Nas últimas semanas, uma série de eventos ocorridos na América do Sul tem ganhado notoriedade na imprensa e despertado curiosidade nas redes sociais. Os protestos no Equador, no Chile e na Colômbia e as eleições na Argentina, na Bolívia e no Uruguai são os destaques. Em comum, esses acontecimentos possuem demandas sociais e discussões sobre democracia. De modo geral, o cenário na América do Sul é de insatisfação popular. Nesse sentido, o que salta aos olhos é o quadro generalizado de instabilidade política da região, algo recorrente na história do subcontinente.
A questão, antes restrita ao debate da crise na Venezuela, expandiu-se e suscitou dois questionamentos principais: quais as origens desse panorama de instabilidades e como essas questões podem ser resolvidas? No marco das indagações sobre possíveis resoluções para a situação, apresentamos aqui uma terceira pergunta: qual seria o papel das instituições regionais na resolução, especificamente, das crises políticas sul-americanas?
As instituições regionais poderiam auxiliar na contenção das instabilidades políticas de duas maneiras: como um elemento dissuasório do rompimento da normalidade democrática e como um agente mediador dos conflitos políticos. A vinculação entre a integração regional e a questão democrática é objeto frequente nos estudos do regionalismo. Na Academia, o entendimento é de que para a integração regional a democracia nos Estados participantes do processo é condição sine qua non. Não obstante, a integração regional também é vista como ferramenta potencial para o fortalecimento dos regimes democráticos (BRESSAN, 2011). A dissuasão a rupturas na democracia está assentada na “cláusula democrática” presente em muitos dos arranjos regionais sul-americanos. No Mercosul, por exemplo, a cláusula democrática foi incorporada em 1998 com o Protocolo de Ushuaia. Já a Unasul, adotou a cláusula democrática em 2010 ao estabelecer o Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia (BIZZOZERO, 2016).
A cláusula democrática é um mecanismo que implica sanções aos atores que tiverem o seu regime democrático doméstico rompido ou, em alguns casos, que estiverem sob forte ameaça de rompimento do mesmo (ROJAS, 2015). De modo geral, os Estados enquadrados na cláusula democrática são suspensos dos blocos regionais e perdem os benefícios da participação nesses arranjos. Dessa forma, a obstrução ao desfrute das prerrogativas regionais e suas respectivas vantagens é um incentivo para a manutenção da normalidade democrática. Além disso, um outro modo pelo qual as instituições regionais ajudam na preservação da democracia nos Estados-membros é com missões de acompanhamento eleitoral nas quais representantes estrangeiros enviados pelas organizações regionais acompanham e atestam a lisura do processo, reduzindo a margem de contestação dos resultados.
Muitas das instituições regionais sul-americanas se propõem a mediar conflitos entre os Estados da região, mas também conflitos internos de seus Estados-membros. A sustentação dessa atuação está no fato de as instituições regionais se colocarem como ator neutro nessas disputas. A organização regional mais atuante nesse sentido nos últimos anos foi a Unasul. Dado que um dos objetivos de constituição da Unasul foi a resolução de questões sul-americanas sem a ingerência de atores extrarregionais, a organização desde seu princípio se posicionou como conciliadora regional. Um evento que exemplifica o papel pertinente das instituições regionais como mediadoras é o da instabilidade na Bolívia em 2008. Na ocasião, Evo Morales viu seu mandato ameaçado por grupos contrários à nova constituição boliviana e, sobretudo, à Lei de Hidrocarbonetos. Na esteira das tensões, houve inclusive ameaça secessionista no leste do país. Além de ter imediatamente condenado as movimentações golpistas, a Unasul criou uma comissão para acompanhar e auxiliar a mesa de diálogo na Bolívia, logrando a pacificação do país (SEVERGNINI, 2017).
