Angelo Rocha Paschoaleto

Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista, campus de Franca. Graduado em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto. Servidor da Câmara Municipal de Ribeirão Preto. Possui interesse em meio ambiente, governança internacional, segurança ambiental e temas correlatos. E-mail: arpaschoaleto@gmail.com

 

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Durante a abertura da 74a sessão da Assembleia Geral da ONU, ocorrida no dia 24 de setembro de 2019, o Secretário-Geral, António Guterres destacou que todas as pessoas têm direito à segurança em todas as suas dimensões (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019). Dentro das diversas dimensões de segurança, uma das mais essenciais é a segurança hídrica. Segundo a ONU Água (UN Water), segurança hídrica é a

…capacidade de uma população de salvaguardar o acesso sustentável a quantidades adequadas de água de qualidade aceitável para sustentar meios de subsistência, bem-estar humano e desenvolvimento socioeconômico, para garantir proteção contra a poluição da água e desastres relacionados à água e para preservar ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política. (UN WATER, 2013)

A importância da água que já vinha se consolidando na discussão internacional teve nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável um marco importante, sobretudo no objetivo n° 6 (ODS 6)[1]. Como percebe-se a partir da definição acima, a segurança hídrica relaciona-se com diversas outras dimensões de segurança e desenvolvimento humano, tais como a econômica, ambiental, saúde, de gênero, entre outras, envolvendo-se, portanto, vários dos outros ODS. Mesmo assim, pouco se tem abordado o tema na América Latina e principalmente na região amazônica.
A dificuldade em se obter água potável em quantidade e em qualidade adequadas pode contribuir para conflitos entre grupos. Para que o ODS 6 seja atingido com sucesso, garantindo o acesso à água potável de forma equitativa às populações, e fortalecendo a segurança em outras dimensões com a qual se relaciona, a cooperação internacional voltada para uma gestão integrada dos recursos hídricos (GIRH), sobretudo no âmbito regional é imprescindível, principalmente ao olharmos o ODS 6.5 em sua descrição. De toda a água doce disponível no planeta, apenas cerca de 0,3% encontra-se disponível para consumo, sendo a bacia amazônica uma das maiores do mundo, com cerca de 20% de água potável do planeta, ao que se torna ainda mais estratégica a posição amazônica pela descoberta na região de um dos maiores aquíferos com maior volume de água existente, o Sistema Aquífero Grande Amazônia (SAGA), cuja maior área encontra-se em solo brasileiro (ABREU, CAVALCANTE & MATTA, 2013).
Em 04 de setembro deste ano, a Secretária-Geral da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), Alexandra Moreira López, apresentou na Cúpula Internacional sobre Segurança da Água, em Marrakech, Marrocos, projeto sobre a gestão integrada dos recursos hídricos na bacia amazônica. Apesar de proveitosa, a iniciativa ainda se encontra com grandes desafios à frente (ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA, 2019).
Dentro do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), assinado em 1978, garante-se o uso racional dos recursos hídricos pelos países signatários, em seu artigo V: “Tendo em vista a importância e multiplicidade de funções que os rios amazônicos desempenham no processo de desenvolvimento econômico e social da região, as Partes Contratantes procurarão envidar esforços com vistas à utilização racional dos recursos hídricos” (BRASIL, 1980). Composto por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, o tratado buscava desenvolver a região amazônica, primando pela autonomia dos países quanto ao uso dos seus recursos (ANTIQUERA, 2006). Todavia, o TCA teve até a década de 1990, pouca atividade, principalmente pelo baixo interesse dos governos em aprofundar o acordo, bem como a baixa capacidade financeira dos países-membros, ocasionada pelos choques do petróleo (Idem).
Com uma nova realidade surgindo na década de 1990, após a queda do Muro de Berlim, e com o sucesso da Eco-92, por iniciativa brasileira, o Tratado de Cooperação Amazônica passa a se compor por uma Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), com sede em Brasília, com o intuito de coordenar os compromissos do TCA, e fomentar projetos de cooperação. Isto vem associado a um projeto de regionalização brasileiro, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, que passou a encarar um projeto de regionalização sul-americana. Todavia, característico da política externa brasileira, a regionalização se deu com ressalvas ao processo de seu aprofundamento, tendo em vista o receio da perda de autonomia (ANTIQUERA, 2006).
