Em linhas gerais, este texto tem dois objetivos. O primeiro deles diz respeito ao construtivismo enquanto metateoria útil ao entendimento dos fenômenos regionais. Busca-se pôr em discussão o efeito objetivo de construções sociais sobre a realidade social.  Por sua vez, a segunda meta coloca em pauta a educação no Mercosul enquanto instrumento de fomento à uma construção identitária. Vale alertar o leitor/a leitora, no entanto, que as linhas a seguir retomam a dissertação de mestrado do autor sem, contudo, apresentá-la em resenha. A ideia é revisitar alguns de seus argumentos que – acredito – contribuem, mesmo que para serem refutados, à compreensão do regionalismo sul-americano em uma dimensão dialógica, entre política pública e vida cotidiana.
Há aproximadamente um ano o construtivismo foi objeto de discussão nas páginas do Observatório de Regionalismo. Naquela ocasião, Clarissa Ribeiro discorreu sobre o efeito das ideias para a construção de regiões internacionais. Como bem pontuado pela autora, por apreenderem as regiões como resultantes de dinâmicas sociais, autores construtivistas denunciam a dimensão política na construção de verdades ontológicas. Significa dizer, ideias e práticas que interpretam e dão forma ao mundo social encontram-se em disputa. Nesse sentido, deve-se levar em conta a historicidade do fenômeno observado, quem o observa, de onde essa observação é feita e, não menos importante, seus efeitos objetivos.
Além disso, vale ponderar que ideias compartilhadas e seus efeitos não resultam de voluntarismos idiossincráticos, mas à construção social da realidade soma-se a construção social dos significados. O real (aquilo que se apresenta de modo independente da volição), portanto, só faz sentido quando lastreado pelo conhecimento compartilhado entre os indivíduos de um grupo, seja esse coletivo uma região internacional, ou uma sala de aula. Podemos ler a ideia subjacente às regiões desde essa perspectiva. A título de exemplo, entram governos e saem governos e a América Latina, para além do seu recorte geográfico, continua a existir, sendo reproduzida por práticas reiteradas e produzindo efeitos sobre aqueles que com ela se relacionam.
A região demanda soluções para as questões que sua existência provoca. Governos buscam resolvê-las com aproximações e distensões, por identificarem-se com os demais inseridos nela ou por refutá-la total ou parcialmente.
Na seara da integração regional não comercial, a educação tem sido um tema recorrente como elemento de fomento a uma comunidade imaginada latino-americana e, mais recentemente, sul-americana. Entre os anos de 1920 e 1930 já existiam esforços para que os textos de ensino de história nacional de diversos países da região fossem constantemente revisados para evitar construções hostis. No campo do idioma, a lusofonia brasileira vem se apresentando como “desafio” para o aumento do diálogo entre os cidadãos regionais.
O ensino do espanhol como política pública brasileira tem seguido as aproximações e distensões inerentes a seu momento histórico. Durante os governos de Getúlio Vargas, o Ministério da Educação e Saúde Pública instituiu a aprendizagem obrigatória do espanhol para os cursos do segundo ciclo do ensino secundário nas escolas brasileiras, inclusive o uso do português em aulas dessa disciplina veio a ser suspenso. A ideia era fortalecer o pan-americanismo. A Lei de Diretrizes e Bases de 1961, contudo, excluiu a obrigatoriedade da aprendizagem do espanhol. Somente em 2005, pela Lei 11.161, a oferta do idioma voltou a ser exigida para o ensino médio, sendo uma disciplina optativa. Todavia, a “lei do espanhol” de 2005 foi revogada em 2017 durante a gestão de Michel Temer na presidência. Em termos de língua estrangeira, o inglês ficou instituído no Brasil como disciplina obrigatória a partir do sexto ano do ensino fundamental.