Outro caso, desta vez de tensões entre Estados-membros, foi acompanhado de perto e mediado pela Unasul. Também em 2008 ocorreu uma crise diplomática entre Colômbia e Equador. Durante combate pela captura de um importante membro das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), a Colômbia acabou adentrando território equatoriano onde o guerrilheiro foi assassinado. Por conta dessa invasão ao território soberano equatoriano, tanto o Equador quanto a Venezuela romperam relações diplomáticas com a Colômbia. Coube, então, à Unasul arrefecer as tensões entre os envolvidos e mediar a retomada das relações diplomáticas dos dois países com a Colômbia no decorrer de 2009 e 2010. Nesse caso, um importante elemento da Unasul para a resolução da crise foi o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). Um dos conselhos mais ativos da organização, o CDS tinha como um de seus objetivos a consolidação de uma zona de paz no subcontinente e foi fundamental para a estabilidade da região durante o seu período de atividade.
Já nos dias de hoje, os dois casos emblemáticos de crise política são os da Venezuela e da Bolívia. A Venezuela enfrenta instabilidades desde o falecimento de Hugo Chávez em 5 de março de 2013. Foi a partir desse momento que se instalou uma crise generalizada no país. Somadas à situação econômica fragilizada, recrudesceram as acusações de violações de direitos civis e políticos. A sucessão de Chávez foi, por si só, objeto de conflito entre o chavismo e a oposição. Com isso, houve um escalonamento das tensões que resultou em violentos protestos em 2014 e nos anos subsequentes. A partir disso, cresceram as denúncias de violações de direitos humanos. A Venezuela entrou em uma crise política, econômica, institucional e social generalizada, levando grandes contingentes populacionais a emigrarem do país. Desde então, oposição e chavismo se encontram em disputa reivindicando suas respectivas legitimidades de governo, configurando um empate catastrófico (HIRST, 2019).
A Bolívia, por sua vez, é um caso ainda recente. Em 21 de fevereiro de 2016 foi realizado um referendo na país consultando a população sobre a possibilidade de uma reforma constitucional que permitisse mais de uma reeleição, pois até aquele momento a constituição boliviana permitia apenas uma reeleição restringindo a dois os mandatos presidenciais consecutivos. Os resultados do referendo foram polarizados. O “não” a uma reforma constitucional venceu com 51,30% dos votos frente aos 48,70% de votos favoráveis à reforma. Mas em novembro de 2017 o Tribunal Constitucional Plurinacional publicou um entendimento favorável a reeleições indefinidas, permitindo que Evo Morales concorresse a uma quarto mandato nas eleições presidenciais de 2019. A eleição, ocorrida em 20 de outubro de 2019, foi vencida por Morales, mas em meio à uma série de acusações de fraudes. Perante essa situação, a OEA publicou informe indicando vulnerabilidades no processo eleitoral. Nesse meio tempo, a oposição se mobilizou e deu início a protestos que foram se tornando violentos. O resultado desse entrave é que em 10 de novembro Evo Morales foi coagido a renunciar à presidência. Assim, as últimas semanas têm sido de forte tensões na sociedade boliviana.
Diante desses dois casos de instabilidade política e de ameaça à democracia, podia-se esperar que, principalmente, o Mercosul e a Unasul – enquanto organizações regionais sul-americanas mais dinâmicas na última década – atuassem em prol da resolução das crises políticas. Contudo, nos últimos anos houve um processo sistemático de despolitização e de enfraquecimento das instituições regionais na América do Sul. O caso mais notório é o da Unasul. A organização, que possuía um impasse para a eleição de um novo Secretário-Geral desde 2017 por conta da polarização ideológica dos Estados-membros, foi paralisada a partir do momento em que seis dos seus membros suspenderam suas participações na organização em abril de 2018. Já em abril de 2019, o governo de Jair Bolsonaro anunciou a saída oficial do Brasil – maior idealizador e líder – da Unasul, concretizando, por fim, seu desmantelamento.
Todavia, anterior ao processo de crise da Unasul, houve um processo de despolitização da agenda regional como um todo. Sanahuja (2009) identifica a primazia da agenda política das instituições regionais como uma das característica do regionalismo da primeira década do século XXI. Isso significa que a pauta regional foi ampliada e deixou de ser limitada a temas econômico-comerciais. Fugindo do senso comum que prega a politização como um processo ideológico (comumente associado à esquerda), Dabène (2012) entende que a politização “significa que os atores consideram a integração econômica como um instrumento para alcançar objetivos políticos, como resolução de crises ou consolidação da democracia” (DABÈNE, 2012, p. 42). Ou seja, o componente chave para essa análise é a “instrumentalização” dos processos regionais, fator que permite avaliar se a integração econômica é um meio para fins políticos ou um fim em si mesma (DABÈNE, 2012).