Esta característica permaneceu na política externa brasileira ao longo dos governos petistas, mesmo com a nova etapa de amadurecimento do TCA, no sentido de fortalecer a integração física entre os membros. A expectativa era a de a OTCA se constituir como uma ponte para a construção da América do Sul, ao que para o Brasil, a organização seria estratégica por alinhar os interesses deste país com os demais da região Pan-Amazônica. Na prática, contudo, a região sofre com o descaso dos governos, o distanciamento e por vezes a rivalidade entre os países, resultado também do caráter intergovernamental das relações estabelecidas.
Como problemas, a falta de identidade mesmo entre culturas dos próprios países, as economias paralelas, tráfico de drogas e sexual, garimpo e explorações ilegais criam um arcabouço que deixa a população sem perspectivas para qualquer mudança (PROCÓPIO, 2007). Ressalte-se ainda o pouco interesse brasileiro em aprofundar as relações com os países do norte da América do Sul, mesmo que muitas das dificuldades se deem por conta de brasileiros que vão aos países vizinhos em busca de condições melhores (Idem).
Dentro da OTCA, tal como em outras organizações regionais, há a demonstração de interesses no processo de regionalização, ao mesmo tempo que o receio em aprofundar tal processo, tendo em vista que isto possa significar a perda relativa da soberania, a exemplo da política externa brasileira, em uma visão que se alinha mais à cooperação que a um processo integrativo.
Os interesses, dessa forma parecem ligar-se a uma espécie de “regionalismo econômico raso”, tal como definido por Borzel (2011), porém, que cumprem papéis muito singelos na atual conjuntura. Diversas possibilidades se apresentam para o esmaecimento da organização pelos membros: as instabilidades políticas dificultando o processo, a visão a curto prazo, focada no processo eleitoral, a dificuldade de se obter as reservas capazes de cobrir os custos do processo integrativo.
Há a falta de um ator que organize os rumos da cooperação em direção à um regionalismo propositivo e uma integração positiva. A ausência de um país que assume uma posição de protagonista na busca pela resolução pacífica dos problemas entre os membros (ao que estendemos a função de agir proativamente no sentido de antecipar eventuais questões) é definida por Procópio (2007) como “silêncio que compromete”, uma vez que os problemas mantidos no longo prazo prejudicam as populações e questões que mais carecem de atenção.
A falta de um papel de liderança regional ainda cria um vácuo de poder que é suplantado por nações externas, em especial a China, como vem estrategicamente se inserindo na região nos últimos anos. Com diversos investimentos nas monoculturas dentro dos países ao norte do Brasil, a grande nação asiática ainda tem firmado parcerias importantes na indústria mineradora e na infraestrutura para a navegação, como o Consórcio Cohidro estabelecido com uma empresa peruana para a criação da Hidrovia Amazônica.
Questionamentos tem sido feito quanto aos Estudos de Impacto Ambiental realizados, que pode afetar consideravelmente a vida das comunidades indígenas da região e da biodiversidade (COLLINS, 2019). Tanto as monoculturas estabelecidas, como a mineração e as obras citadas exigem grandes volumes de água que, caso não sejam adequadamente tratados podem ameaçar a segurança hídrica dos demais países, em especial o Brasil no qual deságua o Rio Amazonas. Mas é fato que a falta de um papel de liderança ativa na região não tem deixado efeitos melhores dentro do cenário sul americano.
Portanto, o Brasil (e em consequência toda a região amazônica) poderia colher frutos importantes caso o país tomasse para si o papel de liderança dentro do processo de integração, ainda mais caso empreendesse esforços no sentido de manter a sustentabilidade do uso dos recursos naturais amazônicos, algo que tem preocupado bastante o cenário internacional. Dentro da gestão das águas, o papel proeminente do país se faz necessário como forma de garantir que a população amazônica seja capaz de ter acesso a água potável de qualidade aceitável, tal como preceituado na definição de segurança hídrica.
Cumpre ressaltar que a região amazônica é muito dependente dos rios, como bem exposto por Nascimento e Pozzetti (2018), e requer que as ações se consolidem no âmbito regional. A sustentabilidade de fato somente pode acontecer em um processo de cooperação internacional, e a regionalização é passo importante para que as questões de segurança humana sejam minimizadas. Cabe, desta maneira, avaliar o processo de integração amazônico para que retome fôlego e fortaleça os atores regionais na busca pelos seus interesses conjuntos.

