a lista de prioridades estabelecidas no país em relação à América Latina  no século XIX, no escopo da Doutrina Monroe (1823). Destaca-se que, embora seja por vezes tratada como algo superado, tem sido frequentemente acionada pela diplomacia estadunidense nas suas relações com a América Latina – como pelo ex-Assessor de Segurança Nacional do governo Trump, John Bolton, quem afirmou em discurso em 2019 que a Doutrina Monroe estava viva e bem.

Para além da dupla eleita: a resiliência da Doutrina Monroe e as limitações estruturais do Sistema Interamericano

Nestes termos, uma pergunta que atravessa o atual debate sobre o processo eleitoral estadunidense e seus impactos sobre a América Latina é, precisamente, o que Joe Biden faria, se eleito, em relação a estas questões. Especialmente tendo em vista o fato de que a sua atual campanha remete à ideia de recuperar a era Obama (2009-2017) que, por sua vez, chegou a promover tanto a reaproximação do país com Cuba, quanto uma série de intervenções na região, nos marcos de uma contrarreação hegemônica aos países que têm agenda autônoma, como o Brasil (KANAAN, 2018)Outro elemento balizador que, desde a mesma ótica, contribui para reduzir as expectativas em torno de uma política não intervencionista dos Estados Unidos para a América Latina no cenário de uma possível vitória de Biden reside no documento elaborado pelo Conselho de Segurança Nacional (National Security Council) e publicado pela Casa Branca no mês de agosto.

Ele apresenta uma visão geral da estrutura estratégica do hemisfério ocidental e a explícita sinalização da continuidade na política externa dos Estados Unidos para a região, o que inclui cinco pilares fundamentais, quais sejam a segurança do território nacional estadunidense; crescimento econômico e a prática do livre comércio; reafirmação do compromisso do hemisfério com a democracia e a legalidade; a contenção da agressão econômica e da influência “maligna” de outros países na região (nomeadamente China e a empresa Huawei), com alerta adicional aos países latino-americanos, nesse sentido, em relação às parcerias extrarregionais que estabelece; além da expansão e fortalecimento da comunidade regional de aliados.

Como já demonstraram as eleições presidenciais estadunidenses de 2016, as diferenças que existem entre os dois principais partidos no processo eleitoral não explicam per si as diferenças de cada um destes no relacionamento com a região (CEPIK, 2019). Nestes termos, existe no Brasil a visão de que independente de quem vencerá a corrida eleitoral nos Estados Unidos em 2020, os objetivos estratégicos deste país serão mantidos, numa continuidade em matéria de política externa e de segurança. 

Esta visão é compartilhada pelo professor dr. Raphael Padula, para quem a orientação estratégica da política externa estadunidense, revelada por documentos e reforçada na geopolítica clássica, sugere a busca deste país pela manutenção mais ampla de sua supremacia global unipolar e hemisférica, ao mesmo tempo em que mantém o poder dividido na Eurásia, mina a possibilidade de que emerjam potências regionais hostis no sistema internacional, além de controlar as passagens estratégicas marítimas e oceânicas. Isto é, uma política orientada à busca pela manutenção de sua hegemonia no sistema internacional, a manutenção de uma distribuição de poder mais concentrada e menos multipolar, marcos estes da disputa do país em relação à China.

Dessa maneira, o cenário que se pode vislumbrar com a vitória de quaisquer dos candidatos concorrentes – seja de Trump, seja de Biden – sinalizaria diferenças apenas de ordem tática, de discursos ou instrumentos utilizados, com vistas à obtenção dos mesmos objetivos estratégicos. Desde os anos 1990, destaca o professor, as intervenções militares coexistiram com discursos sobre a promoção da democracia, dos direitos humanos e das liberdades. Mesmo a Administração Obama esteve diretamente envolvida com os golpes recentes na América Latina e o aumento das pressões sobre a Venezuela, a partir de 2014. 

Na medida em que a América Latina é tratada como zona de influência geopolítica e geoeconômica pela política externa estadunidense, qualquer ocorrência que, porventura, represente uma ameaça interna ou externa à balança de poder regional a favor de países que não sejam os próprios Estados Unidos, tenderá a ser convertida em foco de preocupação da potência hegemônica no sistema internacional. Daí que uma eventual mudança de política externa decorrente da vitória de Biden tenda a assumir contornos basicamente táticos, uma mudança de estilo a partir da mesma lógica estratégica, já que interessa aos EUA a manutenção desta zona de influência estabilizada, inscrita nos contornos de sua hegemonia. E esta lógica, como se tem argumentado, remete à antiga Doutrina Monroe, repaginada mais recentemente, durante a Administração Trump.