De modo análogo às diretrizes nacionais, outras políticas educacionais de fomento ao conhecimento mútuo vêm sendo exploradas nos diversos níveis de ensino. Argentina e Brasil possuem um longo histórico de cooperação acerca do tema, o que foi absorvido pelo Mercosul imediatamente após sua instituição. Vale lembrar, o bloco criou a Reunião de Ministros pela decisão n.5 de 1991 e, subsequentemente, implementou a Reunião de Ministros da Economia e Presidentes dos Bancos Centrais e a Reunião de Ministros da Educação. Desde então, o Setor Educacional do Mercosul (SEM) passou a organizar as iniciativas da sua área de competência dentro da estrutura do bloco. Um ponto importante sobre o SEM é que ele é o organismo detentor do maior número de cooperação intrabloco, sendo o setor mais ativo do Mercosul nesse quesito (confira o relatório La Cooperación Intra-Mercosur (2005-2015): Análisis de Siete Sectores).
Dentre as iniciativas que se encontram hoje em dia sob o guarda-chuva do SEM, chamamos a atenção para o Programa Escolas Interculturais de Fronteira. De modo sintético, o programa surgiu no âmbito da cooperação bilateral entre Argentina e Brasil no início dos anos 2000 e rapidamente foi integrado ao SEM, prevendo o intercâmbio de professores de escolas selecionadas na região de fronteira para que alunos pudessem vivenciar a aprendizagem a partir da experiência do outro. Pode-se dividir a experiência do PEIF em duas fases: 1) fase do bilinguismo e 2) fase contemporânea.
No primeiro momento o projeto previa o intercâmbio de professores para que alunos de escolas selecionadas da região de fronteira pudessem aprender na língua do outro. A ideia inicial não era estudar o idioma vizinho, mas estudar através dele, com aulas e atividades ministradas por estrangeiros. Apesar do êxito claudicante, optou-se por expandir o PEIF, tanto em número de escolas participantes, quanto em termos de recorte geográfico. Estudantes brasileiros fronteiriços passariam a ter trocas culturais e linguísticas em sala aula do sul ao norte do país.
Apesar da expansão, o PEIF continuou com problemas estruturais. Cabe salientar, o Mercosul carece de supranacionalidade e, portanto, suas demandas estão sujeitas às dinâmicas internas dos seus membros. Nesse sentido, as escolas participantes recebiam recursos em função do engajamento dos governos nacionais com o programa. Por exemplo, enquanto professores argentinos recebiam adicionais em seus salários e possuíam coordenadores específicos para desenvolverem o PEIF em suas fronteiras, no Brasil a questão foi resolvida como atribuição extra para os participantes, sendo que a coordenação ficou a cargo do IPOL (Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística) e, portanto, centralizada.
Com a expansão e um novo marco institucional, o PEIF entrou em sua segunda fase. Em 2012 a Portaria N. 798 de 19 de junho incorporou o programa ao corpo normativo do Ministério da Educação brasileiro. Pela medida o MEC buscou descentralizar a coordenação pedagógica do PEIF, passando a contar com a parceria de universidades próximas da região de fronteira. Além disso, a Portaria trouxe um programa de bolsas, aumentando o interesse das universidades em integrarem o PEIF.
A expansão quantitativa e problemas diversos, por sua vez, inviabilizaram o intercâmbio de professores e o programa abriu mão do seu bilinguismo em favor da interculturalidade. Nos dias de hoje, o PEIF acontece onde e quando se explora a cultura do país vizinho em atividades em sala de aula, mas sem o professor estrangeiro – marca do sucesso do programa em sua gênese.
Por fim, mesmo com as limitações inerentes ao formato deste texto, buscou-se ilustrar como o construtivismo pode auxiliar-nos na compreensão de fenômenos regionais para além da relação puramente estatal e/ou entre governos. Apesar dos discursos e ações que ocorrem no plano macro, existe um conjunto complexo de efeitos que operam no nível da vida cotidiana, deslocando sujeitos, fomentando visões de mundo, desgastando instituições, inovando em normas etc. Logo, as aproximações e distensões que orbitam construções ideacionais amplas impactam a governança da vida individual e as disputas pela natureza, intensidade e direção desses impactos ocorrem no plano da política e, por isso, devem receber nossa atenção.


Link para a dissertação de mestrado: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/182020
 
 
 

Escrito por

Angelo Lira

Mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp - Unicamp - Puc-SP). Pesquisador vinculado ao Observatório de Regionalismo e ao Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI). Membro da Comissão Editorial do Boletim Lua Nova (CEDEC).