Pelo menos desde 2015, o que se observa é uma tendência de despolitização: a interpretação das instituições regionais como ferramentas para a obtenção de ganhos econômicos, desprezando a pertinência do caráter político das instituições. Sendo assim, as instituições perderam suas atribuições de resolução de crises e de consolidação da democracia. De fato, as respostas das instituições regionais às crises políticas têm sido ínfimas. Um dos poucos movimentos regionais para a situação da Venezuela foi o estabelecimento do Grupo de Lima, que já foi discutido pelo Observatório de Regionalismo em outro artigo. Entretanto, foi uma articulação exógena às instituições regionais já estabelecidas e, na prática, atuou mais como um fórum de contestação do governo Maduro do que um espaço de construção de saídas para a crise.
A análise da resolução política para as crises não representa uma desatenção aos fatores econômicos das instabilidades sul-americanas. Ela diz respeito à leitura das capacidades de atuação das instituições regionais. É evidente que boa parte das movimentações políticas das últimas semanas está associada à condição econômica dos países da região. No entanto, a capacidade das instituições regionais sul-americanas de agir sobre a dimensão econômica das crises é extremamente limitada. Essa restrição é decorrente da forma como as instituições regionais são historicamente configuradas na América do Sul: com um desenho institucional intergovernamental. O manejo de problemáticas macroeconômicas em espaço regional exigiria a construção de mecanismos regionais no longo prazo e, notadamente, tal questão não faz parte da agenda de interesse dos países da região. Nesse contexto, atualmente caberia às instituições regionais conduzir a saída política. Considerando o enfraquecimento dessas instituições regionais discutido acima, nem isso tem sido possível.
 
Referências:
BIZZOZERO, Lincoln. El vínculo democracia – integración regional en el MERCOSUR: ¿hacia un control mutuo de Estados o hacia mejores niveles de calidad institucional y participación ciudadana? Pensamiento Propio, v. 43, p.65-86, 2016.
BRESSAN, Regiane Nitsch. O desafio democrático para a integração regional. In: 3º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), 2011, São Paulo. Anais. São Paulo: ABRI, 2011. p. 1 – 17.
DABÈNE, Olivier. Consistency and resilience through cycles of repoliticization. In: The Rise of Post-Hegemonic Regionalism. Springer, Dordrecht, 2012. p. 41-64.
HIRST, Monica. A crise na Venezuela e o enquadramento dos Estados Unidos: opções de política externa na América do Sul. São Paulo, palestra realizada na sede do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP), 12 de março de 2019.
ROJAS, Máximo Quitral. Integración y democracia en Latinoamérica: un recorrido histórico. Revista Latinoamericana de Desarrollo Económico, n. 23, p. 129-149, 2015.
SANAHUJA, José Antonio. Del regionalismo abierto al regionalismo post-liberal. Crisis y cambio en la integración regional en América Latina. Anuario de la integración regional de América Latina y el Gran Caribe, v. 7, p. 12-54, 2009.
SEVERGNINI, Nastasia Valentina Barceló. DEMOCRACIA E INTEGRACIÓN EN AMÉRICA DEL SUR: La acción de la UNASUR en las crisis político-institucionales de Bolivia (2008) y Ecuador (2010). 2017. 80 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais “San Tiago Dantas” (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), São Paulo, 2017.

Escrito por

Gabriela D. Ferreira da Costa

Mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi bolsista de Iniciação Científica dos programas "Jovens Talentos para a Ciência" (CAPES), PIBIC (CNPq) e BIC (UFRGS). Tem experiência na área de Relações Internacionais, com interesse específico em Economia Política Internacional, Política Externa Brasileira e Regionalismos. Pesquisadora do Observatório de Regionalismo (ODR)