Por isso, é também feita uma ponderação, a de que a vitória de Trump neutralizaria qualquer expectativa de mudança – ainda que de natureza tática – na relação dos Estados Unidos com os países latino-americanos e caribenhos, consolidando-se potencialmente práticas de enfraquecimento sistemático das iniciativas autônomas intra e extrarregionais, como a integração regional sul-americana. Aliás, na perspectiva desta última, isto é, da integração regional sul-americana, as limitações estruturais do sistema interamericano tornam-se imperativas, já que a manutenção do status de zona de influência estadunidense para a América Latina e Caribe em seu conjunto, concretamente, tem contribuído e, porque não, conduzido ao processo de fragmentação e desarticulação regional – particularmente no período histórico recente, no contexto da quarta onda da integração latino-americana (SOUZA, 2012) e de construção de um regionalismo pós-hegemônico (RUIZ, 2016). 

Aquilo que tem sido o relacionamento dos Estados Unidos durante o governo Trump com os países latino-americanos e caribenhos chegou a ser interpretado, assim, nos termos próprios de um corolário (CEPIK, 2019), orientado por uma retórica anticomunista, valores sociais neofascistas e interesses patrimoniais e tecnocráticos. Neste sentido, o que se poderia então chamar de “método” político ou a forma como o Corolário Trump se manifesta na realidade política latino-americana e caribenha, no período histórico recente, passaria, inclusive, pela coação de governos e grupos de interesses a realizar concessões político-econômicas unilaterais, numa atuação à revelia da diplomacia e das instituições, sob o protagonismo do aparato de segurança nacional (forças armadas e polícias, ministério público, serviços de inteligência, etc.) em defesa de interesses e de empresas do país. A consolidação desse distanciamento da burocracia profissional da Administração Trump teria se dado com a confirmação pelo Senado do ex-diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), Mike Pompeu, como secretário de Estado.

Neste sentido, adquirem contornos mais substantivos as hipóteses aqui brevemente exploradas, quais sejam a de que, independentemente da vitória de Trump ou Biden, a política externa estadunidense continuará a ser influenciada pelas mesmas percepções estratégicas e grupos de interesse no relacionamento com os países da América Latina e o Caribe; e de que o Brasil, por suas dimensões geopolíticas e geoeconômicas, se apresenta como um país estratégico para a balança de poder dos Estados Unidos na região.

Assim, parece necessário que se examine o próprio sistema interamericano, suas limitações estruturais e, mais do que isso, em que medida ele é compatível com a criação e consolidação de instituições regionais que possam efetivamente contribuir para que os países latino-americanos e caribenhos trilhem os rumos da autonomia, com capacidade para assegurar a soberania nacional de suas partes e orientadas para a cooperação. Afinal, como parece ter sido demonstrado pela história recente, os Estados Unidos serão o principal contraponto da política externa brasileira, em específico, e latino-americana e caribenha, em geral, no contexto do hemisfério ocidental, durante o século XXI.

Referências

CEPIK, Marco. O Corolário Trump e a América Latina. Revista Tempo do Mundo. Brasília, v. 5, n. 1, 2019, p. 241-265. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/revistas/index.php/rtm/article/view/146/167. Acesso 07 de setembro de 2020;

KANAAN, Gabriel Lecznieski. O Brasil na mira do Tio Sam: o projeto pontes e a participação dos EUA no golpe de 2016. Anais do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: Niterói, 2018. Disponível em: https://www.encontro2018.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1530472505_ARQUIVO_KANAAN,GabrielLecznieski.OBrasilnamiradoTioSam%5BANPUHRJ%5D.pdf. Acesso em 08 de setembro de 2020;

PEDROSO, Carolina Silva. Os projetos políticos de Brasil e Venezuela para a América do Sul do século XXI. Cultura Acadêmica: São Paulo, 2014. Disponível em: http://www.culturaacademica.com.br/catalogo/projetos-politicos-de-brasil-e-venezuela-para-a-america-do-sul-do-seculo-xxi-os/. Acesso em 07 de setembro de 2020;

RUIZ, José Briceño. Projeção, fragmentação e justaposição de processos. Regionalismo pós-hegemônico, retorno do regionalismo aberto: a atualidade do regionalismo na América Latina e no Caribe. Revista Conjuntura Internacional, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, nov. 2016, p. 16-21. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/conjuntura/article/view/P.1809-6182.2016v13n1p16/10250. Acesso em 07 de setembro de 2020;

SOUZA, Nilson Araújo de. América Latina: as ondas da integração. Revista Oikos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, 2012, p. 87-126. Disponível em: http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/article/view/296/168. Acesso em 07 de setembro de 2020.

Escrito por

Marta Cerqueira Melo

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-Unicamp-PUC-SP). Mestra em Integração Contemporânea da América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Bacharela em Humanidades pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) e ao Observatório de Regionalismo(ODR). Pesquisa na área de Economia Política Internacional, com foco em Economia Política Latino-Americana e do Caribe, Integração Regional Sul-Americana, Infraestrutura Logística, Territorialização do Desenvolvimento Econômico e Dinâmicas Socioterritoriais.