Notas

[1]: “Objetivo 6. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos
6.1 Até 2030, alcançar o acesso universal e equitativo a água potável e segura para todos
6.2 Até 2030, alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos, e acabar com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situação de vulnerabilidade
6.3 Até 2030, melhorar a qualidade da água, reduzindo a poluição, eliminando despejo e minimizando a liberação de produtos químicos e materiais perigosos, reduzindo à metade a proporção de águas residuais não tratadas e aumentando substancialmente a reciclagem e reutilização segura globalmente
6.4 Até 2030, aumentar substancialmente a eficiência do uso da água em todos os setores e assegurar retiradas sustentáveis e o abastecimento de água doce para enfrentar a escassez de água, e reduzir substancialmente o número de pessoas que sofrem com a escassez de água
6.5 Até 2030, implementar a gestão integrada dos recursos hídricos em todos os níveis, inclusive via cooperação transfronteiriça, conforme apropriado Até 2020, proteger e restaurar ecossistemas relacionados com a água, incluindo montanhas, florestas, zonas úmidas, rios, aquíferos e lagos
6.a Até 2030, ampliar a cooperação internacional e o apoio à capacitação para os países em desenvolvimento em atividades e programas relacionados à água e saneamento, incluindo a coleta de água, a dessalinização, a eficiência no uso da água, o tratamento de efluentes, a reciclagem e as tecnologias de reuso
6.b Apoiar e fortalecer a participação das comunidades locais, para melhorar a gestão da água e do saneamento”. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, S/D)

Bibliografia
ABREU, Francisco de A. M. de; CAVALCANTE, I. N.; MATTA, M. A. da S. O sistema aquífero grande Amazônia – SAGA: um imenso potencial de água subterrânea no Brasil. Revista Águas Subterrâneas. 2013. Disponível em: <https://aguassubterraneas.abas.org/asubterraneas/article/view/27831>. Acesso em 08 out. 2019.
ANTIQUERA, Daniel de C. A Amazônia e a política externa brasileira: analise do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) e sua transformação em organização internacional (1978-2002). 2006. 202p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP.
BORZEL, Tanja A. Comparative Regionalism: A New Research Agenda. KFG Working Paper Series, 28. 2011
BRASIL. Decreto n° 85.050, de 18 de agosto de 1980. Promulga o Tratado de Cooperação Amazônica, concluído entre os Governos República da Bolívia, da República Federativa do Brasil, da República da Colômbia, da República do Equador, da República Cooperativa da Guiana, da República do Peru, da República do Suriname e da República da Venezuela. Presidência da República, Brasília, DF, 1980.
COLLINS, Dan. China apoia controverso projeto de hidrovia na Amazônia peruana. Diálogo Chino. 2019. Disponível em: <https://dialogochino.net/30190-china-backed-amazon-waterway-mired-in-murky-information/?lang=pt-br>. Acesso em 08 out. 2019.
NASCIMENTO, L. L.; POZZETTI, V. C. Gestão integrada de recursos hídricos transfronteiriços na Pan-Amazônia. Revista Culturas Jurídicas, v. 5, n. 11, 2018.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. António Guterres. Discurso do secretário-geral da ONU, António Guterres, na Assembleia Geral da ONU. Nova Iorque, 24 de setembro de 2019. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2019/09/%C3%ADntegra-discurso-Guterres.pdf>. Acesso em: 09 out. 2019.
______. 6. Água Potável e Saneamento: Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/ods6>. Acesso em: 05 out. 2019.
ORGANIZAÇÃO DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA. A gestão integrada dos recursos hídricos na Bacia Amazônica é apresentada na Cúpula Internacional sobre Segurança da Água. 2019. Disponível em: < http://www.otca-oficial.info/news/details/605>. Acesso em: 05 out. 2019.
PROCÓPIO, A. A Amazônia Caribenha. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 50, n. 2, 2007, p. 97- 117.
UN WATER. What is Water Security? Infographic. 2013. Disponível em:
<https://www.unwater.org/publications/water-security-infographic>. Acesso em: 08 out. 2019.